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CAPÍTULO X VIAGEM POR CONVENIÊNCIA


Quando os escravos do Guarda-Mor ficaram sabendo que Magdalena iria para Vila Rica, foi uma choradeira geral.
 - Sinhazinha nu pode largá nos! Escondidos, rezavam para Senhora do Rosário e São Benedito, pedindo a eles para não deixar Sinhazinha partir.
As orações não surtiram efeito, os santos não sensibilizaram com os pedidos, ainda mais, contrariando o futuro da Nhá...
No início do ano de l.846, Magdalena partiu para Vila Rica, esperançosa de voltar quando clamasse aos seus pais a saudade.
Na primeira carta escrita à sua mãe, insinuava a saudade que sentia dela e de todos os entes queridos.
Revelava que a uma pessoa em particular, somava as saudades que repartia.
Era difícil residir por 2 anos em Vila Rica, distante das pessoas por quem mais amava.
Queixosa, confessava desesperança do sacrifício que fazia, longe de todos que amava; nem nas orações encontrava o lenitivo para tanta tristeza; apesar das matérias escolares tomarem todo o seu tempo.
Zombando de sua sina, dizia:
- Na mais importante cidade de Minas, a mais triste das criaturas de Deus!
Os tios tentavam distraí-la com visitas sociais às casas de pessoas amigas, e até nos sobrados onde havia muitos rapazes.
- Não pense que é por minha causa tanto desvelo, mãe!
A tia Cocota tem as filhas para mostrar e casar e eu vou junta como mercadoria que ela expõe nas vitrines das casas mais importantes daqui.
Fico magoada ao ser apresentada como mercadoria à venda e sua atitude me vexa, ao contrário das primas que já estão acostumadas com as atitudes casamenteiras da tia.
Com a proximidade das festas religiosas da Semana Santa, ela aguardava ansiosa a cerimônia que, naquele ano seriam realizadas em Antônio Dias, conforme revezamento que se faz entre as paróquias: Pilar e Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias.
Na carta ressaltava a diferença entre Catas Altas e Vila Rica; Aí o Sol sempre ardente com seus raios luminosos, aqui o céu turvo com uma névoa sempre presente, tornando as manhãs mais retardadas.
Para conhecimento da mãe, detalhava o roteiro diário de suas obrigações e contava que, a princípio, sentira dificuldades nos estudos, o que lhe valera notas baixas em determinadas lições; agora mais ambientada, começara a receber elogios de suas mestras.
As cartas chegavam em Catas Altas com enorme expectativa por parte da mãe, irmãs e das mucamas, dando notícias dela e da cidade capital.
A tia e as primas faziam de tudo para que ela não sentisse a falta dos pais e irmãos, pois as vezes chorava, mesmo tentando esconder suas lágrimas.
Dona Rita Benedita lia e relia por seu gosto e a pedido das mucamas.
Lendo-as, sentia remorsos por tê-la enviado à Vila Rica a pretexto de educá-la, como fizera antes com Maria Rita e Maria Raymunda, que pediram para serem enviadas ao colégio de Macaúbas das Irmãs do Recolhimento.
Passados os primeiros meses da ausência de Magdalena, dona Rita reclamava saudade da filha e da irmã Cocota.
Capitão Thomé achou por bem esperar pela entrada do Inverno, ocasião que as estradas ofereciam melhores condições às tropas e cavaleiros.
Nunca a estação fria custara tanto a chegar, os dias eram contados com as noites cada vez mais longas, até que numa madrugada de junho, partiram contornando a Serra do Caraça.
O sereno ainda caindo, cobria a folhagem de um manto branco e a visão estava limitada pela serração ofuscando os campos e a serra do Caraça. Cheiro de terra molhada e capim meloso impregnando o ar, dona Rita aspirava-o como se alimentasse do jejum da manhã.
- Viajar, só de madrugada!
No piso de pedras da serra, os animais escorregavam sobre o limo que o sereno dava vida e o capitão mandava diminuir a marcha; ao lado esquerdo da estrada, a lagoa do Guarda-Mor, mais negra do que os melros.

Muitas pessoas achavam que o nome da lagoa provinha do capitão Thomé, ele explicava que deveria ser homenagem ao Guarda-Mor Inocêncio, um dos primeiros de Catas Altas.
Nos fundos da lagoa, a serra da Bateia e a direita, o contra-forte da serra do Caraça, por onde iam margeando.
Subindo serras para galgar a chapada onde se avistava a fazenda da Alegria, dona Rita já cansada pedia uma parada para descansar daquela jornada cansativa.
Na fazenda da Alegria, pararam a contragosto do capitão Thomé.
Dali a Nossa Senhora do Nazaré do Inficionado, era um pulo, era o lugar que o Guarda-Mor queria parar, pois lá iriam se hospedar durante a noite.
A fazenda onde o poeta Frei José de Santa Rita Durão, nascera ficava a meio caminho de Ouro Preto.
Na manhã seguinte após 1 hora de marcha, chegaram a Bento Rodrigues, onde passaram sem apear e continuaram até Camargos para almoçar.
Vila Rica estava perto, já se avistava a povoação do Morro de Santana; cavalgando as margens do córrego Canela, chegariam primeiro a Mariana, para depois de 2 léguas de subidas, chegarem à Vila Rica.     
No Caminho, curiosos chegavam às janelas com o tropel dos animais ferrados, anunciando cavaleiros; dona Rita com seu traje de montaria tinha o rosto vermelho protegido pelo chapéu de abas largas.
A sede era grande e tiveram que parar nas Águas Férreas para saciarem-se, tanto eles como os animais.
Pegaram o Caminho das Lages para adentrarem em Vila Rica...
O movimento de cavaleiros e tropas enchia as ruas e eles desfilavam como se estivessem começando a jornada naquele instante. 
 No sábado, o comércio regurgitava de gente e dona Rita admirava do alto da sua montaria o burburinho da capital...

