Uma festa em
particular marcou a minha memória por muitos anos.
Lembro como se
fosse hoje dos seus festejos; comemorava-se a festa de Nossa Senhora do Rosário
na Vila de Catas Altas em 7 de outubro de 1.845 ou 1.846.
A finalidade
além de prestar homenagens à Virgem, angariava donativos para reformas e
acabamento do templo.
A capela
construída pêlos negros escravos, em meados do século XVIII, precisava de
reparos e até mesmo de arremates do que ficara inacabado.
Para isto, o povo ajudava com barraquinhas e
eventos festivos, tentando amealhar espórtulas para a Irmandade do Rosário que
era composta quase só de negros.
O local
bucólico, da baixada formada pelas margens do Rio Maquiné, fica a sopé da
serra, estendendo-se pela vasta planície até ao leito do rio dos Coqueiros mais
ao Norte.
O leque de
riachos descendo a serra do Caraça abre como se fosse um estuário encascalhado,
enchendo de areia a calha de seus vales.
Terrenos ricos
em ouro e revolvidos durante 150 anos.
Na primeira
assentada da serra, a topografia favorecia ao torneio que os cavaleiros
promoviam em justas comemorativas das lutas entre os mouros e cristãos, que o
povo denominava de Cavalhadas.
Repetindo as
tradições das comemorações das vitórias dos cristãos da península Ibérica
contra os mouros de fé mulçumana.
Interessado em
conhecer as tradições que ali se comemorava, eu indaguei ao John Emery o que
representava aqueles cavaleiros combatentes.
Ele me dissera
que através do padre Francisco Xavier de França, ficara conhecendo os fatos
históricos que geraram aquele torneio.
As cavalhadas
remontam a tomada de Toledo em 1.085 aos invasores árabes; pelos leoneses
comandados por Afonso VI o rei.
O mesmo
soberano que tinha como súdito governador de suas terras, o cavaleiro Paio
Guterres, pai de Fernão Pais da Cunha, o primeiro Pereira da Cunha que gerou as
raízes da dupla família na península Ibérica.
Ancestral do
capitão Domingos Vicente Pereira da Cunha, esposo de Maria Raymunda Mendes
Campello, a irmã de Magdalena Mendes Campello Hosken.
As encenações
retratavam a guerra da época: Cavalaria, cavaleiros, pajens, animais ajaezados
com mantas coloridas e os adereços de ouro e prata reluzindo ao Sol, no combate
aos hereges invasores.
A festa trazia
gente dos arraiais de Conceição do Rio Acima, Brumado, Barra, São Francisco,
Presídio de São João do Morro Grande, Santa Rita, vila de Santo Antônio do Rio
Abaixo e até de Mariana e Vila Rica; Da vila de São João do Morro Grande viera
para a festa os irmãos de dona Rita: Maria Narciza, José de Souza e Manoel;
Enchendo a casa de parentes.
Nas evoluções
das encenações das batalhas, os negros escravos por serem africanos,
representavam os mouros, os brancos geralmente portugueses ou seus
descendentes; os cristãos, vítimas da invasão.
Numa saudação
sobre suas montarias, em 2 fileiras indianas os beligerantes reverenciavam os
respectivos reis e rainhas.
Interessado eu
acompanhava junto do John Bull e de John Emery, o desfile que para mim era
inédito aos meus olhos.
Terminada as
encenações das batalhas de uma cavalaria contra a outra os lanceiros mostravam
suas habilidades, tentando montados, acertar um arco suspenso sobre a arena.
Por serem
muitos, eram eliminados os que erravam o alvo por 3 tentativas.
No final,
restava somente dois que teriam que disputar os encantos e favores da princesa
da festa.
Ao derredor do
campo das evoluções, a assistência premiava com palmas e vaias os acertos e
erros dos cavaleiros.
Até a nós ingleses
circunspetos, deu-nos vontade de competir naquele torneio que pensávamos ser
fácil de concorrer...
Além da
destreza como cavaleiro, dependia também de controle, força de arremesso e
principalmente pontaria.
Não era fácil
sustentar numa só mão a lança suspensa e o animal em desabalada corrida.
A festa
iniciava às 5,00 horas com o toque de sinos e foguetes da alvorada; seguia pela
manhã e só ia terminar a noite com o hastear do mastro de Nossa Senhora do
Rosário e a benção final.
Terminado os
festejos religiosos, continuava a festa pagã:
Barraquinhas,
leilões, comidas e bebidas.
Padre Xavier
que devidamente paramentado, coroara o rei e a rainha, estava dentro de uma
imensa roda, conversando com os fiéis.
No adro
apertado, era difícil descobrir pessoas, mas eu de longe corria os olhos
tentando localizar a filha do Guarda Mor Thomé Mendes Campello.
Seus pais
estavam numa das rodinhas, mas Magdalena eu não conseguia vê-la; também as
irmãs Maria Rita e Maria Raymunda não se encontravam do lado de fora.
Perguntei ao
Bull onde estariam as meninas do Guarda-Mor:
- Certamente
junto da imagem da Santa, pois são princesas!
Com a
informação do Bull, fui irrompendo o aglomerado de pessoas que se ajuntavam na
frente das portas, ganhei o nível do piso da igreja e levantando as pontas dos
pés, vi Magdalena junto do andor de Nossa Senhora; Lá estava ao lado das demais
princesas.
Ao me ver
aproximar-se ficara vermelha e os olhos se fechando como se não quisesse me
ver.
Seria pelo
lugar onde estava ou pelo que representava na festa, que ela não me olhava?
Continuei de
olhos atentos ao seu rosto, até que abrindo em sorrisos, ela demonstrou
compartilhar dissimuladamente com um flerte.
Eu desconhecia
os hábitos religiosos dos católicos, porém senti que aquele momento não era
propicio para abordá-la.
Fitando-a eu
disse quase junto de seu ouvido direito:
- I need to talk to you, a word....
Ela não
entendeu o que eu quisera dizer em inglês; olhando-me sem saber o que eu
dissera, esperava com os olhos presos aos meus que eu traduzisse em sua língua.
Eu caí em mim
lembrando que estava dirigindo a palavra, a uma brasileira que não entendia
nada da minha língua.
- Eu quer
falar você, Miss!
- Comigo?
- Yes, now!
Novamente
estava falando em inglês e tentando inutilmente pensar as palavras no
português...
Pausadamente
fui tentando:
- Sim, Miss;
falar eu você agora...
Ela entendeu
que desejava falar com ela ali mesmo.
- Aqui não
pode, senhor Eduardo...
Só do lado de
fora, apontava para a porta para que eu a entendesse melhor.
Saindo
apressado de dentro do templo, fiquei a espera junto da porta do lado que
apontara.
Não demorou
muito e surgiu acompanhada da mucama, uma pretinha de dentes alvos que seguia
seus passos, a mesma que ajudara Magdalena a limpar a minha roupa quando por
acidente, caíra o refresco sobre ela.
Voltei a me
lembrar do afortunado deslize da negrinha, não fosse ele eu não teria tido a
oportunidade de sentir Magdalena tão perto de mim e durante tanto tempo naquele
dia...
Senhor
Eduardo, esta é a Miúda, pessoa de confiança de meus pais e que ajudou a minha
mãe na minha criação...
A pretinha
reverenciou-me abaixando o corpo, sem dizer uma palavra sequer, ela sabia que
não seria entendida por mim.
- Meu pai não
gostaria de me ver aqui a conversar com o senhor!
- Why, Miss?
- Que disse?
- Eu fala, que
pai de Magdalena no gostaria?
Senhor
Eduardo, moças no Brasil não falam com moços fora da presença dos pais...
- Então, eu
tem pedir seu pai falar você?
- Sim, é isto
que o senhor terá que fazer...
- No chama eu
senhor, Magdalena!
- Como posso
chamá-lo?
- Well, my
name is, “E- du- ar- do“ como fala brasileira...
Já senhora de
seus atos, ela me fitava de uma maneira arrebatadora, coisa rara entre as
brasileiras, geralmente muito arredias e acanhadas.
Vestida toda
de branco, corpete em babados plissados tinha a saia no mesmo tecido plissada.
Cabelos curtos
e nas orelhas brincos de ouro, lindos como seus lábios sedutores.
Os sapatos
altos na cor branca escondidos sob a
saia longa até os pés.
Como princesa,
portava na cabeça a coroa que a distinguia, brilhando como os brincos.
- I’m enchanted...
- O que o
senhor disse?
- I’m
stupefied...
- Que é estupefied?
- Ton-ton-to...
- Você está
tonto!
- Yes Magdalena, for you...
Ele ria da
maneira como Magdalena interpretara a sua tonteira.
Me, ton-ton-to,
beleza sua...
- Eu não gosto
de galanteios, senhor Eduardo...
- Que fala
Magdalena, galanteio?
Magdalena
ficou sem saber como traduzir em outros termos a palavra galanteio, se ela não
se lembrava de um sinônimo, como explicar?
Lembrando
disse: - Amabilidades, fazer a corte; vermelha de vergonha demonstrava
encabulada em declarar-se que era alvo dos sentimentos dele.
Apesar de
presa aos encantos do rapaz inglês, não seria fácil manter um namoro com as
diferenças lingüísticas.
A troca de
olhares e a chama que os prendiam ao flerte eram mais fortes que as
incompreensões das línguas tão diferentes...
Se difícil à
comunicação entre eles, o que ele não deve ter passado logo depois da chegada
ao Brasil.
Calada,
refletia se aquele namoro não seria uma loucura...
- Que pensar
Magdalena?
- Em você, em
mim e até em nós!
- Que, bom! “Magdalena two and two together...”
- Que queria
dizer Eduardo com aquela expressão inglesa?
Curiosa ela
disse que não entendera suas palavras.
- Eu fala que
Magdalena pensa; eu e Magdalena
juntos...
Maria Raymunda
sua irmã veio chamá-la e pediu:
- Espera um
pouco mana!
Era difícil
conversar com um homem por quem tinha
simpatias e falava outra língua!
Dona de seus pensamentos, eles voavam
relembrando o que disseram a ela das dificuldades que Theodora Casimira, a
primeira esposa do inglês John Emery tivera no namoro e noivado deles.
Teria sido
Theodora realmente feliz?
Ela não podia responder, já havia partido para o outro mundo...
Mas Também
sabia por ouvir dizer, que tanto John
Emery como a mulher não tiveram a felicidade completa, por falta única e
exclusiva de filhos.
- Magdalena,
mui, mui bonita! Roupa e cara de reina...
- O senhor se
engana, roupa de princesa e rosto de Magdalena...
- Pra eu, você
reina...
- Não
desmereça a realeza, senhor Eduardo!
- Oh! Oh! Feliz Inglaterra se reina, tão bela como Magdalena!
- Como é a
rainha da Inglaterra?
- Muito white,
cabelo “red “
- Eu não sei o
que é “ white “ e muito menos “ red... “
- Cor vestido
Magdalena, apontava para baixo e cabelo cor sangue...
- Cabelo
vermelho?
- Yes ou sim,
cor ver-me-lho!
- Nossa, é
horrível, muito feio!
- Como ela se
chama?
- Queen
Victória...
Nome bonito!
- Sim
nome bonito, mulher muito feio!
Notando que a
mucama olhava deslumbrada para os foguetes que subiam ao céu, tomou as mãos de
Magdalena e apertou-a calorosamente.
Antes que ela
reclamasse, foi soltando-a vagarosamente num esfregar contagiante, querendo
prolongar por tempo infinito o contato delicioso.
