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CAPÍTULO IX FESTAS E PIQUENIQUES EM CATAS ALTAS



Uma festa em particular marcou a minha memória por muitos anos.
Lembro como se fosse hoje dos seus festejos; comemorava-se a festa de Nossa Senhora do Rosário na Vila de Catas Altas em 7 de outubro de 1.845 ou 1.846.
A finalidade além de prestar homenagens à Virgem, angariava donativos para reformas e acabamento do templo.
A capela construída pêlos negros escravos, em meados do século XVIII, precisava de reparos e até mesmo de arremates do que ficara inacabado.
 Para isto, o povo ajudava com barraquinhas e eventos festivos, tentando amealhar espórtulas para a Irmandade do Rosário que era composta quase só de negros.
O local bucólico, da baixada formada pelas margens do Rio Maquiné, fica a sopé da serra, estendendo-se pela vasta planície até ao leito do rio dos Coqueiros mais ao Norte.
O leque de riachos descendo a serra do Caraça abre como se fosse um estuário encascalhado, enchendo de areia a calha de seus vales.
Terrenos ricos em ouro e revolvidos durante 150 anos.
Na primeira assentada da serra, a topografia favorecia ao torneio que os cavaleiros promoviam em justas comemorativas das lutas entre os mouros e cristãos, que o povo denominava de Cavalhadas.
Repetindo as tradições das comemorações das vitórias dos cristãos da península Ibérica contra os mouros de fé mulçumana.
Interessado em conhecer as tradições que ali se comemorava, eu indaguei ao John Emery o que representava aqueles cavaleiros combatentes.
Ele me dissera que através do padre Francisco Xavier de França, ficara conhecendo os fatos históricos que geraram aquele torneio.
As cavalhadas remontam a tomada de Toledo em 1.085 aos invasores árabes; pelos leoneses comandados por Afonso VI o rei.
O mesmo soberano que tinha como súdito governador de suas terras, o cavaleiro Paio Guterres, pai de Fernão Pais da Cunha, o primeiro Pereira da Cunha que gerou as raízes da dupla família na península Ibérica.
Ancestral do capitão Domingos Vicente Pereira da Cunha, esposo de Maria Raymunda Mendes Campello, a irmã de Magdalena Mendes Campello Hosken.
As encenações retratavam a guerra da época: Cavalaria, cavaleiros, pajens, animais ajaezados com mantas coloridas e os adereços de ouro e prata reluzindo ao Sol, no combate aos hereges invasores.
A festa trazia gente dos arraiais de Conceição do Rio Acima, Brumado, Barra, São Francisco, Presídio de São João do Morro Grande, Santa Rita, vila de Santo Antônio do Rio Abaixo e até de Mariana e Vila Rica; Da vila de São João do Morro Grande viera para a festa os irmãos de dona Rita: Maria Narciza, José de Souza e Manoel; Enchendo a casa de parentes.  
Nas evoluções das encenações das batalhas, os negros escravos por serem africanos, representavam os mouros, os brancos geralmente portugueses ou seus descendentes; os cristãos, vítimas da invasão.
Numa saudação sobre suas montarias, em 2 fileiras indianas os beligerantes reverenciavam os respectivos reis e rainhas.
Interessado eu acompanhava junto do John Bull e de John Emery, o desfile que para mim era inédito aos meus olhos.
Terminada as encenações das batalhas de uma cavalaria contra a outra os lanceiros mostravam suas habilidades, tentando montados, acertar um arco suspenso sobre a arena.
Por serem muitos, eram eliminados os que erravam o alvo por 3 tentativas.
No final, restava somente dois que teriam que disputar os encantos e favores da princesa da festa.
Ao derredor do campo das evoluções, a assistência premiava com palmas e vaias os acertos e erros dos cavaleiros.
Até a nós ingleses circunspetos, deu-nos vontade de competir naquele torneio que pensávamos ser fácil de concorrer...
Além da destreza como cavaleiro, dependia também de controle, força de arremesso e principalmente pontaria.
Não era fácil sustentar numa só mão a lança suspensa e o animal em desabalada corrida.
A festa iniciava às 5,00 horas com o toque de sinos e foguetes da alvorada; seguia pela manhã e só ia terminar a noite com o hastear do mastro de Nossa Senhora do Rosário e a benção final.
Terminado os festejos religiosos, continuava a festa pagã:
Barraquinhas, leilões, comidas e bebidas.
Padre Xavier que devidamente paramentado, coroara o rei e a rainha, estava dentro de uma imensa roda, conversando com os fiéis.
No adro apertado, era difícil descobrir pessoas, mas eu de longe corria os olhos tentando localizar a filha do Guarda Mor Thomé Mendes Campello.
Seus pais estavam numa das rodinhas, mas Magdalena eu não conseguia vê-la; também as irmãs Maria Rita e Maria Raymunda não se encontravam do lado de fora.
Perguntei ao Bull onde estariam as meninas do Guarda-Mor:
- Certamente junto da imagem da Santa, pois são princesas!
Com a informação do Bull, fui irrompendo o aglomerado de pessoas que se ajuntavam na frente das portas, ganhei o nível do piso da igreja e levantando as pontas dos pés, vi Magdalena junto do andor de Nossa Senhora; Lá estava ao lado das demais princesas.
Ao me ver aproximar-se ficara vermelha e os olhos se fechando como se não quisesse me ver.
Seria pelo lugar onde estava ou pelo que representava na festa,  que ela não me olhava?
Continuei de olhos atentos ao seu rosto, até que abrindo em sorrisos, ela demonstrou compartilhar dissimuladamente com um flerte.
Eu desconhecia os hábitos religiosos dos católicos, porém senti que aquele momento não era propicio para abordá-la.
Fitando-a eu disse quase junto de seu ouvido direito:
- I need to talk to you, a word....
Ela não entendeu o que eu quisera dizer em inglês; olhando-me sem saber o que eu dissera, esperava com os olhos presos aos meus que eu traduzisse em sua língua.
Eu caí em mim lembrando que estava dirigindo a palavra, a uma brasileira que não entendia nada da minha língua.
- Eu quer falar você, Miss!
- Comigo?
- Yes, now!
Novamente estava falando em inglês e tentando inutilmente pensar as palavras no português...
Pausadamente fui tentando:
- Sim, Miss; falar eu você agora...
Ela entendeu que desejava falar com ela ali mesmo.
- Aqui não pode, senhor Eduardo...
Só do lado de fora, apontava para a porta para que eu a entendesse melhor.
Saindo apressado de dentro do templo, fiquei a espera junto da porta do lado que apontara.
Não demorou muito e surgiu acompanhada da mucama, uma pretinha de dentes alvos que seguia seus passos, a mesma que ajudara Magdalena a limpar a minha roupa quando por acidente, caíra o refresco sobre ela.
Voltei a me lembrar do afortunado deslize da negrinha, não fosse ele eu não teria tido a oportunidade de sentir Magdalena tão perto de mim e durante tanto tempo naquele dia...
Senhor Eduardo, esta é a Miúda, pessoa de confiança de meus pais e que ajudou a minha mãe na minha criação...
A pretinha reverenciou-me abaixando o corpo, sem dizer uma palavra sequer, ela sabia que não seria entendida por mim.
- Meu pai não gostaria de me ver aqui a conversar com o senhor!
- Why, Miss?
- Que disse?
- Eu fala, que pai de Magdalena no gostaria?
Senhor Eduardo, moças no Brasil não falam com moços fora da presença dos pais...
- Então, eu tem pedir seu pai falar você?
- Sim, é isto que o senhor terá que fazer...
- No chama eu senhor, Magdalena!
- Como posso chamá-lo?
- Well, my name is, “E- du- ar- do“ como fala brasileira...
Já senhora de seus atos, ela me fitava de uma maneira arrebatadora, coisa rara entre as brasileiras, geralmente muito arredias e acanhadas.
Vestida toda de branco, corpete em babados plissados tinha a saia no mesmo tecido plissada.
Cabelos curtos e nas orelhas brincos de ouro, lindos como seus lábios sedutores.
Os sapatos altos na cor branca  escondidos sob a saia longa até os pés.
Como princesa, portava na cabeça a coroa que a distinguia, brilhando como os brincos.
- I’m enchanted...
- O que o senhor disse?
- I’m  stupefied...
- Que é estupefied?
- Ton-ton-to...
- Você está tonto!
- Yes Magdalena, for you...
Ele ria da maneira como Magdalena interpretara a sua tonteira.
Me,   ton-ton-to,  beleza sua...
- Eu não gosto de galanteios, senhor Eduardo...
- Que fala Magdalena, galanteio?
Magdalena ficou sem saber como traduzir em outros termos a palavra galanteio, se ela não se lembrava de um sinônimo, como explicar?
Lembrando disse: - Amabilidades, fazer a corte; vermelha de vergonha demonstrava encabulada em declarar-se que era alvo dos sentimentos dele.
Apesar de presa aos encantos do rapaz inglês, não seria fácil manter um namoro com as diferenças lingüísticas.
A troca de olhares e a chama que os prendiam ao flerte eram mais fortes que as incompreensões das línguas tão diferentes...
Se difícil à comunicação entre eles, o que ele não deve ter passado logo depois da chegada ao Brasil.
Calada, refletia se aquele namoro não seria uma loucura...
- Que pensar Magdalena?
- Em você, em mim e até em nós!
 - Que, bom!  “Magdalena two and two together...”
- Que queria dizer Eduardo com aquela expressão inglesa?
Curiosa ela disse que não entendera suas palavras.
- Eu fala que Magdalena pensa;  eu e  Magdalena  juntos...
Maria Raymunda sua irmã veio chamá-la e pediu:
- Espera um pouco mana!
Era difícil conversar com um homem por quem tinha  simpatias  e  falava outra língua!
 Dona de seus pensamentos, eles voavam relembrando o que disseram a ela das dificuldades que Theodora Casimira, a primeira esposa do inglês John Emery tivera no namoro e noivado deles.
Teria sido Theodora realmente feliz?
Ela  não podia responder,  já havia partido  para o outro mundo...
Mas Também sabia por ouvir dizer, que tanto  John Emery como a mulher não tiveram a felicidade completa, por falta única e exclusiva de filhos.
- Magdalena, mui, mui bonita! Roupa e cara de reina...
- O senhor se engana, roupa de princesa e rosto de Magdalena...
- Pra eu, você reina...
- Não desmereça a realeza, senhor Eduardo!
- Oh! Oh!   Feliz Inglaterra se  reina, tão bela como Magdalena!
- Como é a rainha da Inglaterra?
- Muito white, cabelo “red “
- Eu não sei o que é “ white “ e muito menos “ red... “
- Cor vestido Magdalena, apontava para baixo e cabelo cor sangue...
- Cabelo vermelho?
- Yes ou sim, cor ver-me-lho!
- Nossa, é horrível, muito feio!
- Como ela se chama?
- Queen Victória...
Nome bonito!
- Sim nome  bonito, mulher muito feio!
Notando que a mucama olhava deslumbrada para os foguetes que subiam ao céu, tomou as mãos de Magdalena e apertou-a calorosamente.
Antes que ela reclamasse, foi soltando-a vagarosamente num esfregar contagiante, querendo prolongar por tempo infinito o contato delicioso.
Repentinamente ele lembrou onde estava, mas ela já tinha retirado a mão dizendo de cara fechada:
Eu preciso da compreensão do senhor, para atos tão desabusados como este; Senhor Eduardo!
O rosto pegando fogo e os lábios fibrilhando mostravam sua raiva ou emoção do roçar de minhas mãos sobre as dela.
Medroso com a reação, eu senti como um crápula ao provocá-la dentro da igreja, o jeito seria pedir desculpas:
- Excuse-me, Magdalena!
- Eu tenho a certeza que de agora em diante, o senhor saberá me respeitar, do contrário...
- Ela não completou a frase; Nem adiantaria pois não conseguia traduzir tão rápido suas palavras...
Vermelha e com a cara fechada vagarosamente tornou a repetir:
- Tenho a certeza que de agora em diante, o senhor saberá respeitar os nossos sentimentos...
Eu sabia o que significava a  palavra sentimentos...
Sem declarar abertamente, ela revelava o que sentia por mim...
Ela tomara a iniciativa de se despedir, quando falei:
- Já conheço seus pais, é meu dever cumprimentá-los...
Posso ir com você?
Apenas acenando com a cabeça, caminharam para onde estavam os pais dela.
Com a mucama entre os dois, foram conversando sobre as impressões que ficaram de toda a festa.
- Gostou da festa?
- It’s so original...
Realmente, para ele deveria ser muito original aquela festa nascida na península Ibérica, lembrando a expulsão dos árabes.
- Você se sente feliz aqui?
- Yes, this is too!
- O que você disse?
- Muita bonita, festa demais junto Magdalena...
Chegáramos na roda onde estavam os pais e os irmãos de Magdalena.
O Guarda-Mor me apresentou ao seu genro tenente Vicente Domingos Pereira da Cunha.
O tal tenente dava notícias do julgamento dos revolucionários, fardado em uniforme de gala, mostrava o garbo da Guarda Nacional.
A farda azul, com dragonas de ouro franjadas; Botões também de ouro, tinha a tiracolo, a espada embainhada.
Os botões brilhavam como estrelas naquele fundo azul, refletindo os raios.
Calças frisadas e botas pretas reluzentes davam ao tenente, ares de grande patente, tal a postura ereta dentro daquele uniforme.
Desde o final da revolução, todos os oficiais da Guarda Nacional, apresentavam-se com seus uniformes durante os festejos civis e religiosos.
Hábito que fora esquecido durante algum tempo, após a visita de D. Pedro I a região da Serra do Caraça.
Quando D. Pedro I passou por lá, vários títulos e patentes foram dados aos seus mais distintos moradores, inclusive o de barão ao eminente filho de Catas Altas,  João Batista Ferreira de Souza Coutinho.
Uma manifestação de gratidão pela acolhida em Nossa Senhora da Rainha de Caeté, Catas Altas e o Caraça, a vaidade dos agraciados era demonstrada nos dias de festa, oportunidade que tinham de se exibirem com os trajes que ficavam guardados nos baús com todo o cuidado.
Se Petrópolis era a cidade dos imperadores, Catas Altas poderia ser chamada mais tarde, de Vila Imperial, pela oportunidade que teve em receber pai e filho.
E era por todo orgulho de seus moradores, que o arraial espelhava uma nobreza diferente das demais localidades, pois preparou esmeradamente para receber Suas Majestades, além da influência que o estabelecimento de ensino do Caraça, concedia aos ali nascidos.
Tomando de amores por aquela terra e especialmente por uma moça, comecei a freqüentá-la sempre que podia; fazia do sobrado do Emery meu patrício, o ponto de apoio para introduzir-me na sociedade local.
Sua linda casa avarandada logo depois da praça, ficava em frente da residência do Guarda-Mor e motivo ainda maior para tornar-me assíduo freqüentador.
Aquela residência guardava a nobreza da estalagem em que parte da comitiva de D. Pedro I hospedara, lembrança que ficara apesar dos l5 anos decorridos da sua visita.
Dona Rita Benedita, mãe de Magdalena, tinha prazer de contar as facetas da visita, pois o imperador além de dar a sua mão para ser beijada,  abaixou para oscular  a face da filha  Maria Raymunda,  ainda muito menina.
Durante anos, a visita do imperador inspirava doces lembranças:
No beija mão, o tropeço de Sá Bonifácia sobre o tapete em frente ao trono improvisado, o mordomo pisando os pés do português Martinho Martins, exatamente no momento de apresentá-lo à Sua Majestade.
Os tapinhas que a meninada ganhava no rosto e o choro em vez de sorrisos,  ao recebê-los.
A conversa animada do imperador com o alferes José Maria Viegas, ao saber que ele era dono de belos animais de montaria.
O bate boca entre ambos, rendera ao imperador um presente: A mula de estimação que o Viegas dizia à sua esposa  D. Maria Claudina, jamais vendê-la.
Realmente ele cumpriu a promessa; não vendeu, pois foi dada a Sua Majestade para retorno de sua longa viagem...
O que deixou Sua Alteza eufórica, foram os presentes oferecidos pelo capitão João Batista de Souza Coutinho, o ex dirigente da mina de ouro  do Gongo Soco.
O inglês Cel. Emery, depois da partida do imperador troçava dos parentes que mostravam a mão tocada por ele no beija mão na casa do padre vigário.
Homem viajado e com cultura européia, seduzia com sua elegância e ninguém se ofendia com suas brincadeiras a respeito como os amigos bajulavam o Imperador.
Segundo ele, até o Francisco Gomes da Silva, o “Chalaça“  se ainda fosse secretário do príncipe, ficaria  vexado com sua pouca criatividade bajuladora em relação ao povo de Catas Altas.
 Dona Theodora esposa do capitão John Emery, quando foi apresentada ao secretário particular do príncipe,  achara que fosse o mesmo famoso mulato “Chalaça “  que o povo brasileiro detestava, ela ignorava  que em 2 de outubro passado, o homem válido do imperador, fora demitido.
Assentado e anotando num livro o que mandava D. Pedro, o substituto do Chalaça não deixava de correr os olhos sobre tudo que via, especialmente nas mulheres que estavam na fila para o beija mão.
Segundo me contara o Emery, fora o secretário antecessor e pilantra que indispusera o Imperador contra o notável ministro Barbacena.
Coisas e futricas da Corte.
Não era só na pequena comunidade de Catas Altas que futricavam as figuras importantes, também lá na cidade de São Sebastião a matraca  ressoava no Largo de São Cristóvão.
- Imagina!
Aqui até há pouco tempo, os padres missionários registravam uma porção de meninos com o meu sobrenome.
Eram tantos que cheguei a reclamar do senhor vigário.
- Mas eram ou não, seus filhos?
- Ora! Como poderia saber depois de tantos meses e até de anos!!!
A Theodora coitadinha, que nunca me deu um filho, ao ficar sabendo dos tais batistérios; me arreliava como se eu fosse o culpado de tanto cristão tomando o meu nome emprestado.
Aqui, nenhum homem pode criticar as aventuras dos outros, os missionários registraram muitos meninos pagãos nascidos nas senzalas,  com o nome de seus donos.
- E quem é o maior povoador de Catas Altas?
- Ah! Por enquanto ganha disparado o Guarda-Mor, com 10 filhos legítimos,  7 naturais e  mais uma dúzia não registrados.
- Ora!  O Guarda-Mor Thomé é um homem sério e ocupado...
- Muito meu caro patrício, 24 horas por dia dedicado aos seus afazeres!
Debochado ao contar suas aventuras, não escondia sua paixão pela mulher de cor.
O Emery e o Bull eram os nossos cônsules em Catas Altas, cativando com suas pandegas e anedotas nós ingleses, que visitávamos a Vila.
Meus pensamentos divagavam sobre tudo que o Emery e o Bull me havia contado, quando vi a roda onde se confabulava a família do Guarda-Mor se dispersar.
Como minha postura próxima da roda era de espera, o Guarda-Mor pressentiu que eu desejava falar com ele, aproximou-se cumprimentando  amavelmente.
- Capitão, que surpresa nesta festa religiosa!
- Para que Deus venha a nós, temos que bater primeiro a sua porta, disse Edward olhando para o Guarda Mor...
Bull verteu para o português o que dissera o minerador.
O Guarda-Mor olhando para o estrangeiro, não sabia se o inglês tinha realmente se referido ao Deus todo poderoso, ou se fazia analogia as dificuldades que tinha para conversar com ele.
- O senhor já está voltando à sua casa Coronel Thomé?
- Não meu filho, somente minha esposa e as filhas é que subirão carregadas, não fica bem a um homem válido andar de liteira...
A festa lhe fizera bem, pois parecia estar de muito bom humor.
- Negócios, senhor Hosken?
- Oh, não coronel! Amenidades de moço...
- Como assim meu filho?
- Coronel, o que desejo conversar com o senhor é um tanto particular e seria grosseria da minha parte abordá-lo aqui na rua!
- Então por que não vamos conversar em minha casa?
- Com muita honra Coronel!
Caminhando juntos, subiram o calçadão irregular da ladeira do Rosário que ia dar no largo da matriz.
Na subida, acompanhava-os o John Bull, sempre como interprete.
De vez em quando o Guarda-Mor parava para respirar, tomava um fôlego e continuava a caminhada nos passos que sua idade permitia.
- E as minas de ouro, Capitão?
Era a primeira vez que ele dirigia a minha pessoa, dando a patente que eu tinha na Mina.
Sinal evidente que deveria ter tomado informações sobre a minha pessoa, desde que me vira cortejando sua filha Maria Magdalena.
Ao ser apresentado a ele, nunca revelara a minha patente, nem tão pouco em Catas Altas, sabiam do meu posto na mina do Gongo Soco.
Eu acompanhei os 4 negros encostando num portão lateral a liteira vazia da família do Guarda Mor.
  O senhor ainda não sabe das boas novas do Gongo?
- Oh meu filho, as notícias que aqui chegam não merecem fé!
Neste canto; quem conta um conto, aumenta por conta!
- O senhor tem razão Coronel, porém o  que espalharam  sobre a produção do Gongo Soco é verdade e nós ingleses  estamos muito felizes...
A prova cabal do que digo, são os trabalhos que estamos estendendo por outros lugares, além de Gongo Soco; o que não seria possível se aquela mina não estivesse dando resultados.
- Nós estamos torcendo pelo êxito de vocês ingleses, capitão!
Quem sabe se também a Catas Altas, não venha o empreendimento de vocês?
- Certamente que sim, Coronel!
Esta é uma razão da minha estadia aqui...
- Pena que nem sempre chegam boas notícias como esta talvez quem as conta, aumentam por conta!
O trocadilho deveria querer dizer alguma coisa que o Bull não entendeu, muito menos eu...
Chegando a sua casa, vi a liteira ainda do lado de fora junto ao vão da porta principal; as senhoras já tinham descido dela e certamente subido ao andar superior, parte íntima do sobrado.
Dona Magdalena fizera os escravos permanecerem na porta, a espera da dispensa do marido.
Perfilados em trajes iguais os quatro pretos aguardavam as ordens do Guarda-Mor.
- Podem guardar a liteira e ficam dispensados por hoje disse o pai de Magdalena .
-Vamos entrar convidou o varão, caminhando para uma porta a direita do corredor; torceu uma enorme chave do seu gabinete de trabalho.
Rangendo os ferrolhos, ele comentou:
-  Bem mais  velha do que  eu...
Esta casa foi do meu pai Paulo Mendes Campello.
- Se o senhor é velho Coronel, não parece!
- Exercícios, meu filho!
Andando sempre, para azeitar os cambitos...
Eu não entendi o que ele disse, não sabia o que era os cambitos...
- Estamos em casa senhores, sintam-se à vontade!
Sentando numa poltrona de Jacarandá forrada de palhinha, apontou duas cadeiras para que também assentássemos.
- Esta eu mandei forrar com palhinha para não esquentar os meus fundilhos, às vezes permaneço por muitas horas nesta posição.
Tomando uma campainha de mão, sacudiu por três vezes, não demorou a aparecer um negro forte de libré, tal como os outros da liteira que carregaram as damas.
- Os senhores devem ter notado as semelhanças deles, não é verdade?
São todos irmãos do mesmo pai, com escravas diferentes, nascidos quase na mesma época.
Eu já tinha notado como pareciam, porém achei que era o uniforme que dava aquela semelhança entre eles.
Sendo da mesma idade, tamanho e envergadura, facilitavam  o transporte de seus senhores, não mancando e distribuindo uniformemente os pesos.
Nos dias de festa, todos os escravos vestiam-se com o mesmo uniforme, principalmente nos dias comemorativos de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, protetores dos escravos.
João Bull conhecendo-os há longo tempo, disse:
- É verdade que o senhor Guarda-Mor rejeitou uma oferta considerável do Barão, por eles?
- Dinheiro não é tudo, senhor John!
Mais vale um gosto que 6 vinténs.
O coronel Tomás Pinto de Figueiredo, que alias é meu amigo tentou levá-los também, para mandá-los para a corte onde trabalhariam; Eu fui sincero com ele:
Negros meus, nascem e morrem comigo, não há ouro que vale às peças.
- Os senhores devem  estar com sede, o que bebem?
- Água, coronel!
 Responderam juntos os dois igleses.
- Hoje é dia de festa, tenho um bom vinho português, aceitam?
- Preferimos água, por sinal a melhor que se bebe neste país, disse o Bull.
Os dois estrangeiros conheciam as inúmeras fontes em suas andanças pelos caminhos das gerais.
- O senhor tem razão senhor Bull, água igual a de Catas Altas não existe, nasce na serra ou nas minas e corre na pedra sem nenhuma impureza.
Sei que os senhores fumam; não se furtem aos prazeres...
- Obrigado coronel, é meu hábito não fumar quando em visitas, ainda mais que meu vício é o cachimbo.
- Afinal, o que me dá a honra da presença dos dois ilustres estrangeiros?
Aquele momento teria que chegar, porém não esperava Eduardo, que partisse do pai de Magdalena a indagação do motivo da presença deles  ali.
Seus pensamentos aceleraram; Como abordar um assunto tão melindroso, ainda mais que fora obrigado a trazer o Bull para servir de seu interprete.
Evitando gaguejar e antes de entrar direto no assunto Edward disse:
- Ora, Coronel !
Antes quero expressar a minha simpatia por sua família, o que não deve ser nenhuma novidade para o senhor, pois todos que a conhece ficam encantados...
- É bondade do moço!
- Não coronel, esta admiração vem da distinção como vejo o senhor e seus filhos, fruto de uma educação esmerada e rara neste país!
Somente a um filho do capitão Paulo e de dona Anna, poderiam advir tão preciosos frutos...
O Guarda-Mor ao ouvir do moço a citação dos nomes de seus pais, estranhou como o estrangeiro poderia conhecer tão bem seus familiares.
Aquilo intrigou ao Guarda-Mor, não era somente ele que sabia da vida dos que rodeavam suas filhas, também o godeme conhecia a sua...
Pensativo o Guarda-Mor perguntava a si mesmo:
Que diabo tem o Godeme na cabeça para imiscuir-se na minha vida?
O inglês continuou falando que era solteiro e queria constituir família no Brasil...
- Que tinha ele o Guarda-Mor a ver com a vida do outro!
- O senhor poderá estranhar minhas confidências, entretanto eu as declaro levado pelo sentimento que me inspirou a sua filha Magdalena...
Vermelhos estavam, o velho, o jovem e o tradutor; todos como assentados a frente de um confessionário.
Gaguejando o Edward completou:
- Aqui deveria estar conforme costumes da minha terra e os do Brasil, os meus pais ou outra pessoa da família, porém não as tendo, trouxe o meu patrício e amigo Bull para representá-los.
Bull olhava, ora para Edward, ora para o Guarda-Mor, com a mesma cara dos tachos com o calor sob os fundos.
- Que “merda“ quer dizer o rapaz,  pensava o Guarda-Mor!
- Eu vivo sem meus familiares no Brasil, Coronel!
Alguns que chegaram a se estabelecerem aqui no Brasil há muito voltaram...
Meus pais estão na Inglaterra...
- E daí?  Perguntava a si mesmo o Guarda-Mor...
Repentinamente ele percebeu onde queria chegar a conversa do godeme, ele não tinha como sair dela, sem dar a devida atenção que os visitantes mereciam.
- Eu procura coronel,  pois querer  licença ver  sua filha Magdalena.
O Guarda-Mor percebeu ligeiras tremuras nos lábios do inglês, sinal de que não estava tão seguro como entrara em sua casa.
O inglês não foi explicito ao dizer que queria ver em vez de falar que queria cotejar sua filha.
Melhor pensou o Guarda-Mor, ele teria tempo com desculpa de consultar a filha e esposa, para dar uma resposta definitiva.
- Olha senhor Hosken!
Mal conhecemos um ao outro, o mesmo digo do senhor para com a minha família e minha filha; entretanto, não posso proibir ninguém de olhar para ela...
A evasiva do coronel provocou o despertar do amigo do Edward Hosken e ele desculpando o patrício, disse claramente:
- Capitão, meu amigo ainda não fala bem a sua língua, por isto disse “ver “ em vez de cortejar...
- Ah! Agora entendo, disse o Capitão Thomé fingindo-se que não havia entendido o que pedira o inglês.
O jovem me desculpa a franqueza, pois o senhor é estrangeiro e nada sei do  da sua vida...
Aqui no Brasil senhor Hosken, são os pais que escolhem os futuros pretendentes a mão das filhas, o que não é o meu caso, pois sou bastante liberal e compreensivo aos sentimentos de meus filhos.
Além das conveniências sociais senhor Hosken, o que não é o caso com o senhor, há os impedimentos religiosos que a igreja Católica determina.
Em vista do que exponho, peço aguardar minha resposta por mais alguns dias...
Edward nem se lembrara que a fé que professava, poderia ser um empecilho ao seu noivado e até ao casamento futuro.
Ele era anglicano de fé e Magdalena católica...
Vermelho com a resposta, ele não sabia quais as etiquetas a seguir tendo em vista a surpreendente resposta do Guarda-Mor.
Ficaria ali por mais tempo ou deveria sair de imediato?
Bull mais afeito aos hábitos brasileiros, disse em meu nome:
- Meu companheiro e afilhado senhor Thomé, vai aguardar ansiosamente sua resposta...
Pálido e pedindo licença Edward se juntou ao Bull, despedindo-se do Guarda-Mor.
Constrangidos separaram: Os dois estrangeiros a caminho da porta e o senhor Thomé entrando para o interior da casa.
Dona Rita vendo o marido vermelho e o pisar duro sobre os degraus, pressentiu que, a conversa com o inglês não fora bem recebida...
Dona Rita Benedita já tinha sido informada pela filha, do assunto que o inglês Edward teria com o pai.
Ela sabia que ele mandara alguém tomar informações sobre o procedimento do moço que estava tentando se engraçar com Magdalena.
O que não sabia, era que também mandara um mensageiro diretamente à Gongo Soco.
Como um ato oficial de governo, da parte da guardamoria, o Coronel tinha todo o direito de se informar dos mineiros que percorriam as datas de seu foro.
Em Catas Altas havia uma porção de estrangeiros do Gongo Soco, e o ofício  dizia respeito a todos que estavam trabalhando no arraial.
O capitão Thomé conhecia a fama do Yory, Bull e do Emery, todos ingleses com vidas agitadas e promiscuas...
Quem sabe se o Edward não seria igual aos outros, e quem garantiria que o futuro pretendente da filha continuaria depois de casado, aqui no Brasil?
 