  Exibindo seus novos vestidos, mãe e filha impressionaram Cocota pelo bom gosto das costureiras, trajes de modelos vindo da corte.
No domingo foram assistir a missa das 9,00, na igreja de Santa Quitéria, conforme era chamada por parte da população o templo erguido pela Ordem dos Irmãos Terceiros do Carmo, o mais belo conjunto religioso de Vila Rica.
O nome da igreja ainda era motivo de brigas entre as irmandades: Do Carmo e Santa Quitéria, pois as primitivas construções naquela colina, eram dedicadas à santa que dava origem ao monte, Santa Quitéria.
Entronadas no altar mor, fosse qualquer delas, as imagens orgulhariam do seu templo, tal a beleza de sua construção.
As esculturas em pedra-sabão, os Atlantes do coro e a grade interior com talhas em madeira, chamavam a atenção da menina de Catas Altas, apesar de acostumada com as belezas da matriz de Nossa Senhora da Conceição.
Os olhos de dona Rita e Magdalena corriam admirandos os portais, especialmente o de acesso ao púlpito, um em cada lado; as balaustradas, os painéis de azulejos da capela-mor, o brilho dos altares laterais e as pinturas do genial Ataíde.
- Que pena!
Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas, ainda inacabada e a de Nossa Senhora do Carmo brilhando com todo aquele esplendor de acabamento!
Enquanto as visitas admiravam as belezas da igreja, tia Cocota exibindo as filhas e sua sobrinha, abria-se em sorrisos para os moços que em alas, aguardavam em pé o início da missa.
Aquela missa tornara comum nos domingos para os estudantes; pois as moças casadoiras freqüentavam-na no horário que permitia dormirem até mais tarde...
Sentindo os olhos curiosos dos estudantes, Cocota falou baixinho:
- Suspenda a cabeça e anda como se pisassem em ovos, olhando para o altar mor.
Magdalena seguia os passos da tia e da mãe, o rubor de sua face, contrastava com a palidez das moças de Vila Rica, ela estava ainda mais bela, com o ruge natural do Sol de Catas Altas.
Ao terminar a missa, Cocota avisou que as meninas esperassem no banco e deu as seguintes instruções:
- Vocês não podem deixar de corresponder aos cumprimentos dos estudantes; não é necessário falar, basta oscilar ligeiramente a cabeça, como é de bom tom...
- Meu pai não quer que eu me exponha tia!
 Razão porque estou longe de Catas Altas...
- Não é o que você pensa minha filha!
Seus pais mandaram você para cá, exatamente para arranjar um bom partido...
- Oh tia! Parece até que a senhora não me conhece; eu já tenho o meu bom partido...
Ele não é como esses bibelôs metidos a doutores, mas um homem de verdade, bastante corajoso para dizer o que quer e deve sem fazer gracejos como ouvimos desde que saímos de casa...
A tia desviou de assunto ao sentir a personalidade da sobrinha; ela sabia o que queria e não seria fácil fazê-la esquecer o namorado inglês.
De volta para casa, as primas perguntaram:
- Você viu algum estudante de seu agrado?
-Não prima, eu vim para Vila Rica em busca de melhor educação, não para procurar partido...
Com respostas como àquela, Magdalena foi se fechando por trás de uma armadura que passara a usar; quanto mais obstinada ao seu amor contrariado, mais se tornava alvo do interesse dos rapazes de Vila Rica.
Alguns a achavam pedante, outros, “snobe“ como uma dama inglesa, o que ela exultava em vez de ficar ofendida, pois viera para se educar para ser esposa de um inglês...
Com o assedio, conseguiu que os rapazes se aproximassem das primas, que tinham os corações abertos para o amor.
A admiração por ela acabou resvalando, o que a deixava livre e feliz...
Depois de certo tempo, os jovens ficaram sabendo a causa da indiferença de Magdalena ao assédio.
Em Vila Rica comentavam que a menina de Catas Altas queria se casar com um rico inglês das minas do Gongo-Soco; por isto rechaçava o cortejar dos moços.
- Ela não era trouxa de trocar um minerador, por um balconista lusitano; aquele mexia com ouro, os de cá com o bacalhau português.
Aquele comentário maldoso chegou aos ouvidos de Magdalena e ela fechou-se ainda mais por trás da máscara de moça comprometida.
Aos jovens educados à quem era apresentada, ela se mostrava afável, quando partia deles alguma insinuação de simpatia, ela podava os sentimentos dizendo naturalmente:
- Tenho um moço parecido com o senhor a minha espera em Gongo-Soco...
A vinda de Magdalena para Vila Rica, trouxe às primas um maior convívio social e liberdade, pois a tia confiava nela, ainda mais sabendo que da parte dela, não permitiria liberdade, principalmente dos estudantes.
Não era necessário vigiar a sobrinha e seu exemplo de conduta, serviria de espelho para suas primas.
As meninas da Cocota sentiam-se mais livres e começaram a freqüentar os salões das casas juntamente com Magdalena.
Rita Maria e Maria Rita, em pouco tempo arranjaram namorados e os pais para vigiá-las melhor, convidava os moços para as tardes do fim de semana.
A mais velha, a Rita estava aprendendo piano e já dedilhava o teclado com valsas bem executadas, atraindo moços que a acompanhava com instrumentos de cordas.
Magdalena se sentia feliz no ambiente alegre da casa da tia e os saraus se repetiam em quase todos os sábados da semana.
Seis meses depois da chegada de Magdalena, Rita Maria ficara noiva e provocou uma nova ocupação das meninas.
Execução do enxoval para o próximo casamento.
Os estudos e trabalhos enchiam as horas do dia; o tempo passava rápido com Cocota as filhas e Magdalena sentadas na varanda da casa.
A tia participava como se fosse também mocinha da conversa entre elas.
Cocota já comentava que Magdalena viera trazer o pé de coelho para sua casa.
Nos saraus, as salas se enchiam e Magdalena descompromissada passara a dar atenção a todos que participavam das tertúlias.
Para cada um dos visitantes, ela tinha uma maneira especial para reservar 3 minutos de uma conversa interessante; conhecia por informações da tia, as famílias dos rapazes e das visitas assíduas.
Maria Rita a outra prima, também já namorava firme e esperava o pedido de noivado; com isto, as honras da casa eram divididas por ela e a tia.
Controlando sabiamente os serviçais, fazendo-os circularem com as bandejas, era tida por muitos, como filha de dona Cocota.
Com sua disponibilidade, apresentava os desconhecidos nas rodas dos amigos; afagava o ego das pessoas mais velhas e adoçava a boca dos mais jovens com sua preocupação para que eles se sentissem bem.
Agora não só os moços a desejavam, também os velhos com filhos para casar, queriam a menina como nora, tal a desenvoltura como atendia e tratava a todos.
O professor da Escola de Farmácia, Dr. Manuel José Cabral, não cansava de apresentá-la aos seus alunos, dizendo:

  - Esta meu filho, é ouro em pó.
    Bonita, como ela só.
    Herdeira, do Guarda-Mor!

O professor já conhecia Magdalena desde Catas Altas, quando visitara o amigo Dr. Moreira.
Passando as mãos nos cabelos dela brincava:
- Que pena, eu ter nascido ha 70 anos atrás!
Você sabe filha, que conheço o seu pai e o Moreira desde quando éramos rapazes?