Repentinamente
ele lembrou onde estava, mas ela já tinha retirado a mão dizendo de cara
fechada:
Eu preciso da
compreensão do senhor, para atos tão desabusados como este; Senhor Eduardo!
O rosto
pegando fogo e os lábios fibrilhando mostravam sua raiva ou emoção do roçar de
minhas mãos sobre as dela.
Medroso com a
reação, eu senti como um crápula ao provocá-la dentro da igreja, o jeito seria
pedir desculpas:
- Excuse-me,
Magdalena!
- Eu tenho a
certeza que de agora em diante, o senhor saberá me respeitar, do contrário...
- Ela não
completou a frase; Nem adiantaria pois não conseguia traduzir tão rápido suas
palavras...
Vermelha e com
a cara fechada vagarosamente tornou a repetir:
- Tenho a
certeza que de agora em diante, o senhor saberá respeitar os nossos
sentimentos...
Eu sabia o que
significava a palavra sentimentos...
Sem declarar
abertamente, ela revelava o que sentia por mim...
Ela tomara a
iniciativa de se despedir, quando falei:
- Já conheço
seus pais, é meu dever cumprimentá-los...
Posso ir com
você?
Apenas
acenando com a cabeça, caminharam para onde estavam os pais dela.
Com a mucama
entre os dois, foram conversando sobre as impressões que ficaram de toda a
festa.
- Gostou da
festa?
- It’s so
original...
Realmente,
para ele deveria ser muito original aquela festa nascida na península Ibérica,
lembrando a expulsão dos árabes.
- Você se
sente feliz aqui?
- Yes, this is too!
- O que você
disse?
- Muita
bonita, festa demais junto Magdalena...
Chegáramos na
roda onde estavam os pais e os irmãos de Magdalena.
O Guarda-Mor
me apresentou ao seu genro tenente Vicente Domingos Pereira da Cunha.
O tal tenente
dava notícias do julgamento dos revolucionários, fardado em uniforme de gala,
mostrava o garbo da Guarda Nacional.
A farda azul,
com dragonas de ouro franjadas; Botões também de ouro, tinha a tiracolo, a
espada embainhada.
Os botões brilhavam
como estrelas naquele fundo azul, refletindo os raios.
Calças frisadas
e botas pretas reluzentes davam ao tenente, ares de grande patente, tal a
postura ereta dentro daquele uniforme.
Desde o final
da revolução, todos os oficiais da Guarda Nacional, apresentavam-se com seus
uniformes durante os festejos civis e religiosos.
Hábito que
fora esquecido durante algum tempo, após a visita de D. Pedro I a região da
Serra do Caraça.
Quando D.
Pedro I passou por lá, vários títulos e patentes foram dados aos seus mais distintos
moradores, inclusive o de barão ao eminente filho de Catas Altas, João Batista Ferreira de Souza Coutinho.
Uma
manifestação de gratidão pela acolhida em Nossa Senhora da
Rainha de Caeté, Catas Altas e o Caraça, a vaidade dos agraciados era
demonstrada nos dias de festa, oportunidade que tinham de se exibirem com os
trajes que ficavam guardados nos baús com todo o cuidado.
Se Petrópolis
era a cidade dos imperadores, Catas Altas poderia ser chamada mais tarde, de
Vila Imperial, pela oportunidade que teve em receber pai e filho.
E era por todo
orgulho de seus moradores, que o arraial espelhava uma nobreza diferente das
demais localidades, pois preparou esmeradamente para receber Suas Majestades,
além da influência que o estabelecimento de ensino do Caraça, concedia aos ali
nascidos.
Tomando de
amores por aquela terra e especialmente por uma moça, comecei a freqüentá-la
sempre que podia; fazia do sobrado do Emery meu patrício, o ponto de apoio para
introduzir-me na sociedade local.
Sua linda casa
avarandada logo depois da praça, ficava em frente da residência do Guarda-Mor e
motivo ainda maior para tornar-me assíduo freqüentador.
Aquela
residência guardava a nobreza da estalagem em que parte da comitiva de D. Pedro
I hospedara, lembrança que ficara apesar dos l5 anos decorridos da sua visita.
Dona Rita
Benedita, mãe de Magdalena, tinha prazer de contar as facetas da visita, pois o
imperador além de dar a sua mão para ser beijada, abaixou para oscular a face da filha Maria Raymunda, ainda muito menina.
Durante anos,
a visita do imperador inspirava doces lembranças:
No beija mão,
o tropeço de Sá Bonifácia sobre o tapete em frente ao trono improvisado, o
mordomo pisando os pés do português Martinho Martins, exatamente no momento de
apresentá-lo à Sua Majestade.
Os tapinhas
que a meninada ganhava no rosto e o choro em vez de sorrisos, ao recebê-los.
A conversa
animada do imperador com o alferes José Maria Viegas, ao saber que ele era dono
de belos animais de montaria.
O bate boca
entre ambos, rendera ao imperador um presente: A mula de estimação que o Viegas
dizia à sua esposa D. Maria Claudina,
jamais vendê-la.
Realmente ele
cumpriu a promessa; não vendeu, pois foi dada a Sua Majestade para retorno de
sua longa viagem...
O que deixou
Sua Alteza eufórica, foram os presentes oferecidos pelo capitão João Batista de
Souza Coutinho, o ex dirigente da mina de ouro
do Gongo Soco.
O inglês Cel.
Emery, depois da partida do imperador troçava dos parentes que mostravam a mão
tocada por ele no beija mão na casa do padre vigário.
Homem viajado
e com cultura européia, seduzia com sua elegância e ninguém se ofendia com suas
brincadeiras a respeito como os amigos bajulavam o Imperador.
Segundo ele,
até o Francisco Gomes da Silva, o “Chalaça“
se ainda fosse secretário do príncipe, ficaria vexado com sua pouca criatividade bajuladora
em relação ao povo de Catas Altas.
Dona Theodora esposa do capitão John Emery,
quando foi apresentada ao secretário particular do príncipe, achara que fosse o mesmo famoso mulato
“Chalaça “ que o povo brasileiro
detestava, ela ignorava que em 2 de
outubro passado, o homem válido do imperador, fora demitido.
Assentado e
anotando num livro o que mandava D. Pedro, o substituto do Chalaça não deixava
de correr os olhos sobre tudo que via, especialmente nas mulheres que estavam
na fila para o beija mão.
Segundo me
contara o Emery, fora o secretário antecessor e pilantra que indispusera o
Imperador contra o notável ministro Barbacena.
Coisas e
futricas da Corte.
Não era só na
pequena comunidade de Catas Altas que futricavam as figuras importantes, também
lá na cidade de São Sebastião a matraca
ressoava no Largo de São Cristóvão.
- Imagina!
Aqui até há
pouco tempo, os padres missionários registravam uma porção de meninos com o meu
sobrenome.
Eram tantos
que cheguei a reclamar do senhor vigário.
- Mas eram ou
não, seus filhos?
- Ora! Como
poderia saber depois de tantos meses e até de anos!!!
A Theodora
coitadinha, que nunca me deu um filho, ao ficar sabendo dos tais batistérios;
me arreliava como se eu fosse o culpado de tanto cristão tomando o meu nome
emprestado.
Aqui, nenhum
homem pode criticar as aventuras dos outros, os missionários registraram muitos
meninos pagãos nascidos nas senzalas,
com o nome de seus donos.
- E quem é o maior
povoador de Catas Altas?
- Ah! Por
enquanto ganha disparado o Guarda-Mor, com 10 filhos legítimos, 7 naturais e
mais uma dúzia não registrados.
- Ora! O Guarda-Mor Thomé é um homem sério e
ocupado...
- Muito meu
caro patrício, 24 horas por dia dedicado aos seus afazeres!
Debochado ao
contar suas aventuras, não escondia sua paixão pela mulher de cor.
O Emery e o
Bull eram os nossos cônsules em
Catas Altas , cativando com suas pandegas e anedotas nós
ingleses, que visitávamos a Vila.
Meus
pensamentos divagavam sobre tudo que o Emery e o Bull me havia contado, quando
vi a roda onde se confabulava a família do Guarda-Mor se dispersar.
Como minha
postura próxima da roda era de espera, o Guarda-Mor pressentiu que eu desejava
falar com ele, aproximou-se cumprimentando
amavelmente.
- Capitão, que
surpresa nesta festa religiosa!
- Para que
Deus venha a nós, temos que bater primeiro a sua porta, disse Edward olhando
para o Guarda Mor...
Bull verteu
para o português o que dissera o minerador.
O Guarda-Mor
olhando para o estrangeiro, não sabia se o inglês tinha realmente se referido
ao Deus todo poderoso, ou se fazia analogia as dificuldades que tinha para
conversar com ele.
- O senhor já
está voltando à sua casa Coronel Thomé?
- Não meu
filho, somente minha esposa e as filhas é que subirão carregadas, não fica bem
a um homem válido andar de liteira...
A festa lhe
fizera bem, pois parecia estar de muito bom humor.
- Negócios,
senhor Hosken?
- Oh, não
coronel! Amenidades de moço...
- Como assim
meu filho?
- Coronel, o
que desejo conversar com o senhor é um tanto particular e seria grosseria da
minha parte abordá-lo aqui na rua!
- Então por
que não vamos conversar em minha casa?
- Com muita honra
Coronel!
Caminhando
juntos, subiram o calçadão irregular da ladeira do Rosário que ia dar no largo
da matriz.
Na subida,
acompanhava-os o John Bull, sempre como interprete.
De vez em
quando o Guarda-Mor parava para respirar, tomava um fôlego e continuava a
caminhada nos passos que sua idade permitia.
- E as minas
de ouro, Capitão?
Era a primeira
vez que ele dirigia a minha pessoa, dando a patente que eu tinha na Mina.
Sinal evidente
que deveria ter tomado informações sobre a minha pessoa, desde que me vira
cortejando sua filha Maria Magdalena.
Ao ser
apresentado a ele, nunca revelara a minha patente, nem tão pouco em Catas Altas , sabiam do
meu posto na mina do Gongo Soco.
Eu acompanhei
os 4 negros encostando num portão lateral a liteira vazia da família do Guarda
Mor.
O senhor ainda não sabe das boas novas do
Gongo?
- Oh meu
filho, as notícias que aqui chegam não merecem fé!
Neste canto;
quem conta um conto, aumenta por conta!
- O senhor tem
razão Coronel, porém o que
espalharam sobre a produção do Gongo
Soco é verdade e nós ingleses estamos
muito felizes...
A prova cabal
do que digo, são os trabalhos que estamos estendendo por outros lugares, além
de Gongo Soco; o que não seria possível se aquela mina não estivesse dando
resultados.
- Nós estamos
torcendo pelo êxito de vocês ingleses, capitão!
Quem sabe se
também a Catas Altas, não venha o empreendimento de vocês?
- Certamente
que sim, Coronel!
Esta é uma
razão da minha estadia aqui...
- Pena que nem
sempre chegam boas notícias como esta talvez quem as conta, aumentam por conta!
O trocadilho
deveria querer dizer alguma coisa que o Bull não entendeu, muito menos eu...
Chegando a sua
casa, vi a liteira ainda do lado de fora junto ao vão da porta principal; as
senhoras já tinham descido dela e certamente subido ao andar superior, parte
íntima do sobrado.
Dona Magdalena
fizera os escravos permanecerem na porta, a espera da dispensa do marido.
Perfilados em
trajes iguais os quatro pretos aguardavam as ordens do Guarda-Mor.