Na escolha de seus genros, esquecia o senhor Guarda-Mor da sua própria fama de “verga de rodomão“
Como era conhecido entre as escravas e outras mulheres, pela paternidade de alguns filhos naturais registrados por brancas e negras, todas orgulhosas de terem conhecido na intimidade, a pujança de sua “baraúna“.
Tão cioso com a educação e os cuidados com suas filhas moças, repetindo sempre para dona Benedita:
“ -A semente para germinar depende de duas coisas:
A terra onde se planta e o cuidado ao regá-las...“
Passado alguns dias, o emissário enviado ao Gongo Soco regressou com as informações oficiais da Imperial Brazilian Mining Association e veladamente conseguira por outras vias a ficha pessoal de Edward Hosken:

l.  O homem era herege; ( Era assim considerado quem não professava o
     (Catolicismo)
2. Fora enrolado com uma mulata lá do Gongo.
3. Tinha uma cria devendo estar entre 9 ou 10  anos de idade.
4. Mineiro com um alto posto na organização em que trabalhava.
5. Descendente de gente honesta e mineradora na Inglaterra, inclusive filho  
    do Comissário da Imperial Brazilian que negociou a compra da  
                     mineradora do Gongo Soco.
   O que escapou das informações não relatadas era que a tal mulata já era
   falecida.