Para alegria de Magdalena, sua mãe como prometera, veio para o noivado da prima, o pai acompanhava a mãe, pois estava envolvido como delegado dos Círculos Literários que o presidente da Província realizava anualmente.
Capitão Thomé representava Catas Altas e Santo Antônio do Rio Abaixo, esta última preste a desmembrar da cidade de Nossa Senhora da Rainha de Caeté.
As reuniões estavam sendo realizadas na antiga Casa do Ouvidor, próxima  do Colégio onde estudava Magdalena.
Foram dias agradáveis, tanto para Magdalena como para os pais.
Eles sentiram que Magdalena parecia mais mulher nos trajes citadinos, mais maquiada e arrumada dos últimos tempos em Catas Altas.
Cocota elogiava a sobrinha e revelava o sucesso dela nas rodas dos moços de Vila Rica.
A mãe quis saber se ela manifestara interesse por algum em particular.
- Não, foi a resposta da Cocota.
Também não houve tempo para que ela esquecesse o inglês!
Dona Rita meditava se o afastamento de Magdalena bastaria para fazê-la esquecer o inglês.
A filha chegara a confessar que assistindo as aulas naqueles dias, tinha a vontade de fugir para se encontrar com a mãe, tanto era o prazer de curtir sua presença em Vila Rica.
Edward através de Zaga ficara sabendo que os pais de Magdalena foram visitá-la e era a oportunidade que ele teria para se encontrar com as mucamas da casa do Capitão Thomé.
Ele queria não só saber das notícias da namorada, como também poderia comunicar-se com ela.
A negrinha inteligente e viva, ao ver o inglês, disse encabulada:
- Ah meu Deus, é ocê sô Dú!
Qui pena, Nhá não tá cá!
- Eu sei Miss Miúda, que ela está Vila Rica...
Falando devagar para a negrinha entender, pediu para que ela desse o endereço de sua Nhá.
- Ou sô Dú, eu não sei, mas Nhá Theodora pode falá prancê...
Oia, se ancê iscrivinha pr’ela, tem qui sê pru mãos dos’outos...
- Como assim?
- Ancê vai inté a casa de Nhá Theodora e pede pr’ela juntá carta de mecê com dela...
- Você quer dizer que, se eu mandar uma carta direta assinada com meu nome, ela não receberá?
- Isto Nhô Dú, ancê intendeu e a minina nu sabe qui a tia Cocota tá coiteira.
Edward procurou Maria Theodora, que se dispôs a ajudá-lo da seguinte maneira:
O texto da missiva teria a primeira e a última página da carta, escrita por ela Theodora, carta de amigas; as demais do miolo, Eduardo preencheria com o seu cunho pessoal.
A carta resposta seria enviada a ela da mesma forma, com dois textos, um para Theodora, outra para ele Eduardo.
Foi com esta artimanha que os dois passaram a se corresponder por longo tempo, mostrando Magdalena a tia Cocota a carta que Maria Theodora enviava, excluindo as folhas intermediárias do namorado.
A tia achava natural o volume da correspondência que ia e vinha de Catas Altas, lia toda a missiva da Theodora, bem como as respostas de Magdalena.
A primeira que veio parar nas mãos de Magdalena, ela não sabia da combinação entre a amiga e o namorado.
Ao passar as folhas, encontrou a letra diferente e notou com surpresa que era de Edward.
O coração começou a bater acelerado como se tivesse tomado um choque.
Dissimulada, afastou-se da sala onde abrira a carta e foi para seu quarto ler o que mais interessava, na intimidade.
Ela tremia e com o coração disparado, não conseguia ler o que Edward escrevera, exclusivamente para ela.
Pálida, trêmula e com a vista obscurecida, ela teve receio de cair e sentou-se sobre sua cama.
Ela necessitava de se acalmar para poder ler a carta; tornou a levantar e aproximou-se da janela para respirar.
A névoa que cobrira sua visão foi clareando e ela insistindo com os olhos bem abertos, leu:

“- My darling,

   This day is a great day for us!
   I think this place is my place.
   .....................................................
  .....................................................

Não adiantava continuar a ler o que ele havia escrito em inglês e saltou todo o trecho lendo abaixo, a versão em português:

 Minha declaração não é somente de saudade, é também de profundo amor acumulado com o tempo da sua ausência.
Perdoa-me pela ousadia de escrevê-la da maneira astuciosa que Theodora engendrou, mas sei que é a única forma de fazer chegar até você as minhas palavras.
Da mesma maneira, estou aguardando a sua resposta e me escreva dizendo se devo ou não alongar minhas cartas, temeroso como estou de avolumar a correspondência e ela chamar a atenção de quem não deve...
Estou pensando em visitá-la aí em Vila Rica, quando ocorrer dias seguidos de feriados e dias santificados;  preciso da sua autorização e a marca  para encetá-la...
Não me esqueça, estarei eternamente junto de você.

                           Seu muito seu,

                           Edward Hosken


Comovida e com os olhos molhados, levou a carta junto ao coração, seu corpo tremia; no seu quarto, permaneceu lendo e relendo aquelas folhas que ele tocara e grafara palavras tão ao seu gosto.
No papel de carta impresso na Inglaterra, imagens campestres da vida rural inglesa e o perfume impregnado dando cunho pessoal de quem a escreveu...
Ao ser chamada para o almoço, a tia notou sua palidez e o silêncio que ela guardava.
- Notícias más, minha filha!
- Não, tia!
Pelo contrário, recebi uma carta da Theodora, cheia de lembranças e novidades, o que me fez até chorar; eu quero que a senhora leia.
Retirando a carta do porta-seio entregou-a para que a tia lesse.
- Você deveria estar alegre, entretanto chora minha filha!
- É saudade tia, muita saudade...
Magdalena não completou a frase que traduzia sua magoa e teve que sair da mesa em prantos.
Compreensiva e tomada de pena, a tia e as primas seguiram os passos de Magdalena, tentando acalmá-la.
- Chora meu bem!
Não tenha vergonha, nós compreendemos a sua dor...
Ela que deveria estar radiante pela carta recebida, fora atingida e seu coração sangrava.
Sofrendo a mais gostosa das dores, ela lembrava das últimas palavras que ele escrevera:
“Não me esqueças estarei eternamente junto de você..."

Da carta o que mais marcara foi a sua indagação, perguntando quando poderia vir à Vila Rica; era felicidade demais para ela...
Na resposta ela marcaria a data de 1 e 2 de novembro para o encontro, entremeando os feriados com o fim da semana.
Apesar de ainda distantes eram os únicos dias que dariam a Edward, três folgas consecutivas.
As cartas trocadas viajavam de l5 em l5 dias, alternadamente, através do  “courier “ que a Mineradora mantinha entre Gongo Soco e Vila Rica, passando pela região de Catas Altas, onde a Imperial Brazilian Mining Association, estava pesquisando formações de jazidas.
Magdalena mostrava as escondidas às cartas do inglês, pedindo sigilo absoluto; elas não entendiam como conseguia traduzi-las, já que estavam escritas na língua dele.
Mistério que perdurou por muito tempo, pois a prima não quis contar que vinha anexa, uma versão portuguesa.
Foi pelo interesse de aprender o inglês, que ela ia introduzindo nas cartas enviadas a ele, palavras e frases que ele mesmo tinha utilizado e remetidas a ela.
Assimilação que ia dando certo e Edward entusiasmado com o progresso da namorada.
Quando ela errava, na resposta vinham as retificações e explicações, para que ela não nos incidisse mesmos erros.
Ela gastava tempo para associar nas suas cartas, as mesmas palavras e frases que ele usava, mas era inteiramente seguro e gostoso dizer coisas que só ela sabia o que significava.
Algumas ficavam sem nexo, porém os verbos davam sentido no que ela desejava exprimir amorosamente; o dicionário que ele mandara de presente era usado e abusado.