- Podem
guardar a liteira e ficam dispensados por hoje disse o pai de Magdalena .
-Vamos entrar
convidou o varão, caminhando para uma porta a direita do corredor; torceu uma
enorme chave do seu gabinete de trabalho.
Rangendo os
ferrolhos, ele comentou:
- Bem mais
velha do que eu...
Esta casa foi
do meu pai Paulo Mendes Campello.
- Se o senhor
é velho Coronel, não parece!
- Exercícios,
meu filho!
Andando
sempre, para azeitar os cambitos...
Eu não entendi
o que ele disse, não sabia o que era os cambitos...
- Estamos em
casa senhores, sintam-se à vontade!
Sentando numa
poltrona de Jacarandá forrada de palhinha, apontou duas cadeiras para que
também assentássemos.
- Esta eu
mandei forrar com palhinha para não esquentar os meus fundilhos, às vezes
permaneço por muitas horas nesta posição.
Tomando uma
campainha de mão, sacudiu por três vezes, não demorou a aparecer um negro forte
de libré, tal como os outros da liteira que carregaram as damas.
- Os senhores
devem ter notado as semelhanças deles, não é verdade?
São todos
irmãos do mesmo pai, com escravas diferentes, nascidos quase na mesma época.
Eu já tinha
notado como pareciam, porém achei que era o uniforme que dava aquela semelhança
entre eles.
Sendo da mesma
idade, tamanho e envergadura, facilitavam
o transporte de seus senhores, não mancando e distribuindo uniformemente
os pesos.
Nos dias de
festa, todos os escravos vestiam-se com o mesmo uniforme, principalmente nos
dias comemorativos de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, protetores dos
escravos.
João Bull
conhecendo-os há longo tempo, disse:
- É verdade
que o senhor Guarda-Mor rejeitou uma oferta considerável do Barão, por eles?
- Dinheiro não
é tudo, senhor John!
Mais vale um
gosto que 6 vinténs.
O coronel Tomás
Pinto de Figueiredo, que alias é meu amigo tentou levá-los também, para
mandá-los para a corte onde trabalhariam; Eu fui sincero com ele:
Negros meus,
nascem e morrem comigo, não há ouro que vale às peças.
- Os senhores
devem estar com sede, o que bebem?
- Água,
coronel!
Responderam juntos os dois igleses.
- Hoje é dia
de festa, tenho um bom vinho português, aceitam?
- Preferimos
água, por sinal a melhor que se bebe neste país, disse o Bull.
Os dois
estrangeiros conheciam as inúmeras fontes em suas andanças pelos caminhos das
gerais.
- O senhor tem
razão senhor Bull, água igual a de Catas Altas não existe, nasce na serra ou
nas minas e corre na pedra sem nenhuma impureza.
Sei que os
senhores fumam; não se furtem aos prazeres...
- Obrigado
coronel, é meu hábito não fumar quando em visitas, ainda mais que meu vício é o
cachimbo.
- Afinal, o
que me dá a honra da presença dos dois ilustres estrangeiros?
Aquele momento
teria que chegar, porém não esperava Eduardo, que partisse do pai de Magdalena
a indagação do motivo da presença deles
ali.
Seus
pensamentos aceleraram; Como abordar um assunto tão melindroso, ainda mais que
fora obrigado a trazer o Bull para servir de seu interprete.
Evitando
gaguejar e antes de entrar direto no assunto Edward disse:
- Ora, Coronel
!
Antes quero
expressar a minha simpatia por sua família, o que não deve ser nenhuma novidade
para o senhor, pois todos que a conhece ficam encantados...
- É bondade do
moço!
- Não coronel,
esta admiração vem da distinção como vejo o senhor e seus filhos, fruto de uma
educação esmerada e rara neste país!
Somente a um
filho do capitão Paulo e de dona Anna, poderiam advir tão preciosos frutos...
O Guarda-Mor
ao ouvir do moço a citação dos nomes de seus pais, estranhou como o estrangeiro
poderia conhecer tão bem seus familiares.
Aquilo
intrigou ao Guarda-Mor, não era somente ele que sabia da vida dos que rodeavam
suas filhas, também o godeme conhecia a sua...
Pensativo o
Guarda-Mor perguntava a si mesmo:
Que diabo tem
o Godeme na cabeça para imiscuir-se na minha vida?
O inglês
continuou falando que era solteiro e queria constituir família no Brasil...
- Que tinha
ele o Guarda-Mor a ver com a vida do outro!
- O senhor
poderá estranhar minhas confidências, entretanto eu as declaro levado pelo
sentimento que me inspirou a sua filha Magdalena...
Vermelhos
estavam, o velho, o jovem e o tradutor; todos como assentados a frente de um
confessionário.
Gaguejando o
Edward completou:
- Aqui deveria
estar conforme costumes da minha terra e os do Brasil, os meus pais ou outra
pessoa da família, porém não as tendo, trouxe o meu patrício e amigo Bull para
representá-los.
Bull olhava,
ora para Edward, ora para o Guarda-Mor, com a mesma cara dos tachos com o calor
sob os fundos.
- Que “merda“
quer dizer o rapaz, pensava o
Guarda-Mor!
- Eu vivo sem
meus familiares no Brasil, Coronel!
Alguns que
chegaram a se estabelecerem aqui no Brasil há muito voltaram...
Meus pais estão
na Inglaterra...
- E daí? Perguntava a si mesmo o Guarda-Mor...
Repentinamente
ele percebeu onde queria chegar a conversa do godeme, ele não tinha como sair
dela, sem dar a devida atenção que os visitantes mereciam.
- Eu procura
coronel, pois querer licença ver
sua filha Magdalena.
O Guarda-Mor
percebeu ligeiras tremuras nos lábios do inglês, sinal de que não estava tão
seguro como entrara em sua casa.
O inglês não
foi explicito ao dizer que queria ver em vez de falar que queria cotejar sua
filha.
Melhor pensou
o Guarda-Mor, ele teria tempo com desculpa de consultar a filha e esposa, para
dar uma resposta definitiva.
- Olha senhor
Hosken!
Mal conhecemos
um ao outro, o mesmo digo do senhor para com a minha família e minha filha;
entretanto, não posso proibir ninguém de olhar para ela...
A evasiva do
coronel provocou o despertar do amigo do Edward Hosken e ele desculpando o
patrício, disse claramente:
- Capitão, meu
amigo ainda não fala bem a sua língua, por isto disse “ver “ em vez de
cortejar...
- Ah! Agora
entendo, disse o Capitão Thomé fingindo-se que não havia entendido o que pedira
o inglês.
O jovem me
desculpa a franqueza, pois o senhor é estrangeiro e nada sei do da sua vida...
Aqui no Brasil
senhor Hosken, são os pais que escolhem os futuros pretendentes a mão das
filhas, o que não é o meu caso, pois sou bastante liberal e compreensivo aos
sentimentos de meus filhos.
Além das
conveniências sociais senhor Hosken, o que não é o caso com o senhor, há os
impedimentos religiosos que a igreja Católica determina.
Em vista do
que exponho, peço aguardar minha resposta por mais alguns dias...
Edward nem se
lembrara que a fé que professava, poderia ser um empecilho ao seu noivado e até
ao casamento futuro.
Ele era
anglicano de fé e Magdalena católica...
Vermelho com a
resposta, ele não sabia quais as etiquetas a seguir tendo em vista a
surpreendente resposta do Guarda-Mor.
Ficaria ali
por mais tempo ou deveria sair de imediato?
Bull mais
afeito aos hábitos brasileiros, disse em meu nome:
- Meu
companheiro e afilhado senhor Thomé, vai aguardar ansiosamente sua resposta...
Pálido e
pedindo licença Edward se juntou ao Bull, despedindo-se do Guarda-Mor.
Constrangidos
separaram: Os dois estrangeiros a caminho da porta e o senhor Thomé entrando
para o interior da casa.
Dona Rita
vendo o marido vermelho e o pisar duro sobre os degraus, pressentiu que, a
conversa com o inglês não fora bem recebida...
Dona Rita
Benedita já tinha sido informada pela filha, do assunto que o inglês Edward
teria com o pai.
Ela sabia que ele
mandara alguém tomar informações sobre o procedimento do moço que estava
tentando se engraçar com Magdalena.
O que não
sabia, era que também mandara um mensageiro diretamente à Gongo Soco.
Como um ato
oficial de governo, da parte da guardamoria, o Coronel tinha todo o direito de
se informar dos mineiros que percorriam as datas de seu foro.
O capitão
Thomé conhecia a fama do Yory, Bull e do Emery, todos ingleses com vidas
agitadas e promiscuas...
Quem sabe se o
Edward não seria igual aos outros, e quem garantiria que o futuro pretendente
da filha continuaria depois de casado, aqui no Brasil?
Na escolha de
seus genros, esquecia o senhor Guarda-Mor da sua própria fama de “verga de
rodomão“
Como era
conhecido entre as escravas e outras mulheres, pela paternidade de alguns
filhos naturais registrados por brancas e negras, todas orgulhosas de terem
conhecido na intimidade, a pujança de sua “baraúna“.
Tão cioso com
a educação e os cuidados com suas filhas moças, repetindo sempre para dona
Benedita:
“ -A semente
para germinar depende de duas coisas:
A terra onde
se planta e o cuidado ao regá-las...“
Passado alguns
dias, o emissário enviado ao Gongo Soco regressou com as informações oficiais
da Imperial Brazilian Mining Association e veladamente conseguira por outras
vias a ficha pessoal de Edward Hosken:
l. O homem era herege; ( Era assim considerado
quem não professava o
(Catolicismo)
2. Fora
enrolado com uma mulata lá do Gongo.
3. Tinha uma
cria devendo estar entre 9 ou 10 anos de
idade.
4. Mineiro com
um alto posto na organização em que trabalhava.
5. Descendente
de gente honesta e mineradora na Inglaterra, inclusive filho
do Comissário da Imperial Brazilian que
negociou a compra da
mineradora do Gongo Soco.
O que escapou das informações não relatadas
era que a tal mulata já era
falecida.
Com aquelas
informações, o coronel Thomé procurou o vigário padre Francisco Augusto Xavier
de França para conciliar-se.
Padre
Francisco como Bom Pastor, já andara sondando a vida dos mineradores ingleses
que trabalhavam na região do seu pastoreio.
Alguns deles,
mesmo os casados além de: anglicanos ou protestantes, levavam uma vida
desregrada.
Sua forania
depois da invasão dos ingleses ficara conturbada com o mau exemplo,
principalmente dos chefes das minerações.
Não era por
ouvir que ele se queixava e ao mesmo tempo denunciava, os registros dos batistérios
paroquiais comprovavam os fatos...
Filhos
naturais às dezenas, uniões sem casamento e comportamento desrespeitosos para
todos os cantos.
Também pudera!
O comissário chefe da mineração era o pior exemplo.
Aqueles fatos
estavam prejudicando até o renome do vigário, pois o Arcebispado de Mariana
reclamara providências na moralização dos costumes.
A conversa com
o vigário foi à gota d’água que encheu e transbordou do balde do zeloso pastor.
Depois do
jantar, ainda sentados ao redor da mesa, toda a família esperava o “Deo
gratias“ quando a mãe disse:
- Quero que
vocês permaneçam sentados para ouvirem o que seu pai tem a dizer:
- É duro para
um pai, as vezes ter que tomar resoluções que magoam até a sua própria pessoa,
o que não dizer de atitudes que afetam a vida dos filhos:
Somos pais
compreensivos e liberais até demais, deixando à vocês escolherem os seus rumos
e a escolha de seus futuros cônjuges; coisa que adotamos por respeito a
felicidade de vocês.