Com aquelas informações, o coronel Thomé procurou o vigário padre Francisco Augusto Xavier de França para conciliar-se.
Padre Francisco como Bom Pastor, já andara sondando a vida dos mineradores ingleses que trabalhavam na região do seu pastoreio.
Alguns deles, mesmo os casados além de: anglicanos ou protestantes, levavam uma vida desregrada.
Sua forania depois da invasão dos ingleses ficara conturbada com o mau exemplo, principalmente dos chefes das minerações.
Não era por ouvir que ele se queixava e ao mesmo tempo denunciava, os registros dos batistérios paroquiais comprovavam os fatos...
Filhos naturais às dezenas, uniões sem casamento e comportamento desrespeitosos para todos os cantos.
Também pudera! O comissário chefe da mineração era o pior exemplo.
Aqueles fatos estavam prejudicando até o renome do vigário, pois o Arcebispado de Mariana reclamara providências na moralização dos costumes.
A conversa com o vigário foi à gota d’água que encheu e transbordou do balde do zeloso pastor.
Depois do jantar, ainda sentados ao redor da mesa, toda a família esperava o “Deo gratias“ quando a mãe disse:
- Quero que vocês permaneçam sentados para ouvirem o que seu pai tem a dizer:
- É duro para um pai, as vezes ter que tomar resoluções que magoam até a sua própria pessoa, o que não dizer de atitudes que afetam a vida dos filhos:
Somos pais compreensivos e liberais até demais, deixando à vocês escolherem os seus rumos e a escolha de seus futuros cônjuges; coisa que adotamos por respeito a felicidade de vocês.
Porém não podemos concordar com sentimentos que venham  afetar a moral e a crença de vocês.
Antes que o pai acabasse a sua peroração, Magdalena começou a chorar e os irmãos ficaram sem saber a razão do seu choro convulsivo.
O Guarda-Mor fitando-a, disse engasgado:
- O moço inglês não é para você minha filha!
Não professa a nossa religião e além de “herege“ tem antecedentes que você desconhece e que não me cabe aqui revelar.
Suas lágrimas nos comovem e elas enfeiam o seu rosto agora, mas tenho certeza que elas transformar-se-ão em pérolas ao encontrar no amanhã um moço que Deus lhe reservará.
Saindo correndo após ouvir as palavras do pai, o céu parecia ter desabado sobre ela.
Sem retirar as roupas, caiu pesadamente sobre sua cama; a mãe e as mucamas estavam ao seu lado confortando-a e ela começou a fazer vômitos.
Segurando sua testa, dona Rita tentava socorre-la sem meios para paralisar tudo que vertia do jantar que acabara de alimentar.
As mucamas ajudavam como podiam, trazendo água, toalhas, e roupas de cama e uso pessoal para que elas trocassem as maculadas.
Depois da higiene, trouxeram um calmante e deram para que ela tomasse.
Calada, pálida e quase desfalecida, permaneceu deitada até que dormiu ainda soluçante.
Dona Rita e a irmã Maria Raymunda permaneceram ao lado da cama, no quarto completamente às escuras.
Dr. Manoel Moreira de Figueiredo, chamado para socorrê-la, estava viajando para os lados do Caraça e só voltaria no dia seguinte.
Os dias que se passaram após a tomada de decisão do pai, foram penosos para Magdalena.
Ela deixara de fazer as refeições em comum com a família, não saia do quarto e não queria receber ninguém; nem as amigas mais íntimas.
Dona Rita e as irmãs tudo faziam para distraí-la dos fatos que magoara a sua pessoa.
A tia Cocota que viera de Ouro Preto para as comemorações das festas do Rosário, também ficara apreensiva com a reação da sobrinha; ela achava que teriam que fazer alguma coisa para tirá-la daquela tristeza e mutismo em que se fechara.
Ela em conversa com a irmã Rita, chegara a propor para levar Magdalena por algum tempo para sua residência em Ouro Preto.
Mas os pais sabiam que aquela viagem paliativa não bastaria para afastamento do inglês.
Cocota pensava como poderia ajudar a irmã a resolver o problema da sobrinha.
Lembrando do estabelecimento de ensino onde as suas duas filhas estudavam em Ouro Preto e fora há pouco tempo aberto,  propôs que Magdalena fosse morar com ela durante um certo tempo e com desculpa de educar-se,  freqüentasse a escola até que  esquecesse por completo o impulso natural de namoro de toda mocinha naquela idade.
 Suas duas filhas seriam companheiras nos estudos e na tentativa de afastá-la da companhia indesejável do inglês.
Desde 1.840, sob a direção do professor Francisco de Assis Peregrino, estava funcionando uma escola para formação de futuros professores, a primeira Escola Normal da Província.
Nos primeiros 4 anos, funcionara em caráter experimental e assim procedendo, o professor conseguiu estabelecer seu estatuto dentro das normas exigidas pelo governo.
Funcionando em 2 horários, de 9 às  l2 horas e das l4 às l7 horas, atendia uma  boa quantidade de jovens.
Como uma das primeiras escolas, passara dificuldades, porém a mentalidade da família brasileira estava evoluindo e em vez de mandar seus filhos estudarem em Portugal, o estabelecimento recém fundado, passara a dar abrigo aos que queriam aprofundar-se no ensino, principalmente para moças.
De formação francesa, seu primeiro diretor, professor Peregrino direcionava a escola para um método simultâneo, contrário ao ensino individual que até então vigorava nas poucas escolas brasileiras.
O colégio foi instalado na antiga Casa dos Ouvidores de Ouro Preto.
A Cocota gozava de simpatia da sociedade ouropretana, casada com um funcionário público, o que facilitava o engajamento dos filhos e sobrinhos na escola do professor Peregrino.
Todos os anos a tia de Magdalena vinha cumprir uma promessa à Nossa Senhora do Rosário em Catas Altas; promessa que fizera quando nascera a primeira filha.
Ela deixava em Ouro Preto o mais belo templo consagrado a Nossa Senhora do Rosário, para cumprir promessa na igrejinha simples da irmandade em Catas Altas, a 8 léguas da capital.
Ali no sobrado do Guarda-Mor, tinha um aposento reservado para ela, tanto assim que todos o conheciam por quarto da tia Cocota.
A irmã Rita, o cunhado e os sobrinhos eram apaixonados por ela, pois além  da guarida que dava quando iam à capital, era perfeita contadora de histórias e mestra em promover casamentos na família.
Foi através dela que os parentes ficaram sabendo que um dos fundadores de Vila Rica era o antepassado do tenente Domingos Vicente Pereira da Cunha, noivo de Maria Raymunda, sua sobrinha.
Um tal de Nilo Pereira da Cunha espalhando  a sua descendência pela província.
Ela contava por ouvir dizer que, os Pereiras da capitania de Pernambuco, descendo para a Bahia, por volta de 1.660 juntaram-se aos Cunhas, da Quinta dos Cunhas de Portugal, vindo para o Brasil formando uma das maiores famílias brasileiras.
E que o governador da capitania Real da Bahia de Todos os Santos, fora um parente de nome Matias da Cunha, também descendente de Fernão Dias da Cunha, o administrador das terras do rei D. Afonso de Leão, vindo mais tarde, a participar como conselheiro do reino.
Dizia também a Cocota que o marido dela, fora a primeira ponte entre a família Mendes Campello e os Pereiras da Cunha.
Muito ciosa dos parentes importantes; Um entretanto, não gozava do seu bom conceito:
O revolucionário José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, o rebelde conforme o chamava depois da Revolução.
A sugestão de Cocota para levar Magdalena para Ouro Preto, foi em principio bem aceita pelos pais que providenciariam o enxoval para a filha levar.
Nada diriam a Magdalena, até que as coisas fossem acertadas no estabelecimento de ensino da capital.
A noite,  portas fechadas do seu quarto, o   capitão Thomé ficou inteirado da proposta da sua concunhada.
Solução magnífica para por fim a um amor impossível, entre a filha e o inglês herege.
Lista de compras para o enxoval da menina, foi preparada e entregue a tia  para providenciar em Ouro Preto; se ela suspeitasse de alguma coisa, diriam que ela estava ficando moça e precisava andar mais bem arrumada...
De Ouro Preto, através das tropas dos Viegas, ela mandaria algumas roupas de uso pessoal: quanto às de cama, ficariam lá mesmo a espera da chegada da sobrinha.
No dia de finados, 2 de novembro de l.845, Cocota voltou à Ouro Preto.
Às 4,00 horas da manhã, estavam todos de pé para despedirem-se da tia, que levava além da bagagem pessoal, um cargueiro de frutas dos quintais de Catas Altas.
Folhas de bananeira recobriam os balaios para protegê-las do Sol e entre as frutas, jabuticabas fresquinhas.
Por sorte da Cocota, o primeiro dia de novembro, amanhecera ensolarado, coisa rara naquela fase do ano, sempre chuvosa.
Vestida de camisola e robe, Magdalena levantara para despedir da tia, mas lembrara do que combinara com Edward para o encontro secreto marcado para o adro da capelinha de Santa Quitéria.
Colocou um vestidinho de chita que Edward ainda não conhecia e seria próprio para o pic-nic.
A mãe desaprovou a veste dizendo:
- É um dia de festa minha filha; consagrado a Todos os Santos!
Com o cabelo preso num coque, parecia desiludida naquele desleixo natural depois de levantar-se.
- Vou fazer um passeio com as primas no campo, mãe!
Não vou colocar um vestido melhor, sujeito a sujar e até rasgar.
Os pais controlavam os passos da filha, vigiando os do inglês que desaparecera de Catas Altas.
Logo depois que a tia partira, foram para a igreja da matriz assistir a missa do padre Xavier.
Ela evitara também adornos e maquiagem, demonstrando completo desinteresse pelas coisas mundanas, o que a mãe achara natural depois que sofrera a negativa do pai ao seu namoro.
Com Miúda, combinara que a mucama levasse na cesta do pic-nic, seus cosméticos, espelho e pente para embelezar-se para o namorado.
Às 7,00 horas, Sol já despontado na Serra do Pinho a turma de 7 moças partiu com algumas mucamas em direção da capelinha em frente da mina do Pitanguí.
Cantando e falando em voz alta, elas iam acordando os dorminhocos que prolongavam o sono na manhã do dia santificado; em vez de seguirem pela via principal, entraram pelo beco do Santíssimo, margeando o fundo dos quintais das principais mansões de Catas Altas.
Com o piso irregular dificultando os passos, retiraram as sandálias e alpercatas, colocando os pés sobre as pedras frias do calçadão.
A sensação de liberdade que as sinhazinhas não tinham dentro do lar, sentia naquele ambiente e no simples gesto do desnudamento dos pés.
Após término da via calçada, incomodadas pela areia da estrada que dava continuidade ao beco, voltaram a colocar os calçados.
 Aproveitando a parada, Magdalena retirou os apetrechos de pintura que Miúda carregava, e começou a embelezar-se para o encontro programado com Edward.
Ana Rita, sua prima, veio ajudá-la na maquiagem, passando o ruge e o batom que faltara ao seu rosto, durante tanto tempo.
Soltando o cabelo preso pelo coque, voltara a ser a menina alegre do Guarda-Mor, como era chamada pelos mais velhos.
Admiradas com a nova face, as amigas queriam saber o motivo daquela transformação.
- Tenho passado tanto tempo sem me mostrar, no silêncio da minha infelicidade, que hoje  quero dar a vocês a razão contrária, indo ao encontro de quem muito quero.
Magdalena virou outra depois do arranjo no cabelo e as cores da maquiagem que deixara de usar por tanto tempo.
Ela que evitava colocar o ruge, pois sempre teve um rosto de maçãs vermelhas, necessitava naquele dia da tonalidade que o Sol sempre lhe dera.
O que se passa com você, criatura?
- A liberdade, os sentimentos a flor da pele!
- Gente, que transformação é esta tão de repente?
- Ela tinha medo de confessar o seu encontro com Edward e por as coisas a perder...
Miúda olhando para Magdalena comentou:
- Nhá, sê tá tão linda!
Pru mode de que ancê nu fica sempre assim?
Magdalena sorrindo respondeu para a mucama:
- Hoje é um dia muito especial, Miúda!
- Uai, gentes! E todo dia, num é?
- Hoje é dia de Todos os Santos, especialmente de um que me quer muito bem!
- Qui santo ancê tá falando, Nhá?
Santo Eduardo Hosken...
- O godeme, Nhá?
- O inglês, você quer se referir...
- O memo, Nhá!
- Pois é Miúda, ele é a razão deste milagre.
No último degrau da escadaria de acesso ao passeio da igreja de Santa Quitéria, estava Edward conversando com John Bull e mais um outro estrangeiro que as mocinhas não conheciam e que depois ficaram sabendo tratar-se de Thomaz Tombelinde.
- Magdalena, olha quem está ali!
- Quem? Perguntou fingidamente...
- É o inglês da Mina do Gongo-Soco!
Numa veste de linho branco, gravata borboleta prateada, enfiada por baixo do colarinho engomado, a casaca descia pelo corpo, sem uma única ruga.
O calçado preto de pelica lustrosa, mostrava a Magdalena um outro homem que ela nunca vira assim vestido.
O inglês estava irrepreensível naquele traje...
- Como ele era bonito!
Pensava sem dizer nada, pois pela primeira vez ela o via de terno, bem diferente das roupas que usava como minerador. 
Ele e John Bull fumavam cachimbos, conversando sem dar aos que chegavam a impressão de que o encontro fora combinado.
Magdalena ficara implicada com a roupa que vestia, pois recebera dele, instruções para vestir-se da maneira mais simples possível.
E ele bem a sua frente como um dândi...
Sua imagem era tal qual o retrato de Teófilo Ottoni, estampada no jornal, O UNIVERSAL DE OURO PRETO, o político encarnado no corpo do inglês.
O mesmo penteado, cabelos partidos da esquerda para a direita, a expressão dos olhos, e a barba longa e o bigode por aparar.
Não, aquele não era o seu Edward!
Era o revolucionário que todos os moços e alfaiates de Minas procuravam imitar.
Não foi só ela que se deslumbrara com a figura do minerador transformado naquele traje.
- Que homem!
Me belisca! Me belisca dizia Maria Theodora...
Rindo, subiam os degraus restantes sem verem onde pisavam...
- Good morning, Miss...
Os ingleses expressavam ao mesmo tempo os cumprimentos.
Como Bull retirara o chapéu da sua cabeça e inclinara o corpo numa demonstração afetada, as moças deduziram que eram cumprimentadas
Como se fosse um eco, veio em coro:
- Bom dia, bom dia, bom dia...
Todos começaram a rir numa uníssona gargalhada.
O encontro se dera tão espontâneo, que ninguém poderia dizer que ele fora marcado por Edward e Magdalena.
As apresentações foram feitas para os que não se conheciam e o Edward deixou o cumprimento final, para Magdalena.
Com a cara fechada ela denunciava que algo há fizera descontente.
- Magdalena, I apologise, because, I don’t  undertand...
A maldita língua inglesa vinha espontaneamente, ao se dirigir aos brasileiros.
Repetindo em português, falou devagar:
- Magdalena, eu pede desculpa saber que “you, não fala com eu!”
Ela começara a se queixar:
- Primeiro: Você não cumpriu o trato quanto às roupas que deveríamos vestir:
Segundo: Sou a última a ser cumprimentada por você.
- Que queres que eu sinta com tanto desprezo?
Eu não entendia o que queria dizer: “tanto desprezo“
Sem nenhuma maldade perguntei ao Bull, ele me esclareceu.
Eu não sabia que tinha cometido uma bobagem ao pedir o seu socorro...
Era uma confidência que as mocinhas não gostam de revelar, e eu tinha acusado os sentimentos dela para comigo.
Eu tive que explicar a razão por que deixara o nosso cumprimento por último, mas não sabia que sua raiva maior, era pelo contraste de nossas vestes.
- Nossas roupas tinham que ser diferentes, Magdalena!
- Não sei por quê?
- Para parecer que não combinamos o encontro!
Ela continuou a não entender.
Se eu vestir roupa igual, ficar claro, eu e Magdalena marcar encontro...
Ele tinha razão, ela já sorria por sua matreira forma de pensar as coisas.
Prendendo a sua mão agora oferecida, não conseguia retirá-la, quando ela apelou, ele abriu a palma da sua e deixou que a dela fugisse vagarosamente no contato íntimo.
Os olhos verdes do inglês, não viam outra coisa senão os de Magdalena...
- Você está linda assim vestida!
- Mas, não combina com o seu traje!
- Que importar roupas, se estar juntos?
Ele tinha razão, ela queria tanto como ele, ficar juntos...