 Frase que Magdalena sempre repetia:
 “- My love, have me darling!!!

Os encontros dos dois em Vila Rica foram pautados de riscos, correrias e apreensões, porém cheios de aventuras, como são as coisas proibidas.
Nos encontros, deixaram selado o pacto de se casarem, fossem quais fossem as resoluções paternas.
A barreira da incompreensão do pai, não obstaria a avalanche do querer de ambos...
O instinto materno indicava que as filhas e Magdalena escondiam algum segredo; por que a sobrinha se trancava com as primas no quarto?
O desprezo pela corte dos moços estudantes de Vila Rica devia ter uma razão...
Quando as meninas estavam juntas, repentinamente interrompiam a conversa e dissimuladamente mudavam de assunto; elas deviam estar escondendo coisas.
O esmero de Magdalena na maquiagem na véspera de Todos os Santos chamara a atenção da tia.
Não era sem motivo, pensava dona Cocota; ela passou a vigiar com mais atenção os movimentos da sobrinha e ficava alerta à conversa das três...
No dia 3l de outubro, Cocota descobriu o que pressentia.
Magdalena correspondia com o inglês através de cartas que vinham de Catas Altas da amiga Maria Theodora, ela era a intermediária entre eles.
A princípio, não queria acreditar que pudesse estar nas cartas de Maria Theodora os segredinhos de Magdalena; foi por descuido da sobrinha deixando uma carta na gaveta do seu criado, que a tia Cocota descobriu a artimanha.
Como responsável pela sobrinha em sua casa, pensava que atitude tomar naquela circunstância.
Antes de falar com Magdalena, teve uma conversa particular com as filhas e elas não tiveram como esconder a cumplicidade.
- Que fazer?
Como guardiã da sobrinha e investida da autoridade, teria que tomar uma providência:
Procuraria o vigário do Pilar para conciliar-se com ele, antes de abordar à sobrinha, pois sabia que, qualquer atitude precipitada, poderia por as coisas a perder entre ela e a sobrinha e até com os pais de Magdalena.
A experiência do velho padre aconselhava a deixar as coisas como estavam, pois a oposição quanto maior, mais atiçava os namorados...
De mais a mais, o moço morava distante de Vila Rica, não podendo vê-la, daí, porquê se alarmar com o caso em banho-maria?
A primeira coisa que ela Cocota deveria fazer era mostrar a sobrinha que  sabia de todo o engodo, não devendo continuar com a farsa.
Dali para frente, se a sobrinha quisesse continuar com as cartas, deveria enviá-las diretamente ao namorado e vice-versa, evitando intermediação de terceiros entre eles.
Aliviada com os sábios conselhos recebidos do padre, Cocota teve uma conversa aberta com a sobrinha.
Magdalena a princípio envergonhada pediu desculpas a tia e se abriu inteiramente aos segredos do seu amor com Eduardo.
Com a atitude prudente da tia, tornou-se conselheira da menina.
A correspondência em inglês poderia ser cancelada, pois não havia mais razão do assim proceder; entretanto, Magdalena continuou escrevendo o máximo que podia na língua dele, para aprendê-la.
A ultima carta recebida antes do encontro marcado em Vila Rica, estava toda escrita em inglês, para que Magdalena fizesse por esforço próprio, sua tradução.
Maneira de forçá-la ao convívio da língua inglesa.
No fim de 1.846, os pais ainda não haviam definido se a filha Magdalena passaria as férias em Catas Altas, ou ficaria em Vila Rica.
Uma carta consulta enviada a Cocota, indagava se as férias de Magdalena em sua terra poderiam trazer transtornos ao seu estudo...
Com uma resposta favorável, dizendo que seria até um prêmio à menina, ao seu esforço e comportamento, Cocota ainda acrescentara:
- Magdalena é uma mulher já feita, ela sabe o que deve ou não fazer, àquelas palavras não era só dela, pois consultara o vigário do Pilar quanto à maneira de tratar a sobrinha nos seus envolvimentos amorosos.
Ele o padre fora taxativo em suas palavras:
“-Quanto maior a oposição dos pais aos amores dos filhos, tanto maior a resistência, se não houver comedimento e uma razão plausível para impedi-los".
Nada melhor, para esquecer no coração, à distância dos olhos...
A carta de Cocota deixou os pais tranqüilos e a autorização seguiu para Vila Rica.
Com a programação de suas férias definidas, Magdalena escreveu para Edward, dando as coordenas para os futuros encontros no período que permanecesse em sua terra.
A prima Rita Maria faria companhia a ela em Catas Altas, pois a outra prima estava envolvida com o enxoval que deveria estar pronto para o casamento em fevereiro, antes da quaresma.
O fim do ano letivo fora festivo com a formatura de Maria Rita, a primeira da família a se tornar normalista; Magdalena participou ativamente dos festejos, principalmente do baile das formadas.
Nos últimos dias de Novembro, junto com a tropa do português: Martinho Martins Lourenço, o Guarda-Mor Thomé enviou dois animais de sela e dois burros de carga para trazerem as meninas e suas bagagens.
Junto, seguia o escravo Sebastião sob as ordens do Sô Martinho, arrieiro acostumado a enfrentar os caminhos entre Catas Altas e Vila Rica.
Não podendo sair de Catas Altas naqueles dias, autorizava por escrito a entrega das meninas aos cuidados do senhor Martinho, comerciante de tropas e amigo, que fazia aquela viagem constantemente.
O velho lusitano na volta procurava não forçar a marcha, poupando as meninas dos incômodos sacolejos dos animais ao galope.
O trecho forçando a marcha poderia ser feito num dia, mas acompanhando os tropeiros, teriam que pernoitar em Infeccionada, dividindo a viagem pelo meio.
Na fazenda de Santa Rita de propriedade do Capitão Manuel Pedro Cotta, parente, amigo e açoriano como ele, pois nascera em Santa Bárbara das Nove Ribeiras, pernoitariam, ficando sô Martinho e as meninas na comodidade do casarão e os tropeiros no rancho da fazenda.
As meninas não queriam dividir a viagem, sô Martinho sabia que elas não agüentariam uma marcha picada naquelas subidas e descidas pelos morros e serras até Catas Altas.
Capitão Pedro Cotta fazendeiro com grandes propriedades de terras na região da serra da Alegria alojava todas as tropas que passavam a caminho de Vila Rica em seu rancho.
 Sendo ele familiar da sua esposa, dona Anna Joaquina Teixeira Penna, era o local mais adequado para se alojar com as meninas que estavam sob sua responsabilidade.  
Apesar de mocinhas, Magdalena e Rita Maria já conheciam o capitão há muitos anos, pois Santa Rita Durão, onde ficavam as terras do capitão, eram vizinhas e caminho entre Catas Altas e Vila Rica.
Região alta e de vez em quando avistavam a serra do Caraça vista do lado Sul, a serração ia subindo e deixando as partes mais altas cobertas por ela.
Com demonstração de alegria, Magdalena perguntou:
- Sô Martinho, é a serra do Caraça?
- E ela mesma, filha!
As terras do nosso irmão Lourenço, deste lado, são tão belas como é vista em Catas Altas.
- O senhor conheceu o irmão Lourenço?
- Claro, minha filha!
Além de vizinhos, patrícios e amigos, somos por parte de nossos pais, também parentes; o Lourenço dele é o mesmo do meu pai.
Minhas tropas abastecem o Colégio dos meninos há bastante tempo.