Porém não
podemos concordar com sentimentos que venham
afetar a moral e a crença de vocês.
Antes que o
pai acabasse a sua peroração, Magdalena começou a chorar e os irmãos ficaram
sem saber a razão do seu choro convulsivo.
O Guarda-Mor
fitando-a, disse engasgado:
- O moço
inglês não é para você minha filha!
Não professa a
nossa religião e além de “herege“ tem antecedentes que você desconhece e que
não me cabe aqui revelar.
Suas lágrimas
nos comovem e elas enfeiam o seu rosto agora, mas tenho certeza que elas
transformar-se-ão em pérolas ao encontrar no amanhã um moço que Deus lhe
reservará.
Saindo
correndo após ouvir as palavras do pai, o céu parecia ter desabado sobre ela.
Sem retirar as
roupas, caiu pesadamente sobre sua cama; a mãe e as mucamas estavam ao seu lado
confortando-a e ela começou a fazer vômitos.
Segurando sua
testa, dona Rita tentava socorre-la sem meios para paralisar tudo que vertia do
jantar que acabara de alimentar.
As mucamas
ajudavam como podiam, trazendo água, toalhas, e roupas de cama e uso pessoal
para que elas trocassem as maculadas.
Depois da
higiene, trouxeram um calmante e deram para que ela tomasse.
Calada, pálida
e quase desfalecida, permaneceu deitada até que dormiu ainda soluçante.
Dona Rita e a
irmã Maria Raymunda permaneceram ao lado da cama, no quarto completamente às escuras.
Dr. Manoel
Moreira de Figueiredo, chamado para socorrê-la, estava viajando para os lados
do Caraça e só voltaria no dia seguinte.
Os dias que se
passaram após a tomada de decisão do pai, foram penosos para Magdalena.
Ela deixara de
fazer as refeições em comum com a família, não saia do quarto e não queria
receber ninguém; nem as amigas mais íntimas.
Dona Rita e as
irmãs tudo faziam para distraí-la dos fatos que magoara a sua pessoa.
A tia Cocota
que viera de Ouro Preto para as comemorações das festas do Rosário, também
ficara apreensiva com a reação da sobrinha; ela achava que teriam que fazer
alguma coisa para tirá-la daquela tristeza e mutismo em que se fechara.
Ela em
conversa com a irmã Rita, chegara a propor para levar Magdalena por algum tempo
para sua residência em
Ouro Preto.
Mas os pais
sabiam que aquela viagem paliativa não bastaria para afastamento do inglês.
Cocota pensava
como poderia ajudar a irmã a resolver o problema da sobrinha.
Lembrando do
estabelecimento de ensino onde as suas duas filhas estudavam em Ouro Preto e fora há
pouco tempo aberto, propôs que Magdalena
fosse morar com ela durante um certo tempo e com desculpa de educar-se, freqüentasse a escola até que esquecesse por completo o impulso natural de
namoro de toda mocinha naquela idade.
Suas duas filhas seriam companheiras nos
estudos e na tentativa de afastá-la da companhia indesejável do inglês.
Desde 1.840,
sob a direção do professor Francisco de Assis Peregrino, estava funcionando uma
escola para formação de futuros professores, a primeira Escola Normal da
Província.
Nos primeiros
4 anos, funcionara em caráter experimental e assim procedendo, o professor
conseguiu estabelecer seu estatuto dentro das normas exigidas pelo governo.
Funcionando em
2 horários, de 9 às l2 horas e das l4 às
l7 horas, atendia uma boa quantidade de
jovens.
Como uma das
primeiras escolas, passara dificuldades, porém a mentalidade da família
brasileira estava evoluindo e em vez de mandar seus filhos estudarem em
Portugal, o estabelecimento recém fundado, passara a dar abrigo aos que queriam
aprofundar-se no ensino, principalmente para moças.
De formação
francesa, seu primeiro diretor, professor Peregrino direcionava a escola para
um método simultâneo, contrário ao ensino individual que até então vigorava nas
poucas escolas brasileiras.
O colégio foi
instalado na antiga Casa dos Ouvidores de Ouro Preto.
A Cocota
gozava de simpatia da sociedade ouropretana, casada com um funcionário público,
o que facilitava o engajamento dos filhos e sobrinhos na escola do professor
Peregrino.
Todos os anos
a tia de Magdalena vinha cumprir uma promessa à Nossa Senhora do Rosário em Catas Altas ; promessa
que fizera quando nascera a primeira filha.
Ela deixava em Ouro Preto o mais belo
templo consagrado a Nossa Senhora do Rosário, para cumprir promessa na
igrejinha simples da irmandade em Catas Altas , a 8 léguas da capital.
Ali no sobrado
do Guarda-Mor, tinha um aposento reservado para ela, tanto assim que todos o
conheciam por quarto da tia Cocota.
A irmã Rita, o
cunhado e os sobrinhos eram apaixonados por ela, pois além da guarida que dava quando iam à capital, era
perfeita contadora de histórias e mestra em promover casamentos na família.
Foi através
dela que os parentes ficaram sabendo que um dos fundadores de Vila Rica era o
antepassado do tenente Domingos Vicente Pereira da Cunha, noivo de Maria
Raymunda, sua sobrinha.
Um tal de Nilo
Pereira da Cunha espalhando a sua
descendência pela província.
Ela contava
por ouvir dizer que, os Pereiras da capitania de Pernambuco, descendo para a
Bahia, por volta de 1.660 juntaram-se aos Cunhas, da Quinta dos Cunhas de
Portugal, vindo para o Brasil formando uma das maiores famílias brasileiras.
E que o
governador da capitania Real da Bahia de Todos os Santos, fora um parente de nome
Matias da Cunha, também descendente de Fernão Dias da Cunha, o administrador
das terras do rei D. Afonso de Leão, vindo mais tarde, a participar como
conselheiro do reino.
Dizia também a
Cocota que o marido dela, fora a primeira ponte entre a família Mendes Campello
e os Pereiras da Cunha.
Muito ciosa
dos parentes importantes; Um entretanto, não gozava do seu bom conceito:
O
revolucionário José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, o rebelde conforme o
chamava depois da Revolução.
A sugestão de
Cocota para levar Magdalena para Ouro Preto, foi em principio bem aceita pelos
pais que providenciariam o enxoval para a filha levar.
Nada diriam a
Magdalena, até que as coisas fossem acertadas no estabelecimento de ensino da
capital.
A noite, portas fechadas do seu quarto, o capitão Thomé ficou inteirado da proposta da
sua concunhada.
Solução
magnífica para por fim a um amor impossível, entre a filha e o inglês herege.
Lista de
compras para o enxoval da menina, foi preparada e entregue a tia para providenciar em Ouro Preto ; se ela
suspeitasse de alguma coisa, diriam que ela estava ficando moça e precisava
andar mais bem arrumada...
De Ouro Preto,
através das tropas dos Viegas, ela mandaria algumas roupas de uso pessoal:
quanto às de cama, ficariam lá mesmo a espera da chegada da sobrinha.
No dia de
finados, 2 de novembro de l.845, Cocota voltou à Ouro Preto.
Às 4,00 horas
da manhã, estavam todos de pé para despedirem-se da tia, que levava além da
bagagem pessoal, um cargueiro de frutas dos quintais de Catas Altas.
Folhas de
bananeira recobriam os balaios para protegê-las do Sol e entre as frutas,
jabuticabas fresquinhas.
Por sorte da
Cocota, o primeiro dia de novembro, amanhecera ensolarado, coisa rara naquela
fase do ano, sempre chuvosa.
Vestida de
camisola e robe, Magdalena levantara para despedir da tia, mas lembrara do que
combinara com Edward para o encontro secreto marcado para o adro da capelinha
de Santa Quitéria.
Colocou um
vestidinho de chita que Edward ainda não conhecia e seria próprio para o
pic-nic.
A mãe
desaprovou a veste dizendo:
- É um dia de
festa minha filha; consagrado a Todos os Santos!
Com o cabelo
preso num coque, parecia desiludida naquele desleixo natural depois de
levantar-se.
- Vou fazer um
passeio com as primas no campo, mãe!
Não vou
colocar um vestido melhor, sujeito a sujar e até rasgar.
Os pais
controlavam os passos da filha, vigiando os do inglês que desaparecera de Catas
Altas.
Logo depois
que a tia partira, foram para a igreja da matriz assistir a missa do padre
Xavier.
Ela evitara
também adornos e maquiagem, demonstrando completo desinteresse pelas coisas
mundanas, o que a mãe achara natural depois que sofrera a negativa do pai ao
seu namoro.
Com Miúda,
combinara que a mucama levasse na cesta do pic-nic, seus cosméticos, espelho e
pente para embelezar-se para o namorado.
Às 7,00 horas,
Sol já despontado na Serra do Pinho a turma de 7 moças partiu com algumas
mucamas em direção da capelinha em frente da mina do Pitanguí.
Cantando e
falando em voz alta, elas iam acordando os dorminhocos que prolongavam o sono
na manhã do dia santificado; em vez de seguirem pela via principal, entraram
pelo beco do Santíssimo, margeando o fundo dos quintais das principais mansões
de Catas Altas.
Com o piso
irregular dificultando os passos, retiraram as sandálias e alpercatas,
colocando os pés sobre as pedras frias do calçadão.
A sensação de
liberdade que as sinhazinhas não tinham dentro do lar, sentia naquele ambiente
e no simples gesto do desnudamento dos pés.
Após término
da via calçada, incomodadas pela areia da estrada que dava continuidade ao
beco, voltaram a colocar os calçados.
Aproveitando a parada, Magdalena retirou os
apetrechos de pintura que Miúda carregava, e começou a embelezar-se para o
encontro programado com Edward.
Ana Rita, sua
prima, veio ajudá-la na maquiagem, passando o ruge e o batom que faltara ao seu
rosto, durante tanto tempo.
Soltando o
cabelo preso pelo coque, voltara a ser a menina alegre do Guarda-Mor, como era
chamada pelos mais velhos.
Admiradas com
a nova face, as amigas queriam saber o motivo daquela transformação.
- Tenho
passado tanto tempo sem me mostrar, no silêncio da minha infelicidade, que
hoje quero dar a vocês a razão
contrária, indo ao encontro de quem muito quero.
Magdalena
virou outra depois do arranjo no cabelo e as cores da maquiagem que deixara de
usar por tanto tempo.
Ela que
evitava colocar o ruge, pois sempre teve um rosto de maçãs vermelhas,
necessitava naquele dia da tonalidade que o Sol sempre lhe dera.
O que se passa
com você, criatura?
- A liberdade,
os sentimentos a flor da pele!
- Gente, que
transformação é esta tão de repente?
- Ela tinha
medo de confessar o seu encontro com Edward e por as coisas a perder...
Miúda olhando
para Magdalena comentou:
- Nhá, sê tá
tão linda!
Pru mode de
que ancê nu fica sempre assim?
Magdalena
sorrindo respondeu para a mucama:
- Hoje é um
dia muito especial, Miúda!
- Uai, gentes!
E todo dia, num é?
- Hoje é dia de
Todos os Santos, especialmente de um que me quer muito bem!
- Qui santo
ancê tá falando, Nhá?
Santo Eduardo
Hosken...
- O godeme,
Nhá?
- O inglês,
você quer se referir...
- O memo, Nhá!
- Pois é Miúda,
ele é a razão deste milagre.