Ao voltar a afagar as mãos de Magdalena com as suas, ela notou algo estranho no contato da mão esquerda dele com a dela.
Olhando disse sem pensar:
- Você se machucou Edward?
- Há muito tempo Magdalena!  Bomba explodir e meus dedos danificar, mas  Dr. Cuming recuperar...
Magdalena ficou vermelha ao notar que ele encolhera a mão; já era tarde pela gafe que cometera...

Afastando-se do grupo, ambos caminharam para o fundo do adro; frente a frente da maciça serra que estava à frente dos olhos.

Ver anexos nº 14  e 15.

 Lá no alto o seu maior pico visto de Catas Altas, a esquerda o Pitanguí com suas três agulhas escarpadas apontando para o céu.
 Do platô divisavam a descortinada vila com seus telhados coloniais, ressaltando principalmente os da matriz no ponto mais alto do centro do arraial.
As cascatas rolando aos saltos da serra, pareciam fios de prata em cordões sobre o colo daquele corpo  lindo que a natureza criara.
Quando se fazia silêncio entre nós, ouvíamos o murmúrio da água batendo nos degraus sucessivos das banquetas alcantiladas.
A mais pura água descida do céu.
Edward vendo aquela beleza, perguntou para o Bull:
- Are you enjoying your stay?
- Yes, I like... very much...
Ele não precisava perguntar à ninguém se gostava daquele lugar!
Até ele Edward começara a simpatizar por Santa Quitéria.
- Santa Quitéria muita bonita, Magdalena!
Eu gosta daqui como gosta você, darling!
- O que é darling?
Rindo ele não queria fazer a versão ao português, receoso dela vexar-se.
- Por favor, traduza o que você disse...
Edward continuou sorrindo sem traduzir o que ela queria.
- Se você não disser para mim, vou pedir ao Bull...
Era melhor ouvir de sua boca, que traduzida por Bull.
- Eu disse você, palavra: “Que-ri-da”
Magdalena fez um beicinho como se fora ofendida pela audácia dele; mas no íntimo a vaidade fez seu coração acelerar em descompasso.
- Magdalena, aqui tão bonita, eu quer quando ir embora para lá, (ele apontava para o céu) ficar aqui, sempre, sempre...
A namorada não entendia o que ele dizia; Edward então falando em inglês, pediu ao Bull que traduzisse para ela.
Ele fala Miss, que se ele morrer no Brasil, pedirá para que corpo seu descanse aqui para sempre...

O vento levantava discretamente o seu vestido, ela voltava com suas mãos o que a teimosia do vento fazia subir.
Seu roupa is very, very fine!
A leveza do tecido teimava em flutuar para desespero dela.
Ela não sabia se vigiava sua saia, ou os olhos dele...
Aproximando-se dela, Magdalena afastou-se medrosa, porém tropeçou numa pedra que estava atrás e desequilibrada, tentava recompor o equilíbrio; ela não tinha onde se firmar, senão no corpo dele.
Foram suas mãos que não deixaram o corpo dela tombar para trás.
Desajeitadamente ela entrelaçou-se a ele e encontrou o equilíbrio que precisava.
- I love you!  I love you...
Trêmula, ela adivinhou as palavras que eram ditas em inglês.
Seu rosto estava tão perto!
Os fios da barba chegaram a fazer cócegas em seu rosto...
Atrás da igreja, o telhado e a parede faziam sombra dos raios solares que vinham de Leste.
Sobre o gramado estenderam toalhas e sobre elas, os cestos com os salgados e quitandas dos fornos caseiros.
As moças de Catas Altas aprendiam desde cedo, a conquistarem seus futuros esposos pela boca; no cesto uma variedade de salgados.
Da matriz de Nossa Senhora da Conceição chegavam os sons dos sinos e das campainhas retinindo; sinal que a segunda missa  já estava em andamento.
Missa para os que moravam distantes, nas fazendas e retiros e que vinham à Catas Altas cumprirem o preceito de guarda.
Do adro de Santa Quitéria, avistava-se a praça cheia de animais, uns amarrados nos troncos à frente das casas, outros nos coqueiros que contornavam o quadrilátero.
Aquela praça talvez fosse a mais bela que Edward vira até então no Brasil.
- É a missa dos ricos, comentou Doca Cotta.
Só os preguiçosos assistem esta missa!
- Não seja injusta, Doca!
A maioria que freqüenta esta missa tem que levantar cedo, para chegar aqui ainda a tempo de assisti-la...
- Quando saí o casamento?  Perguntou Doca para Magdalena...
- Cala esta boca, bisbilhoteira!
Maria Raymunda beliscava Doca por trás.
A missa estava acabando e lá do alto eles viam o movimento no adro da matriz.
O gramado em frente da igreja permanecia cheio de gente agrupada, dois terços das pessoas voltavam ao lar, o terço restante ficava para as cerimônias sacramentais que eram realizadas após a missa.
Na frente do sobrado do Guarda-Mor, o movimento aumentava: Gente saindo e chegando numa atividade incessante; ponto de reunião certa de toda a família do Guarda-Mor aos domingos e dias santos depois da missa.

A filha Anna e o marido Antônio Alves,
Antônio e Policena Alexandrina de Jesus,
Fernando e Maria Magdalena Ferreira,
Francisco e Manuela Umbelina,
João Mendes e Florentina,
José Mendes e Miquelina Angélica.