Ver anexo nº  10.

O irmão, segundo me contaram, pertencia a família de Antônio Pereira, parente de Voz mecê por parte da Vossa mãe; também parente dos 2 lados do casal, Dr. Manoel Moreira de Figueiredo Vasconcelos e sua dona.
- Engraçado, sô Martinho!
Pelo visto, somos todos parentes em Catas Altas?
- Claro!
Somos todos portugueses, uns com mais, outros com menos pelos e pecados debaixo do sovaco, é o caso do irmão Lourenço, fugindo do Marquês de Pombal e outros como o degas aqui, deixando de assinar o sobrenome Ayres.
-Uai! Então o senhor não é Martins Lourenço?
- Sou, de certos tempos para cá, desde que o moço Francisco Jorge Ayres, assassinou o nosso parente em comum, Manoel Godinho Pereira na cidade de Coimbra por volta de 1.720; aquilo foi uma vergonha danada...
O vexame da sua cabeça espetada a praça de São Bartolomeu nos obrigou a trocar o sobrenome, não bastasse o que fez o Francisco Jorge; depois na Conjuração Mineira, foi a vez do Coronel do Regimento da Cavalaria, o José Ayres Gomes, condenado ao degredo perpétuo em Inhambane, sul de Moçambique na África.
Como “Voz mecês" estão percebendo, os filhos de Adão ainda continuam fazendo besteiras sujando o nome dos pais!
- Mas, sô Martinho, o coronel Ayres Gomes foi um herói da Inconfidência!
- Hoje, minha filha!
Voz mecês não imaginam o que ele e seus familiares sofreram por ocasião da Devassa e continuaram sofrendo depois com o degredo...”
Por estas e por outras, registro os meus filhos com nomes diferentes, para que um não venha a sujar o nome do outro.
- Mas, sô Martinho!
Como o senhor vai conservar a identidade dos seus filhos para a posteridade?
- Que se perca a identidade minha filha, mas que mantenham a cabeça sobre o pescoço!
Magdalena sabia que muita gente como sô Martinho, fazia o mesmo registrando os filhos com sobrenomes diferentes, principalmente logo depois da Inconfidência Mineira.
Para eles, que se danassem os genealogistas juntando retalhos, contanto que preservassem a vida dos filhos.
- Sô Martinho, o senhor nasceu no Brasil?
- Não, minha filha!
Esta é uma história tão grande como esta serra por onde cavalgamos!
- Como assim, sô Martinho?
Tirando o chapéu de palha que cobria sua cabeça, colocou-o sobre o colo, e com uma cara de quem não gostara do assunto, disse:
- Sou português sem ter nascido em Portugal, sou europeu sem ter nascido no continente europeu, nasci ao largo do continente africano, sem ser natural da África.
- Isto é uma charada ou brincadeira do senhor?
- É quase uma charada menina!
Meu nome vem de ( Mar ) e de ( Tina ou tinna ) onde se lava, daí a origem do meu nome,  MARTINHO...
-Uai!
- Então, de onde o senhor é?
- Sou do arquipélago dos Açores, num lugar chamado Alto dos Aires do Vale das Pedras, freguesia de São Thiago, bispado de Funchal.
 De onde nasci avista-se todo o belo litoral formado de inúmeras ilhotas.
- Como o senhor, ou seus pais foram parar lá?
- Ah, menina! São histórias que a vida nos prega e tentamos esquecer...