No último
degrau da escadaria de acesso ao passeio da igreja de Santa Quitéria, estava
Edward conversando com John Bull e mais um outro estrangeiro que as mocinhas
não conheciam e que depois ficaram sabendo tratar-se de Thomaz Tombelinde.
- Magdalena,
olha quem está ali!
- Quem?
Perguntou fingidamente...
- É o inglês
da Mina do Gongo-Soco!
Numa veste de
linho branco, gravata borboleta prateada, enfiada por baixo do colarinho
engomado, a casaca descia pelo corpo, sem uma única ruga.
O calçado
preto de pelica lustrosa, mostrava a Magdalena um outro homem que ela nunca
vira assim vestido.
O inglês
estava irrepreensível naquele traje...
- Como ele era
bonito!
Pensava sem
dizer nada, pois pela primeira vez ela o via de terno, bem diferente das roupas
que usava como minerador.
Ele e John
Bull fumavam cachimbos, conversando sem dar aos que chegavam a impressão de que
o encontro fora combinado.
Magdalena
ficara implicada com a roupa que vestia, pois recebera dele, instruções para
vestir-se da maneira mais simples possível.
E ele bem a
sua frente como um dândi...
Sua imagem era
tal qual o retrato de Teófilo Ottoni, estampada no jornal, O UNIVERSAL DE OURO
PRETO, o político encarnado no corpo do inglês.
O mesmo
penteado, cabelos partidos da esquerda para a direita, a expressão dos olhos, e
a barba longa e o bigode por aparar.
Não, aquele
não era o seu Edward!
Era o
revolucionário que todos os moços e alfaiates de Minas procuravam imitar.
Não foi só ela
que se deslumbrara com a figura do minerador transformado naquele traje.
- Que homem!
Me belisca! Me
belisca dizia Maria Theodora...
Rindo, subiam
os degraus restantes sem verem onde pisavam...
- Good morning, Miss...
Os ingleses
expressavam ao mesmo tempo os cumprimentos.
Como Bull
retirara o chapéu da sua cabeça e inclinara o corpo numa demonstração afetada,
as moças deduziram que eram cumprimentadas
Como se fosse
um eco, veio em coro:
- Bom dia, bom
dia, bom dia...
Todos
começaram a rir numa uníssona gargalhada.
O encontro se
dera tão espontâneo, que ninguém poderia dizer que ele fora marcado por Edward
e Magdalena.
As
apresentações foram feitas para os que não se conheciam e o Edward deixou o
cumprimento final, para Magdalena.
Com a cara
fechada ela denunciava que algo há fizera descontente.
- Magdalena, I apologise, because, I don’t undertand...
A maldita
língua inglesa vinha espontaneamente, ao se dirigir aos brasileiros.
Repetindo em
português, falou devagar:
- Magdalena,
eu pede desculpa saber que “you, não fala com eu!”
Ela começara a
se queixar:
- Primeiro:
Você não cumpriu o trato quanto às roupas que deveríamos vestir:
Segundo: Sou a
última a ser cumprimentada por você.
- Que queres
que eu sinta com tanto desprezo?
Eu não
entendia o que queria dizer: “tanto desprezo“
Sem nenhuma
maldade perguntei ao Bull, ele me esclareceu.
Eu não sabia
que tinha cometido uma bobagem ao pedir o seu socorro...
Era uma
confidência que as mocinhas não gostam de revelar, e eu tinha acusado os
sentimentos dela para comigo.
Eu tive que
explicar a razão por que deixara o nosso cumprimento por último, mas não sabia
que sua raiva maior, era pelo contraste de nossas vestes.
- Nossas
roupas tinham que ser diferentes, Magdalena!
- Não sei por
quê?
- Para parecer
que não combinamos o encontro!
Ela continuou
a não entender.
Se eu vestir
roupa igual, ficar claro, eu e Magdalena marcar encontro...
Ele tinha
razão, ela já sorria por sua matreira forma de pensar as coisas.
Prendendo a
sua mão agora oferecida, não conseguia retirá-la, quando ela apelou, ele abriu
a palma da sua e deixou que a dela fugisse vagarosamente no contato íntimo.
Os olhos
verdes do inglês, não viam outra coisa senão os de Magdalena...
- Você está
linda assim vestida!
- Mas, não
combina com o seu traje!
- Que importar
roupas, se estar juntos?
Ele tinha
razão, ela queria tanto como ele, ficar juntos...
Ao voltar a
afagar as mãos de Magdalena com as suas, ela notou algo estranho no contato da
mão esquerda dele com a dela.
Olhando disse
sem pensar:
- Você se
machucou Edward?
- Há muito
tempo Magdalena! Bomba explodir e meus
dedos danificar, mas Dr. Cuming
recuperar...
Magdalena
ficou vermelha ao notar que ele encolhera a mão; já era tarde pela gafe que
cometera...
Afastando-se
do grupo, ambos caminharam para o fundo do adro; frente a frente da maciça
serra que estava à frente dos olhos.
Ver anexos nº 14 e 15.
Lá no alto o seu maior pico visto de Catas
Altas, a esquerda o Pitanguí com suas três agulhas escarpadas apontando para o
céu.
Do platô divisavam a descortinada vila com
seus telhados coloniais, ressaltando principalmente os da matriz no ponto mais
alto do centro do arraial.
As cascatas
rolando aos saltos da serra, pareciam fios de prata em cordões sobre o colo
daquele corpo lindo que a natureza
criara.
Quando se
fazia silêncio entre nós, ouvíamos o murmúrio da água batendo nos degraus
sucessivos das banquetas alcantiladas.
A mais pura
água descida do céu.
Edward vendo
aquela beleza, perguntou para o Bull:
- Are you enjoying your stay?
- Yes, I like... very much...
Ele não
precisava perguntar à ninguém se gostava daquele lugar!
Até ele Edward
começara a simpatizar por Santa Quitéria.
- Santa
Quitéria muita bonita, Magdalena!
Eu gosta daqui
como gosta você, darling!
- O que é
darling?
Rindo ele não
queria fazer a versão ao português, receoso dela vexar-se.
- Por favor,
traduza o que você disse...
Edward
continuou sorrindo sem traduzir o que ela queria.
- Se você não
disser para mim, vou pedir ao Bull...
Era melhor
ouvir de sua boca, que traduzida por Bull.
- Eu disse
você, palavra: “Que-ri-da”
Magdalena fez
um beicinho como se fora ofendida pela audácia dele; mas no íntimo a vaidade
fez seu coração acelerar em descompasso.
- Magdalena,
aqui tão bonita, eu quer quando ir embora para lá, (ele apontava para o céu)
ficar aqui, sempre, sempre...
A namorada não
entendia o que ele dizia; Edward então falando em inglês, pediu ao Bull que
traduzisse para ela.
Ele fala Miss,
que se ele morrer no Brasil, pedirá para que corpo seu descanse aqui para
sempre...
O vento
levantava discretamente o seu vestido, ela voltava com suas mãos o que a
teimosia do vento fazia subir.
Seu roupa is very, very fine!
A leveza do
tecido teimava em flutuar para desespero dela.
Ela não sabia
se vigiava sua saia, ou os olhos dele...
Aproximando-se
dela, Magdalena afastou-se medrosa, porém tropeçou numa pedra que estava atrás
e desequilibrada, tentava recompor o equilíbrio; ela não tinha onde se firmar,
senão no corpo dele.
Foram suas
mãos que não deixaram o corpo dela tombar para trás.
Desajeitadamente
ela entrelaçou-se a ele e encontrou o equilíbrio que precisava.
- I love you! I
love you...
Trêmula, ela
adivinhou as palavras que eram ditas em inglês.
Seu rosto
estava tão perto!
Os fios da barba
chegaram a fazer cócegas em seu rosto...
Atrás da
igreja, o telhado e a parede faziam sombra dos raios solares que vinham de
Leste.
Sobre o
gramado estenderam toalhas e sobre elas, os cestos com os salgados e quitandas
dos fornos caseiros.
As moças de
Catas Altas aprendiam desde cedo, a conquistarem seus futuros esposos pela
boca; no cesto uma variedade de salgados.
Da matriz de
Nossa Senhora da Conceição chegavam os sons dos sinos e das campainhas
retinindo; sinal que a segunda missa já
estava em andamento.
Missa para os
que moravam distantes, nas fazendas e retiros e que vinham à Catas Altas
cumprirem o preceito de guarda.
Do adro de
Santa Quitéria, avistava-se a praça cheia de animais, uns amarrados nos troncos
à frente das casas, outros nos coqueiros que contornavam o quadrilátero.
Aquela praça
talvez fosse a mais bela que Edward vira até então no Brasil.
- É a missa
dos ricos, comentou Doca Cotta.
Só os
preguiçosos assistem esta missa!
- Não seja
injusta, Doca!
A maioria que
freqüenta esta missa tem que levantar cedo, para chegar aqui ainda a tempo de
assisti-la...
- Quando saí o
casamento? Perguntou Doca para
Magdalena...
- Cala esta
boca, bisbilhoteira!
Maria Raymunda
beliscava Doca por trás.
A missa estava
acabando e lá do alto eles viam o movimento no adro da matriz.
O gramado em
frente da igreja permanecia cheio de gente agrupada, dois terços das pessoas
voltavam ao lar, o terço restante ficava para as cerimônias sacramentais que
eram realizadas após a missa.
Na frente do
sobrado do Guarda-Mor, o movimento aumentava: Gente saindo e chegando numa
atividade incessante; ponto de reunião certa de toda a família do Guarda-Mor
aos domingos e dias santos depois da missa.
A filha Anna e
o marido Antônio Alves,
Antônio e
Policena Alexandrina de Jesus,
Fernando e
Maria Magdalena Ferreira,
Francisco e
Manuela Umbelina,
João Mendes e
Florentina,
José Mendes e
Miquelina Angélica.
Em principio
de Janeiro de 1.846, Maria Magdalena Mendes Campello estava preparando para
seguir para a cidade de Ouro Preto onde iria estudar e Maria Rita já uma bela moça formada em Macaúbas.
Na sala, os
filhos faziam negócios e discutiam política; lá dentro as mulheres trocavam
receitas dos quindins e quitandas de forno.
Para a
negrada, também na cozinha era dia de festa, juntando as escravas ladinas que
os filhos casados do Guarda-Mor traziam como babás, mas que se esqueciam de
seus deveres.
No quintal a
meninada brincava solta, aprendendo com os primos o que não se ensinava na
escola...
Dia bendito e
liberdade completa até com as escravas que se faziam de mestras para os meninos
machos que começavam a engrossar a voz.
Quando surgia
uma denuncia que, uma menina escrava estava escondida com um dos netos, o
Guarda-Mor achava graça e passava a mão na cabeça do fedelho dizendo:
- Campello,
segundo os latinos é instrumento de pesca.
Pescador honra o seu nome!
Era em liberdade que os meninos também faziam
escola.
Dia santificado aos cochichos, que se
espalhavam como fogo em pólvora e como as negras tinham prazer em passá-los à
frente quando se engraçavam com um sinhozinho.
Fornicação que
principiava às vezes no campo, ou nos terreiros e acabavam no paiol de milho ou
no quarto mal cheiroso dos arreios.
Sem tramela na
boca, ouvia-se delas:
- Zéfa tá
prenha, Munda...
- Cê tá besta!
- Ocê sabe, de
quar marruá?
- Memo qui
sabesse nu porquearia a famia do Nhô!
- Entonces é
dele o bezerrinho?