Em principio de Janeiro de 1.846, Maria Magdalena Mendes Campello estava preparando para seguir para a cidade de Ouro Preto onde iria estudar e Maria Rita  já uma bela moça formada em Macaúbas.
Na sala, os filhos faziam negócios e discutiam política; lá dentro as mulheres trocavam receitas dos quindins e quitandas de forno.
Para a negrada, também na cozinha era dia de festa, juntando as escravas ladinas que os filhos casados do Guarda-Mor traziam como babás, mas que se esqueciam de seus deveres.
No quintal a meninada brincava solta, aprendendo com os primos o que não se ensinava na escola...
Dia bendito e liberdade completa até com as escravas que se faziam de mestras para os meninos machos que começavam a engrossar a voz.
Quando surgia uma denuncia que, uma menina escrava estava escondida com um dos netos, o Guarda-Mor achava graça e passava a mão na cabeça do fedelho dizendo:
- Campello, segundo os latinos é instrumento de pesca.
 Pescador honra o seu nome!
 Era em liberdade que os meninos também faziam escola.
 Dia santificado aos cochichos, que se espalhavam como fogo em pólvora e como as negras tinham prazer em passá-los à frente quando se engraçavam com um sinhozinho.
Fornicação que principiava às vezes no campo, ou nos terreiros e acabavam no paiol de milho ou no quarto mal cheiroso dos arreios.
Sem tramela na boca, ouvia-se delas:
- Zéfa tá prenha, Munda...
- Cê tá besta!
- Ocê sabe, de quar marruá?
- Memo qui sabesse nu porquearia a famia do Nhô!
- Entonces é dele o bezerrinho?
- Tapa boca nega! Ah se sinhá ouvi de vancê o tró-lo-ló!
Vai sê um calundu dos diabo!
- Uai!  Entonces quar capeta fez mar pr’ela?
-  Pregunta pr’ela, uai!
- É, só pode sê argum fio de Deus!
- Quem falô com ancê, qui Deus é pai?
- Nu é perciso, ele nu é pai de todo mundo!
Era verdade, filho de escrava raramente tinha pai de sangue.
Deus é que era culpado das safadezas dos brancos e das negras...
- Ancê vai vê; No dia do batizado do fio de Zéfa, sô vigaio vai iscrivinhá:

“No dia tar, na matrize de Nossa Senhora Ceição de Catas Artas, na pia bastimar, o vigaio auxiliar, batizô e pôs santo óios em  Mariano, párvulo fio naturar de Josepha do sô Tumé e de pai discunhicido, ambos da fregusia de Catas Artas... ”

Zéfa prenha de 2 meses, ainda seria regalo do sinhozinho por seis a sete meses, tal o xodó como ele esperava a negra no cômodo dos arreios.
Sobre as mantas que amaciavam o couro duro, elas também serviam para amaciar a furor de Nhô...
As negras geralmente virgens, jabuticabas viçosas e  prazerosas, chupadas  no viço da Primavera...
Com aquelas inúmeras saias e anáguas, as mantas eram recobertas com os panos engomados que vestiam, servindo de lençóis para a sanha e safadeza dos sinhôzinhos...
Às vezes completamente nuas da cintura para baixo, pernas abertas e com as mãos escondendo o rosto, repetiam da vergonha simulada:
- “Nhô, tô com tanta vregonha!
- Vergonha de que, menina?
- De vê nóis assim como Adão e Eva!
Serelepe e mexendo com a vaidade masculina do macho, exclamava:
- Vale-me Senhora Ceição!
Tudo isto, Nhô?
Satisfeito, rindo e debochado, ele respondia:
- Zéfa, se você tampa os olhos, como sabe que Nhô tem coisa grande?
-Ai, aí, aí Nhô!
Nu percisa vê, tô sentindo uai!
Sem ver, mas pegando, querendo e afagando, Zéfa chegou naquele fim de 1.847 aos 9 meses de sua prenhez.
Primeiro filho de um parto complicado que Sá Domênia, parteira e benzedeira conseguiu salvar na estreiteza  do pudendo de Zéfa.
Para o inglês John Emery, o Guarda-Mor contou o aperto que Sá Domênia passara.
- Imagine John!  Não fosse a experiência de Sá Domênia com seus banhos de  óleo de mamona e o torrado  brabo, a cabeça do malunguinho não teria passado... 
- Então a menina terá  que fazer uso constante de  pedra-pomes?
- Com o tempo, talvez não...
 - A franguinha então, botou o primeiro ovo?
Quando Zéfa batizou a cria, mostrava sorridente os mesmos dentes brancos que rangeram um dia no esforço de dar a luz a moleca.
Se Zéfa ainda fosse viva, 150 anos depois, com a cara tampada, ela conheceria sua descendência masculina, bastaria usar o processo em que ela era hábil e gostava de relembrar:
- Fio puxa pai, é só pegá; pois binga de Guarda-Mor nunca nega fogo...
Zéfa foi xodó por muitos anos de quem mandava e punha mesa; também prá que mudar se o xibiu era tal qual da primeira vez.
Pedra-pomes restruturava tudo, era um milagre!
Se alguém perguntasse ao contador de histórias:
- Qual o motivo do escriba queimar lenha neste forno?
Eu diria que o pau não tem culpa de crescer torto, e como pau que nasce torto extingue torto, eu não tenho meios de endireitá-lo; para livrá-lo desta  fogueira de  reminiscências...
Quantos descendentes do Guarda-Mor, Zéfa não pendurou nos galhos da frondosa árvore dos Campellos?
Silenciar, prá que?
O Guarda Mor era tão homem como nós mesmos, com a vantagem de que era senhor dos corpos das escravas que o servia...
Poderemos não ter a consangüinidade de Zéfa, mas a  qual de nós Campellos  brasileiros, faltará os mesmos desejos de nosso tataravô,  de ter uma Zéfa  em sua vida?
O vigário que não perdoava a vida irregular dos ingleses amancebados no Morro d’Água Quente e Quebra Ossos tinha olhos curtos para os coronéis do arraial, que faziam coisas piores nas suas senzalas.
As castas esposas mantinham debaixo do mesmo teto, rivais ainda meninas virgens que desabrochando para a vida, se entregavam à vontade de seu dono; Tornando-se pouco tempo depois pródigas parideiras de filhos que diziam: NATURAIS, como se natural  fosse a entrega ao seu senhor...
A hipocrisia campeava solta e os coronéis pisando no rabo alheio, esqueciam-se que também em “nambu“ nascia rabo...         
O sol daquele domingo já estava a pino e dona Rita dera por falta que as meninas ainda não haviam voltado do pic-nic.
Aflita por não terem almoçado, mandou um dos escravos atrás, exigindo que regressassem, pois o Sol estava quente e a comida esfriando...
O mensageiro ainda encontrou as moças no adro de Santa Quitéria.
Quando ele abrindo a boca, deu o recado e disse as horas, as meninas assustaram.
O tempo passara sem que elas percebessem.
Também o que comeram, não fazia o estômago queixar-se pelo almoço.
Magdalena temendo as conseqüências do encontro com o Edward, disse para os demais:
- Gente, se meu pai souber que me encontrei acidentalmente aqui com  Edward,  estou perdida! 
- Uai, você não pode?
- Não, ele ainda não deu a permissão...
Coisa natural entre as mocinhas, pois nenhuma delas teria permissão de namorar sem a licença antecipada dos pais, assim mesmo, sob os olhos vigilantes deles...
Maria Theodora a mais instruída entre elas, virando para Edward que vinha ao lado de Magdalena, disse interpondo-se entre os dois:
Senhor Eduardo, conta para nós alguma coisa da Inglaterra!
Esquivando-se do pedido, apontou para o Bull.
- Ele fala português! eu não sabe...
Ele tinha sua atenção toda voltada para Magdalena e não queria perder um só minuto daquela oportunidade de dedicar sua atenção exclusivamente a ela.
Caminhando mais a frente junto do bando, Bull discorria como era sua terra;
Os contrastes com o Brasil fisicamente e das mulheres com relação às moças
inglesas.
As meninas ficaram atoleimadas quando Bull referindo-se ao clima e suas conseqüências, dissera:
- Nós na Inglaterra não necessitamos tomar banho todos os dias como fazemos aqui no Brasil.
- Uai, vocês não tomam banho lá?
- Claro que tomamos, mas nem todos os dias como aqui...
Vocês brasileiros parecem patos, sempre mergulhados n’água!
- Então, vocês não tomam banho?
- Lá, uma vez ou outra por semana, aqui todos os dias, pois a transpiração do corpo neste clima tropical, assim nos obriga.
- Uai, então vocês tomam banho por obrigação?
- Não, não foi isto que quis dizer; lá como o frio é seco e insuportável, o corpo não transpira, não havendo para tanto a necessidade de se banhar como se faz aqui no Brasil.
Rindo, elas não entendiam como uma criatura humana poderia ficar uma semana ou mais sem se banhar.
Ainda bem disse Doca, ninguém agüentaria ficar perto de quem não toma banho!
Edward que prestava atenção no que Bull conversava como as moças, perguntou:
- Vocês ficar perto de touro não toma banho, gostaria?
As meninas não entenderam bem a pergunta e Magdalena elucidou para elas.
- Por quê?
- Ora!  Bull na minha língua inglesa é o mesmo que touro...
A risada foi geral ao saberem que Bull significava touro e que pelas informações do Eduardo, ele não era muito amigo d’água...
Ao chegarem à frente da casa onde Edward se hospedava, ele se despediu das meninas e de Bull que iria junto delas até mais perto da praça.
- Foi dia Wonderful!
- Edward gostou Magdalena, wonderful é o mesmo que maravilhoso, traduziu o Bull.
- Amanhã, que horas porta cemetery?
- Às 7,00 horas, depois vamos andando até o  Morro d,Água Quente.
Com a mão direita presa as de Edward, ele disse certas palavras em inglês  que só o  Bull sabia o seu  significado:
- I love you, mine darling...
Miúda encantada com o flertar dos dois, não tirava os olhos deles.
De repente ela espantada disse para sinhazinha:
- Nossa! Ou Nhá, ancê nu pode vortar assim,  oia sua cara...
No chafariz da capelinha do Bom-fim, pararam para que Magdalena retirasse a maquiagem e prendesse os cabelos no coque como fazia dentro de casa.
Ela sabia o que poderia suceder se o pai ficasse sabendo do seu encontro com Edward.
Vamos agradecer ao Senhor do Bom-fim pelo nosso passeio...
Todas pararam para orar, ela ajoelhando-se e com as mãos postas, e contritas pediram ao Senhor do Bom-fim por intenção deles, os namorados.
Sem constrangimento nenhum, em plena via pública e escorando na balaustrada da janela da capelinha rezou piedosamente, pedindo a graça do Senhor do Bom-fim.
 Suas duas mãos enfaixavam as peças torneadas de Jacarandá que sustentaram o seu peso.
Corada, irradiando felicidade, Magdalena entrou correndo para dentro de casa; na escada que ligava ao segundo andar, a mãe quis saber: Primeiro a razão da correria, em segundo por que não viera almoçar.
Ainda correndo e subindo os degraus, a mãe repreendeu:
- Tenha modos menina!
- Miúda está preparando um banho para mim, mãe!
- E daí, a água não esfria de repente!
- É o calor, mãe!
Eu não agüento esta roupa suada...
Vestindo uma camisola fina, desceu para a sala de banho, onde o pai mandara instalar um “tonneau“ como os franceses chamavam o tonel todo revestido de aduelas de madeira e arcos armando o seu contorno.
Aquela banheira de madeira fora adquirida em Vila Rica para uso exclusivo da família do Guarda-Mor; como era pesada e por comunidade de seu uso, ficava no primeiro andar, onde a água não ficava nem longe da fornalha e nem da bica do abastecimento.
Uma cavilha junto ao nível do piso deixava a água escoar depois da higiene corporal.
- Ancê tá pelada de maise, Nhá!
Coroné nu gosta d,ancê andá assim !
- Não tem ninguém aqui!
- Uai e eu Nhá!
- Ora Nhana, não é você que me esfrega?
- Dento do quarto pode, Nhá!  Mas, no corredô da casa não...
Correndo, a camisola inflara de ar e o seu corpo, mostrava-se na transparência do tecido leve.
Sua beleza não se restringia ao rosto; como estava agora, expunha-se por inteiro...
Ajudando a retirar a camisola por cima da sua cabeça, as mãos de Nhana tocavam a pele macia da menina.
Ela ainda estava com os pensamentos ligados ao inglês, seu corpo estava entregue a Nhana e seu pensamento vagava...