O Sol já ia a pino, quando a serra surgiu bem a vista.
A tropa acelerava a marcha e os animais empinavam as orelhas tentando  ouvir os sons familiares e resfolegando o olor do capim cheiroso.
Qualquer cavaleiro, mesmo o que não conhecesse Catas Altas, perceberia que estava aproximando-se do seu destino.
Magdalena apontando para a direita mostrou para Rita Maria o casario de sua terra, os animais não mais respeitavam as rédeas.
Os tropeiros começaram a blasfemar como se os gritos fizessem pará-los.
As duas meninas faziam ouvidos moucos aos impropérios ditos por eles, o que não conseguiam era afastar o bodum tresandando da tropa e dos guias.
Molhados de suor os homens corriam e tanto mais avançavam tentando conter a corrida dos animais mais acelerava em disparada os burros e as mulas.
O velho Martinho, zangado com o galopar maluco, teve que passar à frente dos arrieiros para conter a madrinha em disparada.
As meninas faziam o que podiam, para se manterem em cima, já que os freios elas haviam perdido para segurarem na cabeça do selim.
Sem reclamarem, pareciam verdadeiras amazonas, equilibrando-se sobre os selins e mantendo os calçados entre o louro, desprezando os estribos soltos e saltitantes.
- As meninas estão de parabéns, tive medo de vê-las jogadas ao chão!
Cavalgar com as pernas abertas sobre o arreio, ajuda a se firmar, é o caso dos cavaleiros, mas nestes selotes, não é fácil às damas!
Sob os chapéus de abas largas, os rostos assustados e vermelhos denotavam mais saúde que cansaço.
Martinho mandou que o tropeiro Tião tocasse o cargueiro com a bagagem das meninas para frente, juntando-se aos animais delas ao dele.
O resto da tropa fosse direto para o sobrado dos Martins.
Pessoalmente teria que entregar as meninas ao seu destino.
Foi com grande dificuldade que elas conseguiram se livrar do lombo de suas montarias; Sô Martinho cruzou os dedos das duas mãos para que Maria Rita apoiasse sobre eles.
A mocinha pendeu para o lado segurando a cabeça do selim e apoiando o pé esquerdo sobre as mãos do português; as mantas e o arreio escorregaram sobre o pelo suado e escorregadio do animal e ela veio com seu peso sobre os ombros do velho.
- Aí, Jesus!
Que carga perigosa e pesada...
Magdalena mais acostumada descia sozinha, quando Miúda surgiu no portão ao lado.
- É Nhá, é Nhá chegando gentes!
Qui bão, ela chegô!
- Ancê é Nhá Maria Rita?
- Não, sou a Rita Maria...
Tudo é Rita Nhá, qui bão q’ancê também veio!
Rita ainda ria de sua trapalhada sobre o corpo do português, quando a prima perguntou:
Que foi prima?
Meu pé agarrou no estribo e forçando para desgarrá-lo, o arreio deslizou sobre o pelo e me jogou sobre os braços de sô Martinho.
Antes no braço do velho, que no chão duro minha filha!
Dona Rita veio receber as meninas, as duas de costas aos seus olhos não definiam qual delas era a filha; aquela roupa de montaria quase igual e com os chapéus não permitia reconhecê-las, apesar de uma delas ter saído do seu ventre.
- Aqui estamos senhora dona Rita, seus tesouros tais como recebi em Vila Rica!
Velho como sou, nunca vi tanta ternura em raparigas tão moiçolas...
- É bondade do senhor, sô Martinho!
- Pois, pois, dona Rita é com pena que passo à Voz mercê tão ricas jóias!
- Vamos entrar e tomar um café com as meninas...
Oh!  Com que prazer tomaria vosso café dona Rita!
Os tropeiros estão a me esperar e as meninas estão como eu, cansadas.
Prometo vir aqui beber o café da senhora quando minha Donana estiver com este gajo!
As meninas achavam graça na pronuncia carregada do português, ele por ter vindo já velho, nunca pronunciaria a língua como os brasileiros...
Despedindo-se, sô Martinho montou em seu animal e partiu para casa, deixando uma algazarra que aumentava à medida que iam chegando os vizinhos do Guarda-Mor.
Apoiadas em Miúda e Nhana, elas mal podiam andar; os pés e as pernas beliscavam com cãibras, não permitindo estirar os músculos doloridos.
O sobrado recendia a flor de laranjeira, Magdalena sentindo o perfume disse:
- Como é bom voltar ao lar!
Lembrando que estava junto da prima, consertou as palavras, dizendo:
Eu sentia a mesma coisa quando retornava a sua casa, depois de muito tempo.
No quarto preparado para as duas meninas, as camas de Jacarandá torneadas, com guarnições para os acortinados, estavam arrumadas e a cortina aberta só de um lado, caindo em ângulo com a base aberta para o chão.
Numa das camas, as peças com monogramas bordados: “M. M. M. C."
Na cômoda do toalete, por cima do mármore, jarros de louça inglesa, estojos e porta-retratos.
Delicadamente, dona Rita mandara colocar um porta-retratos com fotos das duas primas ainda crianças.
Rita Maria pegou o retrato, olhou e perguntou:
- Onde foi tirado?
- Na porta da sua casa em Vila Rica...
Como tudo está tão diferente!
Nem eu mesma saberia dizer quem eram as meninas!
- O banho está preparado, avisava dona Rita para a sobrinha, quer ajuda da Miúda?
Não, não é necessário tia!
Eu não tenho estas regalias em minha casa; mucama como Miúda, só aqui em Catas Altas.
Para a fazenda da Santana de propriedade do Guarda-Mor, dona Rita mandou recado para o capitão Tomé informando que a filha e sobrinha tinham chegado.
Magdalena sentiu no abraço do pai, a força de sua musculatura e da saudade, coisa rara entre os antigos ao exteriorizarem seus sentimentos.
- Aí, pai, meu braço dói!
- Que foi?
- Cãibras...
- Nhana! gritou ele; traga compressas quentes para aliviar a dor de Magdalena...
Ao chegar o jarro com a água fervendo ele enfiou o pano para encharcá-lo e depois envolvê-lo na filha.
- Isto é coisa de mulher, Thomé!
Deixa que eu cuide dela...
Mãe e filha entraram para o quarto e o pai ficou do lado de fora, fazendo mil perguntas.
- Ou, Thomé!
Deixe a menina restabelecer e tomar seu banho, depois, pergunte o que quiser!
O Guarda-Mor não era de atender pedidos, mas naquele momento ele via que a esposa tinha razão.
Indo a caminho da cozinha, deu ordens para que levassem pitadas de sal para  as meninas chuparem para acalentar as cãibras.
Santo remédio, como recomendava Dr. Moreira...
Terminado o banho, as malas já estavam desfeitas e as roupas separadas no armário ou recolhidas no cesto para que fossem lavadas.
Nhana e Miúda esvaziavam a banheira de madeira, curiosas para ouvirem as novidades das sinhazinhas.
O tempo passara rápido e coisas para contar, inúmeras.
Tarde da noite, Magdalena pode abrir os presentes para os pais, amigas e mucamas.
A mesa grande da sala de jantar estava coberta de despojos dos embrulhos; abertos pela mãe ao ganhar o seu terço bento pelo bispo de Mariana e o echarpe.
Para o pai, uma bolsa e um chicote com o cabo incrustado em prata.
As mucamas mostravam os tercinhos e santinhos comprados no comércio de Mariana.
Maria Theodora ganhou um missal pequeno e um santinho do anjo São Gabriel, onde por trás, Magdalena escreveu:
“Ao meu anjo da guarda, sempre fiel e  amigo, este missal de recordação...“
Em baixo da dedicatória escrevera:
 Maria Magdalena Mendes Campello, (por enquanto) ...
Dentro, a imagem de São Gabriel com as asas abertas e numa montagem do estúdio fotográfico, o rosto da Maria Theodora ainda menina.
Ao ver o presente e o significado dele, a amiga não se conteve de emoção.
Abraçadas e chorando, não deram aos presentes a razão das lágrimas em vez de sorrisos...
Entre si, sabiam porque choravam; passada a emoção, Maria Theodora queria saber como conseguira o seu retratinho.
- Num estúdio de fotografias de Vila Rica, onde achei por acaso, procurando fotos de recordações desta minha terra.
O que ela omitiu, foi que entre as fotografias do estúdio, encontrara o que mais interessava, o retrato de Edward.
Como foi bom o adormecer daquele dia, estando em seu quarto, sua cama e junto das pessoas que ela mais amava: Os pais, irmãos e mucamas que ajudaram sua mãe a cria-la.
Tal como na casa ao chegar, a roupa de cama estava impregnada do perfume de laranjeira.
O sono veio fácil, apesar de ainda ouvirem vozes na sala e ela dormira rezando a Ave-Maria do terço que segurava.
A mãe apagando o candeeiro, saiu com as mucamas segurando um outro, que ia tremulante fazendo sombras bizarras nas paredes e nos tetos por onde caminhavam.
Catas Altas dormia  sonolenta, refazendo dos tempos agitados da cata do ouro...
 Na sala, o relógio de coluna batia compassado, mais rápido do que o ressonar das meninas nos seus sonhos coloridos.
Os segundos do tic-tac, tic-tac, ressoavam a cada movimento do pêndulo indo e voltando.
Naquele dia a sombra da noite fora mais curta, Catas Altas acordava ensolarada ao som dos sinos de Nossa Senhora da Conceição anunciando as badaladas das “Ave-Marias”
Libertas dos compromissos diários com os estudos, as mocinhas viajantes dormiram até mais tarde, no terceiro dia de férias...
Ao despertarem, achavam que ainda era cedo, pois na casa ninguém ousava falar mais alto ou provocar um barulho despertador.
Como era diferente o acordar entre Vila Rica e Catas Altas!
Lá, o barulho das tropas e dos transeuntes pela calçada, ali o dorminhoco dia despertando sem nenhuma pressa...
Depois da primeira refeição da manhã, caminharam pelo quintal escolhendo frutas e Miúda carregando-as para as sinhazinhas.
Livre das pessoas com quem não podiam se abrir, Magdalena perguntou para Miúda:
- Você tem notícias de Edward, Miúda?
- Sim Nhá, o godeme da pusada falô pr’eu, qui sô Dú tem vindo acá e preguntado p’rancê...
- Miúda, logo que você tiver um tempinho, vá ao Hotel do Bull e diga a ele que cheguei e ficarei aqui até a festa dos Reis Magos; Magos e não magros, ouviu?
Entendeu o que eu disse?
Repete para não esquecer...
- Nhá manda falá pr’ele qui ancê tá aqui, inté festa de Reis Magos; e não magros, ouviu?
- Presta atenção Miúda!
Estarei aqui até a festa de Reis Magos...
- Ah! Reis Magos...
- Isto Miúda, vai repetindo para não esquecer:
Até a festa de Reis Magos...
Saindo pelos fundos, Miúda foi ao Hotel do inglês para deixar o recado.
Visitando amigas da rua, fazendas e sítios, a primeira semana de férias voava, apesar da falta de noticias do Edward.
Sábado pela manhã, Zaga através de Maria Theodora, avisara que Edward tinha chegado e ia se encontrar com ela no pomar da pousada  do Bull.
Como chegaram bem tarde da noite, poucas pessoas sabiam da estadia dele Edward  no Hotel.
Sem sair do quarto, ficara prisioneiro voluntário do silêncio que deveria fazer em quanto durasse sua estadia em Catas Altas.
Aquilo para um inglês era humilhante, mas pagava a pena sofrer, tendo em vista o contato que teria com a namorada.
Bull para completar a cumplicidade com seu patrício, mandara esconder os animais do inglês num pasto retirado da vila.
Magdalena, Rita Maria e Theodora, estavam saindo para passear todas as manhãs, de maneira que, desgarrando das companheiras ninguém poderia dar por conta da sua fugida para se encontrar com Edward.
Foram poucas horas de envolvimento, porém jamais esquecidos pelos dois namorados no pomar do Bull.
O ambiente, a paz dos dois e os pássaros deram a eles tudo que pediam naquele encontro tão diferente.
Debaixo de uma mangueira, marcaram o casamento para 8 de dezembro de l.848, com ou sem a autorização do pai de Magdalena.
Ela já teria terminado o curso e na época já maior de idade.
Quanto ao enxoval, ele Edward providenciaria se não recebessem a autorização.
Edward observando Magdalena notara quanto mais se tornara mulher naquelas vestes metropolitanas, de talhe com cintura alta e saia solta.
Os seios presos pelo espartilho, aumentavam a graça do colete, mostrando o esplendor do manequim.
- Não me olhe assim, Eduardo!
- Como queres que eu a olhe?
- Discretamente, como me olhavas outrora!
- Como posso olhar como antes, se a saudade aumentou e não agüento sufocá-la?
Os olhos verdes do inglês, fixos nos de Magdalena, devoravam a imagem que tinha a sua frente.
Para Magdalena parecia uma eternidade o flertar que chegava até a intimidá-la.
Ela sentia que havia muito mais que o flerte dos olhos; havia nele um desejo contido e ela começou a tremer pelo que podia acontecer ali tão sós...
Abaixando os olhos, ele segurou seu rosto para que ele não fugisse...
- Não, não,  Eduardo!
O arrebatamento dele e a rapidez como agiu, não permitiu que o rosto  se afastasse e ela sentiu o gosto do seu beijo...
Envolvida pelos braços, seu corpo tremia e ele não deixava com sua força, que ela se afastasse do seu desejo...
-  I love you,  darling!!!
- Sorry Edward, I don’t  understand...
- Como não me entende se você me responde em inglês?
Admirado da resposta em sua língua, estreitou-a ainda mais colado ao seu corpo.
“ - I,m lost!
Na verdade, não só ele, mas ambos estavam irreversivelmente perdidos...
Marcados por encontros e desencontros, os dois sabiam que o amor entre eles, era maior que todos os contratempos, e que, quanto mais tentassem podar seus sentimentos, maior seria a atração irresistível que os uniam.
Magdalena tentava separar-se dele, presa em seus braços, pedia:
- Eu tenho que ir querido!
- “ Once for all ! ”
Para você nunca haverá a  última vez!
Se ela continuasse estática e não se afastasse, nunca chegaria a última vez...
Não haverá a última vez, querida!
Você estará sempre junto de mim, veja!
No camafeu aberto, ele mostrava o rosto dela dentro da jóia; há muito estamos juntos e você nem sabia!
Os olhos estavam presos e os corpos afastando-se.
Numa volta repentina, ele a viu correndo sem mais voltar os olhos...
Rita Maria e Theodora queriam saber como fora o encontro, ela tinha muita coisa para revelar às amigas, sem, entretanto chegar aos pormenores...