- Tapa boca
nega! Ah se sinhá ouvi de vancê o tró-lo-ló!
Vai sê um
calundu dos diabo!
- Uai! Entonces quar capeta fez mar pr’ela?
- Pregunta pr’ela, uai!
- É, só pode
sê argum fio de Deus!
- Quem falô
com ancê, qui Deus é pai?
- Nu é
perciso, ele nu é pai de todo mundo!
Era verdade,
filho de escrava raramente tinha pai de sangue.
Deus é que era
culpado das safadezas dos brancos e das negras...
- Ancê vai vê;
No dia do batizado do fio de Zéfa, sô vigaio vai iscrivinhá:
“No dia tar,
na matrize de Nossa Senhora Ceição de Catas Artas, na pia bastimar, o vigaio
auxiliar, batizô e pôs santo óios em
Mariano, párvulo fio naturar de Josepha do sô Tumé e de pai discunhicido,
ambos da fregusia de Catas Artas... ”
Zéfa prenha de
2 meses, ainda seria regalo do sinhozinho por seis a sete meses, tal o xodó
como ele esperava a negra no cômodo dos arreios.
Sobre as
mantas que amaciavam o couro duro, elas também serviam para amaciar a furor de
Nhô...
As negras
geralmente virgens, jabuticabas viçosas e
prazerosas, chupadas no viço da
Primavera...
Com aquelas
inúmeras saias e anáguas, as mantas eram recobertas com os panos engomados que
vestiam, servindo de lençóis para a sanha e safadeza dos sinhôzinhos...
Às vezes
completamente nuas da cintura para baixo, pernas abertas e com as mãos
escondendo o rosto, repetiam da vergonha simulada:
- “Nhô, tô com
tanta vregonha!
- Vergonha de
que, menina?
- De vê nóis
assim como Adão e Eva!
Serelepe e
mexendo com a vaidade masculina do macho, exclamava:
- Vale-me
Senhora Ceição!
Tudo isto,
Nhô?
Satisfeito,
rindo e debochado, ele respondia:
- Zéfa, se
você tampa os olhos, como sabe que Nhô tem coisa grande?
-Ai, aí, aí
Nhô!
Nu percisa vê,
tô sentindo uai!
Sem ver, mas
pegando, querendo e afagando, Zéfa chegou naquele fim de 1.847 aos 9 meses de
sua prenhez.
Primeiro filho
de um parto complicado que Sá Domênia, parteira e benzedeira conseguiu salvar
na estreiteza do pudendo de Zéfa.
Para o inglês
John Emery, o Guarda-Mor contou o aperto que Sá Domênia passara.
- Imagine
John! Não fosse a experiência de Sá
Domênia com seus banhos de óleo de
mamona e o torrado brabo, a cabeça do
malunguinho não teria passado...
- Então a
menina terá que fazer uso constante
de pedra-pomes?
- Com o tempo,
talvez não...
- A franguinha então, botou o primeiro ovo?
Quando Zéfa
batizou a cria, mostrava sorridente os mesmos dentes brancos que rangeram um
dia no esforço de dar a luz a moleca.
Se Zéfa ainda
fosse viva, 150 anos depois, com a cara tampada, ela conheceria sua
descendência masculina, bastaria usar o processo em que ela era hábil e gostava
de relembrar:
- Fio puxa
pai, é só pegá; pois binga de Guarda-Mor nunca nega fogo...
Zéfa foi xodó
por muitos anos de quem mandava e punha mesa; também prá que mudar se o xibiu
era tal qual da primeira vez.
Pedra-pomes
restruturava tudo, era um milagre!
Se alguém
perguntasse ao contador de histórias:
- Qual o
motivo do escriba queimar lenha neste forno?
Eu diria que o
pau não tem culpa de crescer torto, e como pau que nasce torto extingue torto,
eu não tenho meios de endireitá-lo; para livrá-lo desta fogueira de
reminiscências...
Quantos
descendentes do Guarda-Mor, Zéfa não pendurou nos galhos da frondosa árvore dos
Campellos?
Silenciar, prá
que?
O Guarda Mor
era tão homem como nós mesmos, com a vantagem de que era senhor dos corpos das
escravas que o servia...
Poderemos não ter
a consangüinidade de Zéfa, mas a qual de
nós Campellos brasileiros, faltará os mesmos
desejos de nosso tataravô, de ter uma
Zéfa em sua vida?
O vigário que
não perdoava a vida irregular dos ingleses amancebados no Morro d’Água Quente e
Quebra Ossos tinha olhos curtos para os coronéis do arraial, que faziam coisas
piores nas suas senzalas.
As castas
esposas mantinham debaixo do mesmo teto, rivais ainda meninas virgens que
desabrochando para a vida, se entregavam à vontade de seu dono; Tornando-se
pouco tempo depois pródigas parideiras de filhos que diziam: NATURAIS, como se
natural fosse a entrega ao seu senhor...
A hipocrisia
campeava solta e os coronéis pisando no rabo alheio, esqueciam-se que também em
“nambu“ nascia rabo...
O sol daquele
domingo já estava a pino e dona Rita dera por falta que as meninas ainda não
haviam voltado do pic-nic.
Aflita por não
terem almoçado, mandou um dos escravos atrás, exigindo que regressassem, pois o
Sol estava quente e a comida esfriando...
O mensageiro
ainda encontrou as moças no adro de Santa Quitéria.
Quando ele
abrindo a boca, deu o recado e disse as horas, as meninas assustaram.
O tempo
passara sem que elas percebessem.
Também o que
comeram, não fazia o estômago queixar-se pelo almoço.
Magdalena
temendo as conseqüências do encontro com o Edward, disse para os demais:
- Gente, se
meu pai souber que me encontrei acidentalmente aqui com Edward,
estou perdida!
- Uai, você
não pode?
- Não, ele
ainda não deu a permissão...
Coisa natural
entre as mocinhas, pois nenhuma delas teria permissão de namorar sem a licença
antecipada dos pais, assim mesmo, sob os olhos vigilantes deles...
Maria Theodora
a mais instruída entre elas, virando para Edward que vinha ao lado de
Magdalena, disse interpondo-se entre os dois:
Senhor
Eduardo, conta para nós alguma coisa da Inglaterra!
Esquivando-se
do pedido, apontou para o Bull.
- Ele fala
português! eu não sabe...
Ele tinha sua
atenção toda voltada para Magdalena e não queria perder um só minuto daquela
oportunidade de dedicar sua atenção exclusivamente a ela.
Caminhando mais a frente
junto do bando, Bull discorria como era sua terra;
Os contrastes
com o Brasil fisicamente e das mulheres com relação às moças
inglesas.
As meninas
ficaram atoleimadas quando Bull referindo-se ao clima e suas conseqüências,
dissera:
- Nós na
Inglaterra não necessitamos tomar banho todos os dias como fazemos aqui no
Brasil.
- Uai, vocês
não tomam banho lá?
- Claro que
tomamos, mas nem todos os dias como aqui...
Vocês
brasileiros parecem patos, sempre mergulhados n’água!
- Então, vocês
não tomam banho?
- Lá, uma vez
ou outra por semana, aqui todos os dias, pois a transpiração do corpo neste
clima tropical, assim nos obriga.
- Uai, então
vocês tomam banho por obrigação?
- Não, não foi
isto que quis dizer; lá como o frio é seco e insuportável, o corpo não
transpira, não havendo para tanto a necessidade de se banhar como se faz aqui
no Brasil.
Rindo, elas
não entendiam como uma criatura humana poderia ficar uma semana ou mais sem se
banhar.
Ainda bem
disse Doca, ninguém agüentaria ficar perto de quem não toma banho!
Edward que
prestava atenção no que Bull conversava como as moças, perguntou:
- Vocês ficar
perto de touro não toma banho, gostaria?
As meninas não
entenderam bem a pergunta e Magdalena elucidou para elas.
- Por quê?
- Ora! Bull na minha língua inglesa é o mesmo que
touro...
A risada foi
geral ao saberem que Bull significava touro e que pelas informações do Eduardo,
ele não era muito amigo d’água...
Ao chegarem à
frente da casa onde Edward se hospedava, ele se despediu das meninas e de Bull
que iria junto delas até mais perto da praça.
- Foi dia
Wonderful!
- Edward
gostou Magdalena, wonderful é o mesmo que maravilhoso, traduziu o Bull.
- Amanhã, que
horas porta cemetery?
- Às 7,00
horas, depois vamos andando até o Morro
d,Água Quente.
Com a mão
direita presa as de Edward, ele disse certas palavras em inglês que só o
Bull sabia o seu significado:
- I love you, mine darling...
Miúda
encantada com o flertar dos dois, não tirava os olhos deles.
De repente ela
espantada disse para sinhazinha:
- Nossa! Ou
Nhá, ancê nu pode vortar assim, oia sua
cara...
No chafariz da
capelinha do Bom-fim, pararam para que Magdalena retirasse a maquiagem e
prendesse os cabelos no coque como fazia dentro de casa.
Ela sabia o
que poderia suceder se o pai ficasse sabendo do seu encontro com Edward.
Vamos
agradecer ao Senhor do Bom-fim pelo nosso passeio...
Todas pararam
para orar, ela ajoelhando-se e com as mãos postas, e contritas pediram ao
Senhor do Bom-fim por intenção deles, os namorados.
Sem
constrangimento nenhum, em plena via pública e escorando na balaustrada da
janela da capelinha rezou piedosamente, pedindo a graça do Senhor do Bom-fim.
Suas duas mãos enfaixavam as peças torneadas
de Jacarandá que sustentaram o seu peso.
Corada,
irradiando felicidade, Magdalena entrou correndo para dentro de casa; na escada
que ligava ao segundo andar, a mãe quis saber: Primeiro a razão da correria, em
segundo por que não viera almoçar.
Ainda correndo
e subindo os degraus, a mãe repreendeu:
- Tenha modos
menina!
- Miúda está
preparando um banho para mim, mãe!
- E daí, a
água não esfria de repente!
- É o calor,
mãe!
Eu não agüento
esta roupa suada...
Vestindo uma
camisola fina, desceu para a sala de banho, onde o pai mandara instalar um
“tonneau“ como os franceses chamavam o tonel todo revestido de aduelas de madeira
e arcos armando o seu contorno.
Aquela
banheira de madeira fora adquirida em Vila Rica para uso exclusivo da família do
Guarda-Mor; como era pesada e por comunidade de seu uso, ficava no primeiro
andar, onde a água não ficava nem longe da fornalha e nem da bica do
abastecimento.
Uma cavilha
junto ao nível do piso deixava a água escoar depois da higiene corporal.
- Ancê tá
pelada de maise, Nhá!
Coroné nu
gosta d,ancê andá assim !
- Não tem
ninguém aqui!
- Uai e eu
Nhá!
- Ora Nhana,
não é você que me esfrega?
- Dento do
quarto pode, Nhá! Mas, no corredô da
casa não...
Correndo, a
camisola inflara de ar e o seu corpo, mostrava-se na transparência do tecido
leve.
Sua beleza não
se restringia ao rosto; como estava agora, expunha-se por inteiro...
Ajudando a
retirar a camisola por cima da sua cabeça, as mãos de Nhana tocavam a pele
macia da menina.
Ela ainda
estava com os pensamentos ligados ao inglês, seu corpo estava entregue a Nhana
e seu pensamento vagava...
Ao começar a
ensaboá-la as mãos que roçavam os seios, sentiram um tremor e Magdalena
arrepiou todo o seu corpo.
- Tá sentindo
fio Nhá?
- Não Nhana é
cócegas!