Ao começar a ensaboá-la as mãos que roçavam os seios, sentiram um tremor e Magdalena arrepiou todo o seu corpo.
- Tá sentindo fio Nhá?
- Não Nhana é cócegas!
O que coçava eram os pensamentos lascivos, as mãos não eram de Nhana...
Sentada dentro do “toneau“ Nhana molhava sua cabeça com uma caneca cheia d’água.
- Que gostosa Nhana!
A água corria dos seus cabelos negros, descendo pelo corpo que  transformara-se em  mulher.
Uma coisa em particular chamou a atenção da mucama:
Os seios da menina estavam mais duros e eriçados, e o seu corpo no viço como  mangaba.
Gentes! Qui tá assucedendo c’ancê.
 A ignorância de Nhana ao perceber aquela transformação, associava o  volume das formas,  ao esforço físico e  calor daquele dia.
- Nóis vai memo no cercado dos manos aminhã, Nhá?
- Que cercado Nhana?
- No cemitério dos mulangos...
- Claro que vamos!
Ha alguns anos os negros eram enterrados fora do arraial no topo de um morro; os brancos dentro das igrejas, ou em seus adros, pois eram irmãos da confraria e mereciam uma distinção especial da irmandade.
Hoje foi Miúda que me acompanhou, amanhã será você...
- Qui bão fia, tem muito malungo jogado lá e eu aperciso rezá preles.
As mãos de Nhana continuavam a correr com a bucha encharcada do sabão francês.
- Qui chero bão, Nhá!
- Foi madrinha que me deu de presente, só uso em dias especiais!
- Ancê tem razão, hoje é dia de tudo qui é santo!
E ancê também nu é uma santinha?
- Pecadora, Nhana!
Tão pecadora que terei que me confessar novamente...
- Anjo nu tem pecado, Nhá!
Lorotas, reivas, e juras Deus perdoa sem confissão, fia!
- Mas quem disse para você que são só estes, os meus pecados?
- Oiando pr’ancê meu anjo...
Acabando de banhar-se, Nhana cobriu-a com a toalha felpuda.
- Ancê qué um vestidinho ou vorta com a camisola?
- A camisola Nhana, eu vou deitar para descansar...
Com os salgados do pic-nic, ela dispensou o almoço e estendeu-se lângüida sobre a cama.
Nhana veio cobri-la sob os lençóis.
Ela esperou que Magdalena fechasse os olhos primeiro, para sair.
Vendo que retardava o sono, começou a cantar versos que a ninara quando criança:
           “ Minina, minha minina,
                que tanta gracinha tem,
                deixa falá quem fala,
                só ancê é meu bem.

               Nada importa as graças
               que outas mininas tem,
               as outas,  são bens dos’outos,
               mas ancê, é meu único bem...”


Os lábios abrindo num sorriso, dizia com quem Nhá sonhava.
Pé, ante-pé, Nhana foi se afastando de costas até ganhar a porta do quarto.
Magdalena dormia, sono de paz sob o embalo dos versos que ouvira.
Finados no interior de Minas é um dia de festa camuflado.
Ninguém trabalhava, todo mundo saia de casa para visitas aos seus mortos e nos cemitérios encontravam os vivos, cheios de vida...
Carregando braçadas de flores, elas já chegavam murchas com o calor das mãos e às vezes também do Sol; Cravos de todos os matizes, predominando o amarelo.
De cova em cova, paravam e rezavam tantas Ave-Marias, quantas o falecido parecia merecer, colocando flores nas mesmas proporções.
Uns choravam a perda recente, outros contavam as lembranças alegres, da passagens do morto pela terra.
Quanto mais amigo fora o falecido, mais desaforos e palavrões eram ditos sobre os 9 palmos de terra que o cobria:
Em Catas altas num dia de finados eu ouvi esta cantilena de um bêbado:
- O fio dasunha era meu mió amigo!
Nóis caçava junto, bebia junto e inté namorava junto.
E nu é qui o fio da mãe arresolveu  largar nóis!
Tadinho, largô muié nova e bunita como fulô...
 Fiquei cum tanta dó dele, e arresolví preguntá prá Maria muié dele:
- Ancê qué casa co’eu, Maria?
 Há um ano ela chorava pra morte dele; há nove mês carrega no bucho, fio meu...

O dia 2 de novembro amanhecera nublado, com jeito de chuva,  o tempo mudara e nada parecia  com o  dia anterior.
Magdalena ficara em dúvidas se iria ou não ao cemitério dos malungos com a desculpa de levar Nhana.  
Edward queixava-se da maneira como estava se encontrando com ela, as escondidas.
Magdalena já sabia por ouvir dizer, como os ingleses eram:
Obstinados, frios, rotineiros e principalmente orgulhosos.
Apesar dos ingleses adorarem o silêncio, o roast-beef, o chá e o tabaco,  detestavam a indiferença e a grosseria.
Na frieza calculada, que é nata em suas personalidades, é necessário longo tempo para serem conhecidos e compreendidos.
Com o silêncio do Guarda-Mor ao seu pedido de licença para namorar  Magdalena, Edward se sentia pisado sem uma resposta definida; fosse ela um sim ou um não, ele merecia uma satisfação.
Assim como o inglês é sóbrio no falar e no se expressar, ele não se conforma com o silêncio e a indiferença; sua  paciência aparente de preguiça, é uma estratégia para tomada de uma decisão contundente.
Usando sempre as mesmas frases feitas que é uma maneira de ser dos  ingleses, eles ocultam as  suas inventivas próprias,  pois elas tem o cunho da sua  personalidade que gostam de preservar.
       Tal como o dia anterior, o dia de finados que é de luto ao coração, Magdalena acordou alegre e bem cedo saiu para visitas aos seus mortos e os de Nhana.
Desceram até ao adro da igreja do Rosário para rezar para os pretos da mucama, voltaram para a praça, entraram na igreja e Magdalena foi orar para os seus que estavam enterrados ali:     
Seus avós, Capitão Paulo Fernandes Mendes Campello e Anna d’Afonseca Magalhães, seus tios e parentes.
Sobre suas sepulturas o retângulo do assoalho tinha as marcas: “PFMC. e AFMMC.“
Dentro da igreja e sobre o piso, ela não poderia deixar flores, tirou duas violetas e colocou-as sobre o assoalho.
De cabeça baixa, rezou suas preces e pediu:
- Oh, vô Paulo e vó Anna!
Que Deus lhes dê as bênçãos eternas no descanso e se lembre de mim nesta terra.
 Nos ouvidos de Magdalena, Nhana disse baixinho:
- Que a terra seja leve pr’eles, Nhá!
Capitão Paulo, home brabo perecia um  touro; foi purisso que foi enterrado dentro da igreja, aqui ninguém berra alto, o santíssimo acoita suas reivas.
Saindo da igreja, tomaram o rumo do beco do Santíssimo, descendo e cortando as águas da serventia que corria pelos fundos dos quintais; saltaram a pequena ponte de madeira e ganharam o outro lado do córrego, subindo a ladeira do Escorrega Negro.
Edward esperava por Magdalena, dali para frente, subiriam a rampa encascalhada que acabara com o nome antigo.
Edward quis saber a razão daquele nome impróprio.
Nhana era a única que sabia o motivo e tentou explicar:

“- Quando chovia e os manos malungos iam ser enterrados lá em riba, os dois negos que carregava o defunto no “vai-vorta“ nu parava impé de tanta iscurregação.
Levantava, dava dois passo prá diante e dois prá trás; aí vortava a tentá levá o defunto prá frente, mas o tinhoso não queria partir deste mundo, e a chanca  escorregava vortando prá trás; punha o varar na terra, apanhava no mato dois porretes de tambu e aliviava o negô de todo o peso.
Maise leve, o defunto se nu tivesse marrado, podia inté voá pru  céu pidindo arrego.
- Eu não entendo o que ela fala!
Magdalena explicou tudo que Nhana dissera.
Edward ficara abismado com o tal processo para aliviar o peso dos mortos.
Depois da visita aos cemitérios, continuaram andando para os lados da estrada do Morro d’Água Quente.
Na conversa entre os dois namorados, Edward queixava-se da falta de resposta do Guarda-Mor.
- Se ele não se manifestar favorável, ele Edward estava disposto a fazer de tudo para continuação do namoro e posteriormente o casamento.
E se ele não der a licença, Edward?
- Fugiremos...
- Você está brincando e não teria coragem para tanto!
Ela não conhecia a obstinação dos ingleses, talvez por isto dissera aquelas coisas.
Dr. Moreira que passava pelos moços tirou o chapéu e cumprimentou-os; absolvido com os problemas de seus pacientes, a principio não percebera quem eram os jovens.
Depois aguçando a memória, voltou o rosto para trás e reconheceu  o casal.
Pensando no que vira, falou consigo mesmo:
- O Guarda-Mor se souber que a filha está passeando por estes lados, não vai gostar, mesmo com sua mucama.
Capitão Thomé já havia confidenciado com ele sobre o pedido que o inglês fizera para cortejar a filha.
Ao chegar em casa e indo direto lavar as suas mãos, hábito constante na sua vida de médico, ele comentou com dona Brasilina:
- Médico de família é como pai, sente os problemas de seus pacientes, como se filhos fossem...
- Que problemas, Manoel?
- Não sei se posso chamar de problema uma pendência de consentimento de namoro...
- De quem você está falando, criatura?
- Do namoro da Maria Magdalena Campello com o inglês.
- Ora! Pendência tola, ele é tão bom como qualquer outro pretendente que a menina tiver...
- Eu tenho dúvidas, Brasilina!
A reputação do inglês não é boa segundo os olhos do pai!
- Ora, ora! Mas quem está reclamando por reputação?
Só se o capitão está achando que o forasteiro não está a altura social da filha!
- Você não acha que é muita pretensão de um minerador querer se casar com a filha do Guarda-Mor?
- Manoel! Onde as nossas moças vão achar maridos melhores?
Vocês todos não são filhos ou netos de cavuqueiros?
O tal do Eduardo, não é um Zé Ninguém, dizem que tem posição de chefia na Mina!
- Veja que, os melhores partidos hoje em dia, são  descendentes  dos cavouqueiros...
- Se fosse minha filha, eu me preocuparia com os riscos de seu trabalho, não com as mãos sujas que às vezes mostram como mineiros.
O inglês pôr exemplo tem uma das mãos dilaceradas por explosão.
Isto sim é motivo para apreensões do pai da moça com quem ele vai se casar no futuro...
- Ele perdeu a mão?
- Não, por sorte, teve um colega  competente para recompor os seus dedos...
- Dá para notar a sua deficiência?
- Só quando faz uso da mão a vista de pessoas curiosas...
A estação das chuvas cobrira naqueles dias o céu de nuvens negras.
Magdalena reclamava com Miúda a ausência do Eduardo, seu sumiço era sinal de que voltara ao Gongo-Soco, caso contrário teria mandado recado...
Os dias cinzentos, sem a luz do Sol às vezes se tornavam negros com o desabar de um temporal que no Brasil chama, “Chuvas de Verão”.
 Neste período, as viagens são suspensas e as atividades do campo interrompidas; os homens permanecem em suas casas impacientes a espera da estiagem que só volta num pequeno período de Janeiro.
As mulheres ficam mal humoradas com os homens a dividir ordens, imiscuindo nos afazeres que são próprios das donas de casas; as roupas não secam dependuradas nos varais das cobertas ou dentro de casa.
Na vila do Gongo Soco, as atividades eram afetadas, quer fora ou no interior da mina.
O lençol freático inundava as galerias e as bombas tinham que operar sem parar um instante sequer.
Magdalena que esperava encontrar-se com Edward no domingo, perdera a esperança e os dias passavam com a terra e os rios encharcando-se de água.
No domingo pela manhã, a ansiedade de Magdalena aumentara e ela pediu à Miúda:
- Manda alguém na casa de John Bull para saber notícias do Edward...
- Ou Nhá! Cumé qu’ele vai sabê, com a aruega qui tá caindo?
O domingo passou e ele não apareceu, veio a segunda, terça, quarta e nada de notícias.
Bull mandara recado que nem os tropeiros estavam conseguindo passar pelas baixadas, as águas tinham inundado a Veluda e os caminhos que ligavam Santo Antônio do Rio Abaixo e São João do Morro Grande interrompidos.
Magdalena passava a maior parte dos dias, dentro do seu quarto, os olhos fundos marcavam visivelmente o choro irrefreável.
- Nhá, Nhá! Prá qui chora?
Sô Dú nu vai esquece dancê, não!
O home nu veio pro mode da aruega qui tá moiando inté as armas...
Coitado dele, Nhá! Cumé qui pode viajá com este diluvo?
Nada aconteceu qu’ele; o mano Zaga é malungo de fiança e falô co`eu qui sô Du tem anjo de guarda prá tudo lado.
- Eu sei Miúda, ele não veio porque não pode com esta chuva fina; miúda como você mesma!
Tão fiel ao tempo como você a mim...
- Ancê tá falando igarzinho a pade Xavié!
Fala, fala bonito e nóis nu intende patavina e nóis fiquemo de boca aberta igar a jacaré quirendo comê as palava dele...
Qui, qui Nhá,  qué dizê como eu memo?
- Deixa prá lá, Miúda!
- Nhá, sô Dú goista muito d’ancê!
- Como você sabe?
- Zaga arengô co’eu, qu´ancê é fulô prá gardar nos peite, bem aqui, óia!
- Não inventa coisas para me acalentar!
- Pois é Nhá, eu juro pru mode de sô Dú!
- Você tem certeza que ele disse isto, Miúda!
- Ou Nhá, pru mode de quê eu haverá de arengar?
- Ou Miúda, eu agradeço de coração por você me contar isto...
Até a dor da saudade está diminuindo!
Magdalena estava sentindo uma dor no coração, como se alguém estivesse pisando sobre o seu peito...
- É um sofrimento sem a dor das doenças, mas como dói...
  Eu não desejo que assim sofra, nem meus inimigos.
- Nhá, sô Dú também tá sofendo!
Coitado dele, ainda pior qui ancê, moiado com a chuva fina e a lama da grupiara por fora, e por dento, a sudade d’ancê!
É balaio muito pesado na cacunda dele!
Banco, nu é como malungo, criado nu Sol e na chuva...
- Ah! Não, não Miúda!
Não é possível o Eduardo agüentar tanta impiedade!
- Guenta Nhá, o godeme é forte como baraúna!
Com a conversa mole de Miúda, Magdalena levantou da cama com os olhos cheios de lágrimas.
Dona Rita notando-as perguntou:
- O que foi minha filha?
- Não sei mãe, juro que não sei!
- Fala minha filha!
Desabafa, o que há faz amargurada?
Magdalena não querendo revelar sua mágoa, não agüentou o sufoco que reprimia o choro e irrompeu em pranto angustiado.
A mãe não precisava indagar sobre suas lágrimas, ela sabia a causa.
Penalizada, começou também a chorar e as duas se abraçaram.
- Nós vamos dar um jeito!
Eu sei a razão da sua mágoa; não desespere filha!
Há sempre um dia atrás do outro...
O estrangeiro não veio, é isto que te faz sofrer?
- Sim, sim mãe!
As lágrimas desciam e os soluços desaguaram do peito, a dor do primeiro amor...
Zéfa, Nhana e os irmãos vieram saber o que se passava com Magdalena, a mocinha dura de chorar, até quando se machucava.
- É dor de cabeça meninos, deixa a irmã em paz!
- Dói, dói muito mãe!
- Não sofra minha filha, a dor vai passar, ele estará aqui no próximo domingo, você vai ver!
- Como a senhora sabe?
- Experiência, meu bem!
Quando o amor é grande, as mentes se comunicam e se atraem, ele virá...
Deite-se em meu colo e desabafe com sua mãe...
- Mãe, me desculpe, eu não posso esquecer Edward como o papai exige!
- Vamos dar tempo ao tempo, filha! Você é muito nova para pensar em namoro...
Nós estávamos guardando uma surpresa e um segredo quanto ao seu futuro, entretanto, acho que chegou a hora de contar para você o que estamos idealizando:
- O que vocês pensam sobre o meu futuro?
- Dar tempo ao tempo como revelei a você...
- Como, mãe?
- Nós temos pensado muito no seu namoro com o inglês, imagine filha!
E se ele voltar para sua terra, estando vocês casados?
- Já pensou, o quanto será duro para todos nós a separação?
Você é ainda muito nova para submeter a uma situação imprevisível quanto ao seu futuro, você estando casada com ele, terá que acompanhá-lo para onde for...
Pense como nós, antevendo as conseqüências; você terá que amadurecer primeiro para depois deliberar o que for melhor.
É este o motivo de querermos dar tempo ao tempo...
Lágrimas começaram a correr nos olhos de Magdalena na medida que dialogavam sobre o assunto.
Com ternura a mãe fazia entendê-la o ponto de vista do esposo, não dando uma resposta satisfatória ao inglês.
Havia no namoro dela, fatores que exigiam tempo e meditação para uma resposta afirmativa ao pedido dele.
Todos acham que você necessita de um preparo maior e um verniz para consorciar-se a um homem de raça e costumes diferentes aos nossos.
Os Ingleses tem uma cultura diferenciada; exigentes quanto as entiquetas sociais e até religiosas.
Daí pensarmos em prepará-la para assumir a responsabilidade de dona de casa; Enviando-a para um estabelecimento de ensino.
- Vocês querem é me transformar em irmã de caridade!
- Ou filha, ninguém entra para um convento sem a vocação para tanto!
Vamos mandá-la para Vila Rica, você vai estudar como externa num colégio
recen-fundado para moças e residindo em casa da sua tia Cocota.
- Mas mãe, logo agora que arranjei um namorado!
- Isto não impede que você continue namorando-o, filha!
- Eu lá em Vila Rica e ele no Gongo Soco?
- Quando há amor, deixa de existir distâncias e barreiras, filha!
A semente estava sendo lançada ao terreno bem preparado.
- Por quanto tempo vou permanecer em Vila Rica?
- Eu não sei ainda, sua tia falou em 2 anos.
- Ah, dois anos é muito tempo, mãe!
- Não para você que é ainda muito menina...
Magdalena silenciou e meditava sobre o que a mãe revelara, sem objeções continuou calada, ouvindo o que ela falava.
- Nós iremos à Vila Rica para preparar o enxoval e você terá um guarda-roupa renovado, além de conhecer a capital da província.
A primeira viagem à cidade capital, despertou um interesse maior em Magdalena, oportunidade rara para mocinhas na idade dela.
A viagem e as compras fizeram Magdalena esquecer sua mágoa, tudo que via era novidade para ela naquela cidade grande.
Ficou conhecendo o colégio onde iria estudar, o palácio, as igrejas e o comércio onde fora escolher o enxoval.
Voltou deslumbrada com Vila Rica e com a casa da tia, no largo do Rosário pouco abaixo da maior casa comercial da localidade.
Antecedendo às compras, voltaram para Catas Altas.
Magdalena ficou deslumbrada no dia que elas chegaram: Vestidos, sapatos, chapéus, meias e toda roupa de baixo, bem como a roupa de cama que levaria...
Personalizadas, elas seriam só dela dali para o futuro,
Ostentando monogramas com as letras bordadas, pela primeira vez, via suas iniciais do nome, gravadas nas fronhas, lençóis, colchas, cobertores e nas peças íntimas de seu vestuário.
“M. M. M. C.“
Faltava ainda uma letra, pensava ela consigo mesma; um dia ela acrescentaria mais a letra “H”  não de hoje ou de um qualquer  homem, mas de HOSKEN...
E se ela batesse o pé e não cedesse a imposição dos pais?
Apesar de obediente, Magdalena sempre fora determinada e era pública sua maneira de ser.
Há tempos atrás, provara enfrentando um Capitão-do-Mato a sua personalidade...
Tomando do algoz de um escravo o chicote dos açoites, fizera ver a ele que sua missão com o negro amarrado ao pelourinho, estava comprida, não necessitava matar o escravo para torná-lo mais temido e valente.
Tô cumprindo orde do meu Nhô, moça!
São 30 chibatadas...
Não fosse a intervenção abusada de Magdalena, o negro teria morrido em frente da sua casa, sem uma alma corajosa e caridosa para salvar o fujão.
Na ocasião que o fato se deu, O Guarda-Mor chamou a atenção da intervenção indevida da filha.
Era uma exemplificação pública para todos os escravos que tentassem fugir, e o Capitão do Mato, tinha autorização para executá-la daquela maneira...
Magdalena passou a odiar aquele marco de pedra que ficava em frente da  igreja matriz.
Segundo ela, era um absurdo a igreja ter permitido que cravassem em frente ao Cristo no altar da igreja de Nossa Senhora da Conceição, aquele instrumento de penalizar os seres humanos.
Aquele monólito não podia ser símbolo da justiça...
Que justiça era aquela que só exemplava negros?
Padre Xavier quando soube da sua atitude, parabenizou-á pela iniciativa caridosa e comentou:
- Já basta o que fizeram com um negro que foi acorrentado e emparedado na igreja, quando da sua construção.
- Até isto fizeram aos negros, padre Xavier?
Chega de violências, principalmente aos olhos de Cristo...
Você não imagina filha, como os negros sofreram para a construção de nossa matriz.
Os artífices tinham bom trato e até remuneração, os negros que carregavam água lá de baixo daquela casa em frente da matriz, subindo a ladeira e com os ombros feridos, cumpriram suas penas aqui mesmo  na terra...
- Quem disse para o senhor que os escravos que construíram a igreja, buscavam a água lá de baixo?
Aqui em cima não tinha água, filha!
Eles tiveram que fazer um calçamento desde a fonte, até aqui em cima para evitarem escorregões com os odres sobre o corpo.
- Nossa! Como é dura a vida dos escravos...
- Apesar de sofredores, ainda eram imaginosos, levando as pedras de cantaria  como aquelas das pilastras, a altura que foram colocadas.
Eu não posso imaginar como conseguiram carregá-las até lá em cima!
Padre Xavier apontava para o alto da torre.
-Oh, minha filha!
Os egípcios construíram as pirâmides onde não havia pedras, e elas eram l0 a 20 vezes maiores do que aquelas, não contando a altura onde eram elevadas!
À Deus nada é impossível! Ainda mais quando a obra é um monumento à sua glória...




 


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