Magdalena voltou à Vila Rica e a rotina de estudante veterana, tomando todo o tempo dos dias da semana.
Já habituada, não sentira tanta falta de casa, como no ano anterior.
Com o camafeu preso a uma corrente de ouro, ela sentia o seu roçar sobre os seios, tão perto dela!
Em fins de Outubro, quando os pais receberam o convite oficial para a formatura, foi um dia de festa...
Antecipando a data marcada para diplomação da turma de Magdalena, os pais seguiram para Vila Rica, pois teriam que providenciar as roupas da festa.
Entre as formandas, bem poucas naquela época, estava a filha do Guarda- Mor, no seu vestido branco de formatura.
A igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde foram diplomadas, estava repleta de autoridades, o corpo docente e discente com seus familiares tomando toda a nave.
Entre as autoridades, José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, deputado pela região de Caeté e Santa Bárbara, primo do capitão Domingos Pereira da Cunha; o coronel Antônio de Figueiredo Neves, companheiro revolucionário de l.842 e membro da 1ª Junta do Governo Provincial.
Todos ligados por laços familiares ao povo de Catas Altas e Santa Bárbara.
Ao final da cerimônia da entrega dos diplomas, o deputado Feliciano Pinto Coelho, veio cumprimentar a família do Guarda-Mor, e especialmente a filha que se formava.
Magdalena era concunhada de seu primo Domingos, seu cabo eleitoral em Catas Altas.
Por coincidência, todos os deputados estavam naqueles dias em Vila Rica, recebiam também a diplomação pela 7ª Legislatura que correspondia ao mandato de 1.848 a l.849.
Para Magdalena, nada melhor que a presença dos deputados, dando pompas especiais à cerimônia de formatura.
Depois do encerramento da seção, fora apresentada aos irmãos: Theóphílo Benedito Ottoni e Christiano Ottoni,  este último, lente famoso das ciências matemáticas e com prestígio incomum entre os estudantes.
O Presidente Provincial, Dr. Quintiliano José da Silva, sentado numa cadeira entronada, ao contrário das outras autoridades, permanecera sentado, desculpando-se de problemas nas pernas.
Magdalena não esqueceria nunca, o seu constrangimento ao se levantar perante a assembléia para receber o diploma e a tia Cocota sem nenhuma cerimônia, dizendo:
- Cabeça erguida e passos firmes...
Vermelha, emocionada e segura pela tia, tentava caminhar, mas a saia estava presa nas mãos dela...
Mesmo com o pequeno acidente, caminhou firme e airosa como havia ensaiado.
As mãos trêmulas, uma segurando o diploma, a outra disponível aos cumprimentos das autoridades convidadas à mesa.
Era uma das primeiras turmas que se formavam normalistas pela Escola.
No adro da igreja, recebiam cumprimentos, quando Magdalena deparou com a figura de Theóphilo Ottoni,
Como parecia com o namorado Eduardo Hosken, apesar de mais velho e de gastado por tantas lutas, conservava os mesmos traços da fotografia em que o vira pela 1ª vez.
Os pais orgulhosos esperavam na porta da igreja a saída dos formandos; aplausos numa euforia estrondosa, eram abafados pelos foguetes.
Quem mais se manifestava era os estudantes das outras escolas, na expectativa de um olhar ou o flertar de uma  das normalistas.
Ao abraçar Rita Maria, ela furtivamente passou um pequeno  embrulho, segredando:
- Abra somente em seu quarto, ele veio de Gongo-Soco...
Não era necessário dizer mais nada, ela sabia quem estava mandando o presente.
À noite ao deitar, foi abri-lo; por fora, papel de presente envolvendo um estojo de veludo e dentro, um anel de ouro com um brilhante.
No cartão a mensagem:
                                      