O que coçava
eram os pensamentos lascivos, as mãos não eram de Nhana...
Sentada dentro
do “toneau“ Nhana molhava sua cabeça com uma caneca cheia d’água.
- Que gostosa
Nhana!
A água corria
dos seus cabelos negros, descendo pelo corpo que transformara-se em mulher.
Uma coisa em
particular chamou a atenção da mucama:
Os seios da
menina estavam mais duros e eriçados, e o seu corpo no viço como mangaba.
Gentes! Qui tá
assucedendo c’ancê.
A ignorância de Nhana ao perceber aquela
transformação, associava o volume das
formas, ao esforço físico e calor daquele dia.
- Nóis vai
memo no cercado dos manos aminhã, Nhá?
- Que cercado
Nhana?
- No cemitério
dos mulangos...
- Claro que
vamos!
Ha alguns anos
os negros eram enterrados fora do arraial no topo de um morro; os brancos
dentro das igrejas, ou em seus adros, pois eram irmãos da confraria e mereciam
uma distinção especial da irmandade.
Hoje foi Miúda
que me acompanhou, amanhã será você...
- Qui bão fia,
tem muito malungo jogado lá e eu aperciso rezá preles.
As mãos de
Nhana continuavam a correr com a bucha encharcada do sabão francês.
- Qui chero
bão, Nhá!
- Foi madrinha
que me deu de presente, só uso em dias especiais!
- Ancê tem
razão, hoje é dia de tudo qui é santo!
E ancê também
nu é uma santinha?
- Pecadora,
Nhana!
Tão pecadora
que terei que me confessar novamente...
- Anjo nu tem
pecado, Nhá!
Lorotas,
reivas, e juras Deus perdoa sem confissão, fia!
- Mas quem
disse para você que são só estes, os meus pecados?
- Oiando
pr’ancê meu anjo...
Acabando de
banhar-se, Nhana cobriu-a com a toalha felpuda.
- Ancê qué um
vestidinho ou vorta com a camisola?
- A camisola
Nhana, eu vou deitar para descansar...
Com os
salgados do pic-nic, ela dispensou o almoço e estendeu-se lângüida sobre a
cama.
Nhana veio
cobri-la sob os lençóis.
Ela esperou
que Magdalena fechasse os olhos primeiro, para sair.
Vendo que
retardava o sono, começou a cantar versos que a ninara quando criança:
“ Minina, minha minina,
que tanta gracinha tem,
deixa falá quem fala,
só ancê é meu bem.
Nada importa as graças
que outas mininas tem,
as outas,
são bens dos’outos,
mas ancê, é meu único bem...”
Os lábios
abrindo num sorriso, dizia com quem Nhá sonhava.
Pé, ante-pé,
Nhana foi se afastando de costas até ganhar a porta do quarto.
Magdalena
dormia, sono de paz sob o embalo dos versos que ouvira.
Finados no
interior de Minas é um dia de festa camuflado.
Ninguém
trabalhava, todo mundo saia de casa para visitas aos seus mortos e nos
cemitérios encontravam os vivos, cheios de vida...
Carregando
braçadas de flores, elas já chegavam murchas com o calor das mãos e às vezes
também do Sol; Cravos de todos os matizes, predominando o amarelo.
De cova em
cova, paravam e rezavam tantas Ave-Marias, quantas o falecido parecia merecer,
colocando flores nas mesmas proporções.
Uns choravam a
perda recente, outros contavam as lembranças alegres, da passagens do morto
pela terra.
Quanto mais
amigo fora o falecido, mais desaforos e palavrões eram ditos sobre os 9 palmos
de terra que o cobria:
Em Catas altas
num dia de finados eu ouvi esta cantilena de um bêbado:
- O fio
dasunha era meu mió amigo!
Nóis caçava
junto, bebia junto e inté namorava junto.
E nu é qui o
fio da mãe arresolveu largar nóis!
Tadinho, largô
muié nova e bunita como fulô...
Fiquei cum tanta dó dele, e arresolví preguntá
prá Maria muié dele:
- Ancê qué
casa co’eu, Maria?
Há um ano ela chorava pra morte dele; há nove
mês carrega no bucho, fio meu...
O dia 2 de
novembro amanhecera nublado, com jeito de chuva, o tempo mudara e nada parecia com o
dia anterior.
Magdalena ficara
em dúvidas se iria ou não ao cemitério dos malungos com a desculpa de levar
Nhana.
Edward
queixava-se da maneira como estava se encontrando com ela, as escondidas.
Magdalena já
sabia por ouvir dizer, como os ingleses eram:
Obstinados,
frios, rotineiros e principalmente orgulhosos.
Apesar dos
ingleses adorarem o silêncio, o roast-beef, o chá e o tabaco, detestavam a indiferença e a grosseria.
Na frieza
calculada, que é nata em suas personalidades, é necessário longo tempo para
serem conhecidos e compreendidos.
Com o silêncio
do Guarda-Mor ao seu pedido de licença para namorar Magdalena, Edward se sentia pisado sem uma
resposta definida; fosse ela um sim ou um não, ele merecia uma satisfação.
Assim como o
inglês é sóbrio no falar e no se expressar, ele não se conforma com o silêncio
e a indiferença; sua paciência aparente
de preguiça, é uma estratégia para tomada de uma decisão contundente.
Usando sempre
as mesmas frases feitas que é uma maneira de ser dos ingleses, eles ocultam as suas inventivas próprias, pois elas tem o cunho da sua personalidade que gostam de preservar.
Tal como o dia anterior, o dia de finados
que é de luto ao coração, Magdalena acordou alegre e bem cedo saiu para visitas
aos seus mortos e os de Nhana.
Desceram até
ao adro da igreja do Rosário para rezar para os pretos da mucama, voltaram para
a praça, entraram na igreja e Magdalena foi orar para os seus que estavam
enterrados ali:
Seus avós,
Capitão Paulo Fernandes Mendes Campello e Anna d’Afonseca Magalhães, seus tios
e parentes.
Sobre suas
sepulturas o retângulo do assoalho tinha as marcas: “PFMC. e AFMMC.“
Dentro da
igreja e sobre o piso, ela não poderia deixar flores, tirou duas violetas e
colocou-as sobre o assoalho.
De cabeça
baixa, rezou suas preces e pediu:
- Oh, vô Paulo
e vó Anna!
Que Deus lhes
dê as bênçãos eternas no descanso e se lembre de mim nesta terra.
Nos ouvidos de Magdalena, Nhana disse
baixinho:
- Que a terra
seja leve pr’eles, Nhá!
Capitão Paulo,
home brabo perecia um touro; foi purisso
que foi enterrado dentro da igreja, aqui ninguém berra alto, o santíssimo
acoita suas reivas.
Saindo da
igreja, tomaram o rumo do beco do Santíssimo, descendo e cortando as águas da
serventia que corria pelos fundos dos quintais; saltaram a pequena ponte de
madeira e ganharam o outro lado do córrego, subindo a ladeira do Escorrega
Negro.
Edward
esperava por Magdalena, dali para frente, subiriam a rampa encascalhada que
acabara com o nome antigo.
Edward quis
saber a razão daquele nome impróprio.
Nhana era a
única que sabia o motivo e tentou explicar:
“- Quando
chovia e os manos malungos iam ser enterrados lá em riba, os dois negos que
carregava o defunto no “vai-vorta“ nu parava impé de tanta iscurregação.
Levantava,
dava dois passo prá diante e dois prá trás; aí vortava a tentá levá o defunto
prá frente, mas o tinhoso não queria partir deste mundo, e a chanca escorregava vortando prá trás; punha o varar
na terra, apanhava no mato dois porretes de tambu e aliviava o negô de todo o
peso.
Maise leve, o
defunto se nu tivesse marrado, podia inté voá pru céu pidindo arrego.
- Eu não
entendo o que ela fala!
Magdalena
explicou tudo que Nhana dissera.
Edward ficara
abismado com o tal processo para aliviar o peso dos mortos.
Depois da
visita aos cemitérios, continuaram andando para os lados da estrada do Morro
d’Água Quente.
Na conversa
entre os dois namorados, Edward queixava-se da falta de resposta do Guarda-Mor.
- Se ele não
se manifestar favorável, ele Edward estava disposto a fazer de tudo para
continuação do namoro e posteriormente o casamento.
E se ele não
der a licença, Edward?
- Fugiremos...
- Você está
brincando e não teria coragem para tanto!
Ela não
conhecia a obstinação dos ingleses, talvez por isto dissera aquelas coisas.
Dr. Moreira
que passava pelos moços tirou o chapéu e cumprimentou-os; absolvido com os
problemas de seus pacientes, a principio não percebera quem eram os jovens.
Depois
aguçando a memória, voltou o rosto para trás e reconheceu o casal.
Pensando no
que vira, falou consigo mesmo:
- O Guarda-Mor
se souber que a filha está passeando por estes lados, não vai gostar, mesmo com
sua mucama.
Capitão Thomé
já havia confidenciado com ele sobre o pedido que o inglês fizera para cortejar
a filha.
Ao chegar em
casa e indo direto lavar as suas mãos, hábito constante na sua vida de médico,
ele comentou com dona Brasilina:
- Médico de
família é como pai, sente os problemas de seus pacientes, como se filhos
fossem...
- Que
problemas, Manoel?
- Não sei se
posso chamar de problema uma pendência de consentimento de namoro...
- De quem você
está falando, criatura?
- Do namoro da
Maria Magdalena Campello com o inglês.
- Ora!
Pendência tola, ele é tão bom como qualquer outro pretendente que a menina
tiver...
- Eu tenho
dúvidas, Brasilina!
A reputação do
inglês não é boa segundo os olhos do pai!
- Ora, ora!
Mas quem está reclamando por reputação?
Só se o
capitão está achando que o forasteiro não está a altura social da filha!
- Você não
acha que é muita pretensão de um minerador querer se casar com a filha do
Guarda-Mor?
- Manoel! Onde
as nossas moças vão achar maridos melhores?
Vocês todos
não são filhos ou netos de cavuqueiros?
O tal do
Eduardo, não é um Zé Ninguém, dizem que tem posição de chefia na Mina!
- Veja que, os
melhores partidos hoje em dia, são
descendentes dos cavouqueiros...
- Se fosse
minha filha, eu me preocuparia com os riscos de seu trabalho, não com as mãos
sujas que às vezes mostram como mineiros.
O inglês pôr
exemplo tem uma das mãos dilaceradas por explosão.
Isto sim é
motivo para apreensões do pai da moça com quem ele vai se casar no futuro...
- Ele perdeu a
mão?
- Não, por
sorte, teve um colega competente para
recompor os seus dedos...
- Dá para
notar a sua deficiência?
- Só quando
faz uso da mão a vista de pessoas curiosas...
A estação das
chuvas cobrira naqueles dias o céu de nuvens negras.
Magdalena
reclamava com Miúda a ausência do Eduardo, seu sumiço era sinal de que voltara
ao Gongo-Soco, caso contrário teria mandado recado...
Os dias
cinzentos, sem a luz do Sol às vezes se tornavam negros com o desabar de um
temporal que no Brasil chama, “Chuvas de Verão”.
Neste período, as viagens são suspensas e as
atividades do campo interrompidas; os homens permanecem em suas casas
impacientes a espera da estiagem que só volta num pequeno período de Janeiro.
As mulheres
ficam mal humoradas com os homens a dividir ordens, imiscuindo nos afazeres que
são próprios das donas de casas; as roupas não secam dependuradas nos varais
das cobertas ou dentro de casa.
Na vila do
Gongo Soco, as atividades eram afetadas, quer fora ou no interior da mina.
O lençol
freático inundava as galerias e as bombas tinham que operar sem parar um
instante sequer.
Magdalena que
esperava encontrar-se com Edward no domingo, perdera a esperança e os dias
passavam com a terra e os rios encharcando-se de água.
No domingo
pela manhã, a ansiedade de Magdalena aumentara e ela pediu à Miúda:
- Manda alguém
na casa de John Bull para saber notícias do Edward...
- Ou Nhá! Cumé
qu’ele vai sabê, com a aruega qui tá caindo?
O domingo
passou e ele não apareceu, veio a segunda, terça, quarta e nada de notícias.
Bull mandara
recado que nem os tropeiros estavam conseguindo passar pelas baixadas, as águas
tinham inundado a Veluda e os caminhos que ligavam Santo Antônio do Rio Abaixo
e São João do Morro Grande interrompidos.
Magdalena
passava a maior parte dos dias, dentro do seu quarto, os olhos fundos marcavam
visivelmente o choro irrefreável.
- Nhá, Nhá!
Prá qui chora?
Sô Dú nu vai
esquece dancê, não!
O home nu veio
pro mode da aruega qui tá moiando inté as armas...
Coitado dele,
Nhá! Cumé qui pode viajá com este diluvo?
Nada aconteceu
qu’ele; o mano Zaga é malungo de fiança e falô co`eu qui sô Du tem anjo de
guarda prá tudo lado.
- Eu sei
Miúda, ele não veio porque não pode com esta chuva fina; miúda como você mesma!
Tão fiel ao
tempo como você a mim...
- Ancê tá
falando igarzinho a pade Xavié!
Fala, fala
bonito e nóis nu intende patavina e nóis fiquemo de boca aberta igar a jacaré
quirendo comê as palava dele...
Qui, qui
Nhá, qué dizê como eu memo?
- Deixa prá
lá, Miúda!
- Nhá, sô Dú
goista muito d’ancê!
- Como você
sabe?
- Zaga arengô
co’eu, qu´ancê é fulô prá gardar nos peite, bem aqui, óia!
- Não inventa
coisas para me acalentar!
- Pois é Nhá,
eu juro pru mode de sô Dú!
- Você tem
certeza que ele disse isto, Miúda!
- Ou Nhá, pru
mode de quê eu haverá de arengar?
- Ou Miúda, eu
agradeço de coração por você me contar isto...
Até a dor da
saudade está diminuindo!
Magdalena
estava sentindo uma dor no coração, como se alguém estivesse pisando sobre o
seu peito...
- É um
sofrimento sem a dor das doenças, mas como dói...
Eu não desejo que assim sofra, nem meus
inimigos.
- Nhá, sô Dú
também tá sofendo!
Coitado dele,
ainda pior qui ancê, moiado com a chuva fina e a lama da grupiara por fora, e
por dento, a sudade d’ancê!
É balaio muito
pesado na cacunda dele!
Banco, nu é
como malungo, criado nu Sol e na chuva...
- Ah! Não, não
Miúda!
Não é possível
o Eduardo agüentar tanta impiedade!
- Guenta Nhá,
o godeme é forte como baraúna!
Com a conversa
mole de Miúda, Magdalena levantou da cama com os olhos cheios de lágrimas.
Dona Rita
notando-as perguntou:
- O que foi minha
filha?
- Não sei mãe,
juro que não sei!
- Fala minha
filha!
Desabafa, o
que há faz amargurada?
Magdalena não
querendo revelar sua mágoa, não agüentou o sufoco que reprimia o choro e
irrompeu em pranto angustiado.
A mãe não
precisava indagar sobre suas lágrimas, ela sabia a causa.
Penalizada,
começou também a chorar e as duas se abraçaram.
- Nós vamos
dar um jeito!
Eu sei a razão
da sua mágoa; não desespere filha!
Há sempre um
dia atrás do outro...
O estrangeiro
não veio, é isto que te faz sofrer?
- Sim, sim
mãe!
As lágrimas
desciam e os soluços desaguaram do peito, a dor do primeiro amor...
Zéfa, Nhana e
os irmãos vieram saber o que se passava com Magdalena, a mocinha dura de
chorar, até quando se machucava.
- É dor de
cabeça meninos, deixa a irmã em paz!
- Dói, dói
muito mãe!
- Não sofra
minha filha, a dor vai passar, ele estará aqui no próximo domingo, você vai
ver!
- Como a
senhora sabe?
- Experiência,
meu bem!
Quando o amor
é grande, as mentes se comunicam e se atraem, ele virá...
Deite-se em
meu colo e desabafe com sua mãe...
- Mãe, me
desculpe, eu não posso esquecer Edward como o papai exige!
- Vamos dar
tempo ao tempo, filha! Você é muito nova para pensar em namoro...
Nós estávamos
guardando uma surpresa e um segredo quanto ao seu futuro, entretanto, acho que
chegou a hora de contar para você o que estamos idealizando:
- O que vocês
pensam sobre o meu futuro?
- Dar tempo ao
tempo como revelei a você...
- Como, mãe?
- Nós temos
pensado muito no seu namoro com o inglês, imagine filha!
E se ele
voltar para sua terra, estando vocês casados?
- Já pensou, o
quanto será duro para todos nós a separação?
Você é ainda
muito nova para submeter a uma situação imprevisível quanto ao seu futuro, você
estando casada com ele, terá que acompanhá-lo para onde for...
Pense como
nós, antevendo as conseqüências; você terá que amadurecer primeiro para depois
deliberar o que for melhor.
É este o
motivo de querermos dar tempo ao tempo...
Lágrimas
começaram a correr nos olhos de Magdalena na medida que dialogavam sobre o
assunto.
Com ternura a
mãe fazia entendê-la o ponto de vista do esposo, não dando uma resposta
satisfatória ao inglês.
Havia no
namoro dela, fatores que exigiam tempo e meditação para uma resposta afirmativa
ao pedido dele.
Todos acham
que você necessita de um preparo maior e um verniz para consorciar-se a um
homem de raça e costumes diferentes aos nossos.
Os Ingleses
tem uma cultura diferenciada; exigentes quanto as entiquetas sociais e até
religiosas.
Daí pensarmos
em prepará-la para assumir a responsabilidade de dona de casa; Enviando-a para
um estabelecimento de ensino.
- Vocês querem
é me transformar em irmã de caridade!
- Ou filha,
ninguém entra para um convento sem a vocação para tanto!
Vamos mandá-la
para Vila Rica, você vai estudar como externa num colégio
recen-fundado
para moças e residindo em casa da sua tia Cocota.
- Mas mãe,
logo agora que arranjei um namorado!
- Isto não
impede que você continue namorando-o, filha!
- Eu lá em Vila Rica e ele no Gongo
Soco?
- Quando há
amor, deixa de existir distâncias e barreiras, filha!
A semente
estava sendo lançada ao terreno bem preparado.
- Por quanto
tempo vou permanecer em Vila
Rica ?
- Eu não sei
ainda, sua tia falou em 2 anos.
- Ah, dois
anos é muito tempo, mãe!
- Não para
você que é ainda muito menina...
Magdalena
silenciou e meditava sobre o que a mãe revelara, sem objeções continuou calada,
ouvindo o que ela falava.
- Nós iremos à
Vila Rica para preparar o enxoval e você terá um guarda-roupa renovado, além de
conhecer a capital da província.
A primeira
viagem à cidade capital, despertou um interesse maior em Magdalena,
oportunidade rara para mocinhas na idade dela.
A viagem e as
compras fizeram Magdalena esquecer sua mágoa, tudo que via era novidade para
ela naquela cidade grande.
Ficou
conhecendo o colégio onde iria estudar, o palácio, as igrejas e o comércio onde
fora escolher o enxoval.
Voltou
deslumbrada com Vila Rica e com a casa da tia, no largo do Rosário pouco abaixo
da maior casa comercial da localidade.
Antecedendo às
compras, voltaram para Catas Altas.
Magdalena
ficou deslumbrada no dia que elas chegaram: Vestidos, sapatos, chapéus, meias e
toda roupa de baixo, bem como a roupa de cama que levaria...
Personalizadas,
elas seriam só dela dali para o futuro,
Ostentando
monogramas com as letras bordadas, pela primeira vez, via suas iniciais do
nome, gravadas nas fronhas, lençóis, colchas, cobertores e nas peças íntimas de
seu vestuário.
“M. M. M. C.“
Faltava ainda
uma letra, pensava ela consigo mesma; um dia ela acrescentaria mais a letra “H” não de hoje ou de um qualquer homem, mas de HOSKEN...
E se ela
batesse o pé e não cedesse a imposição dos pais?
Apesar de
obediente, Magdalena sempre fora determinada e era pública sua maneira de ser.
Há tempos
atrás, provara enfrentando um Capitão-do-Mato a sua personalidade...
Tomando do
algoz de um escravo o chicote dos açoites, fizera ver a ele que sua missão com
o negro amarrado ao pelourinho, estava comprida, não necessitava matar o
escravo para torná-lo mais temido e valente.
Tô cumprindo
orde do meu Nhô, moça!
São 30
chibatadas...
Não fosse a
intervenção abusada de Magdalena, o negro teria morrido em frente da sua casa,
sem uma alma corajosa e caridosa para salvar o fujão.
Na ocasião que
o fato se deu, O Guarda-Mor chamou a atenção da intervenção indevida da filha.
Era uma
exemplificação pública para todos os escravos que tentassem fugir, e o Capitão
do Mato, tinha autorização para executá-la daquela maneira...
Magdalena
passou a odiar aquele marco de pedra que ficava em frente da igreja matriz.
Segundo ela,
era um absurdo a igreja ter permitido que cravassem em frente ao Cristo no
altar da igreja de Nossa Senhora da Conceição, aquele instrumento de penalizar
os seres humanos.
Aquele
monólito não podia ser símbolo da justiça...
Que justiça
era aquela que só exemplava negros?
Padre Xavier
quando soube da sua atitude, parabenizou-á pela iniciativa caridosa e comentou:
- Já basta o
que fizeram com um negro que foi acorrentado e emparedado na igreja, quando da
sua construção.
- Até isto
fizeram aos negros, padre Xavier?
Chega de
violências, principalmente aos olhos de Cristo...
Você não
imagina filha, como os negros sofreram para a construção de nossa matriz.
Os artífices
tinham bom trato e até remuneração, os negros que carregavam água lá de baixo
daquela casa em frente da matriz, subindo a ladeira e com os ombros feridos,
cumpriram suas penas aqui mesmo na
terra...
- Quem disse
para o senhor que os escravos que construíram a igreja, buscavam a água lá de
baixo?
Aqui em cima
não tinha água, filha!
Eles tiveram
que fazer um calçamento desde a fonte, até aqui em cima para evitarem
escorregões com os odres sobre o corpo.
- Nossa! Como
é dura a vida dos escravos...
- Apesar de
sofredores, ainda eram imaginosos, levando as pedras de cantaria como aquelas das pilastras, a altura que
foram colocadas.
Eu não posso
imaginar como conseguiram carregá-las até lá em cima!
Padre Xavier
apontava para o alto da torre.
-Oh, minha filha!
Os egípcios
construíram as pirâmides onde não havia pedras, e elas eram l0 a 20 vezes
maiores do que aquelas, não contando a altura onde eram elevadas!
À Deus nada é
impossível! Ainda mais quando a obra é um monumento à sua glória...
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