                                      Querida,
                                        
 Parabéns pela formatura, minha presença fica marcada pela aliança.
 Peço que me deixe colocá-la no dia 8 de dezembro de l.848 em Catas Altas.
 Com muita saudade e amor,
                                                                                         
                                                       Edward Hosken

 P.S. - O pastor Dr. Cuming, em nome de Deus já deu a benção às alianças...

 Á noite juntamente com os pais, tia e primas, foi ao encontro de despedida  das formandas, era a primeira vez que dançaria num salão de festas em Vila Rica.
Vestindo uma casaca nova, o Guarda-Mor foi seu par na valsa das formandas.
Como fora chique ser levada de braços dados pelo pai até ao meio do salão; ele não teve jeito de repetir a contradança com ela; os estudantes tomaram conta das formandas.
A mãe e a tia Cocota, acompanhavam assustadas o assedio dos moços rodeando as formandas.
Recebendo galanteios, com certa finura respondiam em tom de brincadeira e ironia as propostas dos moços.
Encerrado o baile, Magdalena e os parentes voltaram para casa já tarde da madrugada.
As ruas estavam vazias e os lampiões mal iluminavam a calçada onde pisavam, como fazia falta a liteira de sua mãe...
A tia Cocota, viúva há mais anos, perdera as mordomias do tempo em que o marido era vivo, inclusive a liteira.
Felizmente para Magdalena, uma escrava da tia ia carregando os presentes que recebera;  de sapato alto, seria  difícil  equilibrar-se no calçamento irregular das ladeiras de Vila Rica.
Ao chegarem em casa, Magdalena e as primas foram direto para o quarto, havia uma ansiedade enorme para verem os presentes ganhos por ela, principalmente um, enviado pelo namorado inglês.
Aliviadas das vestes, trocadas por camisolas, sentaram nas camas para abrirem os embrulhos, que eram passados um a um para admiração das primas.
Um em especial ficou retido na mão de Magdalena.
- Abre, abre!
Nós queremos ver...
O coração batia descompassado e as primas notaram a agitação dela.
Dentro do estojo forrado de veludo, um par de alianças de ouro brilhava sob a luz dos lampiões.
- Que lindas!
Você está noiva?
- Não gritem! Não denunciem o meu noivado...
Pausadamente leu o conteúdo do cartão e a confirmação do seu noivado.
- Que presente fabuloso, prima!
Você merece, ainda mais no dia de hoje!
Enlaçadas as três meninas pulavam num saltar que retumbava pelo assoalho.
- Parabéns, Magdalena!
Nós também estamos muito felizes!
A demora dentro do quarto, apesar da tardia hora, despertou a curiosidade dos demais da casa, que também queriam comemorar com a filha e sobrinha, suas formaturas.
- Nós estávamos abrindo os presentes, daí a demora...
- Mas nós também queremos ver o que vocês ganharam...
Uma mucama foi buscar os presentes, o estojo com as alianças ficaram guardados, era o de maior valor, porém não poderia ser mostrado...
Havia uma alegria contagiante entre os familiares e as meninas guardavam um segredo em conspiração solidária.
A menina de Catas Altas estava despedindo-se de Vila Rica.
Como passara rápidos aqueles dois anos...

A maioria das formandas continuaria morando em Vila Rica, Magdalena voltava à sua terra natal.
O ano longe das pessoas que mais amava fora útil e proveitoso para a mocinha que a principio não queria sair para estudar.
Acabara naquele dia os passeios a Ponte Seca da rua que ia dar na Igreja do Pilar; a caminhada até Água Limpa, a Ponte da Barra, ao nicho da Ladeira do Vira-Saia, onde rezava perante a cruz, que ela chamava de seus martírios.
Não haveria mais passeios que Edward diria em inglês:

“ No more walking on the streets...

As comemorações do dia de São Francisco de Assis e Santa Efigênia e as procissões da Semana Santa, principalmente a da Ressurreição pela madrugada passando pelas ruas entapetadas de flores e folhas.
Mas, pagava a pena deixar tudo àquilo para regressar a sua terra; Catas Altas era o paraíso onde nascera, queria residir e constituir sua família.
Não havia para ela, lugar mais bonito; a serra do Caraça, era cenário permanente de seus sonhos e o pico do Sol, namorado eterno vigiando  a noiva lá em baixo.
Refletindo sobre os 2 anos que passara fora.
Valera a pena?
Claro, ela sentia-se mais mulher e preparada para enfrentar a vida de casada, o sacrifício de viver durante 730 dias longe de Edward.
Para felicidade dela, a separação trouxe ainda mais amor e fidelidade às promessas de ambos.

 


 
     






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