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CAPÍTULO VI GONGO SOCO, A MINA DE OURO


Dentro do vale do riacho do Gongo, víamos a serra à direita lado da montante, puro minério de tapanhoacanga com sua coloração vermelha recobrindo todo o manto da serra.
Esta formação mineral é conseqüência da concentração de hidróxido de ferro sobre a superfície, formando concreções.
O terreno mostráva-nos camadas regularmente estratificadas com cores diversas, apesar da predominância do vermelho sobre o cinza escuro.
Eu achei estranho estarmos a procura do ouro, quando a realidade nos mostrava uma serra coberta  de jazidas de minério de ferro.
  Já sabíamos que o ouro de aluvião fora lavado por chuvas torrenciais de outras eras e depositado nos leitos dos rios e suas margens.
Os faiscadores que exploraram a jazida anos passados ficaram ricos e esgotaram-na  superficialmente.
Segundo a história que nos foi contada na Inglaterra, para atrair-nos para  o contrato que faríamos, faiscadores que exploraram a jazida na 1ª metade do século XVIII, até 1.808, achavam que a mina estava  esgotada, entretanto ao ser comprada pelo comendador e Capitão-Mor José Alves da Cunha, do antigo proprietário: Manuel da Câmara de Noronha, ele trabalhando em rico veio nos flancos da serra, conseguiu extrair 240 quilos no pequeno período de 30 dias.
O que não daria uma exploração mais científica acompanhando os veios?
Baseados nesta história verídica ao chegarmos em Gongo Soco, esfregávamos as mãos como se estivéssemos vendo sob os nossos pés, o ouro que enriquecera o tal Capitão José Alves e ao Barão de Catas Altas.
Ao avistarmos o acampamento inglês, dezenas de pessoas vieram correndo ao nosso encontro para saudar-nos e dar as boas vindas.
Eles sabiam que estávamos prestes a chegar e pouco depois, de diversos pontos começaram a espocar foguetes festejando e anunciando nossa presença.
Gongo Soco se apresentava diante de mim, bem diferente das imagens que fazia...
A  mineração ficava ao sopé  da serra do Gongo, juntamente com a vila;  em volta uma mata fechada e luxuriante recobrindo-a.
Algumas construções antigas ainda guardavam aspectos do que fora no tempo do barão de Catas Altas,
A vila estava sendo restaurada e ampliada para instalar os 200 ingleses e outros 900 trabalhadores, a maioria escrava.
Num recenseamento feito as pressas  por Brás Ferreira de Araujo, no ano de 1.831; certamente para dar a D. Pedro I  em sua visita que faria  ao povoado da Capela de Nossa Senhora do Socorro, uma visão da importância do mesmo, ele apresentou uma população de 1.144 habitantes, sendo 632  livres e 512 cativos.
A maioria incorporada a Mina do Gongo Soco.
Entre a população branca, 7 figuras relacionadas nesta listagem estavam ligadas a minha família:
João Hosking, primo que contava 36 anos, os Hoskens: Thomas com 40 anos, sua esposa e seu filho Diogo com 20 anos; Samuel, com sua esposa Mary e seu filho Benjamin Hosken.
A família ganharia 2 anos depois do recenseamento,  mais um membro com a minha incorporação ao convívio do povoado da Capela do Socorro.
O reboliço da chegada tumultuara a vila e a coberta da estrebaria se encheu de patrícios que nos abraçavam esfuziantemente.
Com um contingente tão numeroso, faltavam condições imediatas para conduzir-nos aos alojamentos designados, e nos necessitávamos de um banho urgente e reparador.
Como o calor era intenso, resolveram que o banho de batismo seria feito nas águas cristalinas do córrego.
Que coisa linda e gostosa sentir e ver o deleite daquele refrescar dos nossos rostos; homens  se fazendo de meninos,  relaxando-se das tensões vividas por tanto tempo...
Para a maioria de meus patrícios, era a primeira vez que se banhavam daquela forma.
O clima do Brasil não só favorecia, mas também nos obrigava pelo calor a cair na água.
Parecíamos meninos em nossos dias de folga na Cornualha.
Nunca ficáramos desnudos com tanta gente participando do banho; o calor, a paisagem e a nossa alegria escondiam a nossa nudez e a impudicícia do nosso estado.
Aquele banho dos recém-chegados contaminara a todos e a nós vieram se juntar Mr. Captain Lyon, Jammes Duval, Willian Duns Fone, Treloar e uma dezena de meninos, entre eles, nossos primos que desconhecíamos e nesta oportunidade ficamos sabendo de suas existências e presenças no Gongo Soco.
O Captain Lyon era o mais feliz entre todos, jogando água no rosto e no corpo dos que se banhavam.
Era o batismo dos últimos ingleses que se incorporariam à mina.
Aquele ano de l.833 ficaria marcado na história do Gongo Soco, na retomada definitiva das explorações mineradoras do lugar.
A alegria chegou ao auge quando Mr. Lyon nos liberou dos trabalhos no dia seguinte.
Enfileirados e correndo uns atrás de outros, saímos pulando dentro do córrego, como se fossemos índios e vez ou outra, escorregando sobre as pedras lodosas.
Com as mãos sobre a boca, soltávamos o grito de guerra:

Indian! indian! indian!

Os que assistiam a palhaçada, riam daqueles brancos ingleses querendo imitar os naturais da terra.
As esposas ficaram sabendo das encenações burlescas de seus maridos e não gostaram do que ouviram...
- It’s humiliating!  Too humilianting!
Já os outros homens que trabalhavam naquele turno, ficaram sentidos por não poderem comemorar de forma tão “natural” a chegada da última leva de  companheiros.
Samuel, Thomas e Diogo, ficaram penalizados por estarem no trabalho na hora da chegada de Edward.
Há quantos anos não se viam?
E eles teriam poucos dias para conviverem juntos, pois voltariam dentro de pouco tempo para a Inglaterra.
Edward tinha muita coisa a contar para eles...
Ao findar da tarde, recolhemo-nos às nossas acomodações.
A mineradora já preparada distribuíra o pessoal às suas definitivas residências.
Em todas elas, encontramos junto do nosso nome, o enxoval da roupa de cama, três mudas de uniformes caquis, botinas, roupas íntimas e objetos higiênicos de uso pessoal.
Até as esposas receberam o seu enxoval; nem sempre exatos ao manequim, o que não impedia de trocá-los por outros mais condizentes ao seu próprio corpo.
Ao apresentar-nos para o jantar coletivo, todos trajando os novos uniformes, ouvimos uma gritaria geral:

“ Grasshoppers! grasshoppers! grasshoppers!

Pela segunda vez naquele dia, numa manifestação espontânea, éramos chamados de: gafanhotos, em gritos de brincadeira.
Entre os manifestantes, meus parentes que não  via há vários anos.
Com os rostos queimados e mais morenos, eu vi Samuel e Thomas e junto deles, suas esposas e  seus filhos.
Eu estava em casa; minha família estava ali a minha frente...
Os gritos continuaram:

“  Grasshoppers!  grasshoppers!  grasshoppers!

Realmente, em conjunto parecíamos um bando de gafanhotos peregrinos, muito comum nas terras africanas.
Durante um certo tempo, nós mesmos chamávamos os patrícios de grasshoppers, o que para os menos informados parecia um apelido gastronômico, pela voracidade como alimentávamos ... 
 No dia seguinte, ao contrário do trabalho que já esperávamos, recebemos instruções sobre nossas funções em geral e o comportamento perante a comunidade inglesa e a nativa, composta de escravos e assalariados contratados.
Achamos estranho o modo diferenciado para os escravos, seres humanos como nós mesmos...
Não deveríamos transgredir os hábitos e costumes do povo com quem passaríamos a conviver, principalmente nos primeiros meses...
Aquilo era uma aberração, na Inglaterra não havia escravos...
Depois de certos dias da chegada, e mais aclimatados, começamos a perceber o novo mundo que enfrentávamos.
Clima, costumes, diferenças lingüísticas e religiosas e a convivência com os negros escravos.
A topografia do Gongo Soco favorecia a finalidade mineradora; a jazida escarpada, bem como à altura das nascentes eram fatores importantes para os trabalhos de garimpagem.
Às tardes após o trabalho dos meus parentes, reuníamos  na casa do Samuel e da Mary para contar as peripécias da viagem e da nossa querida Inglaterra.
As construções das instalações estavam bem adiantadas: Galerias, poços, lavadores do minério já quase prontos, o engenho novo em montagem.
Foram recuperados: Canais e bueiros de escoamento de água pluvial e de abastecimento da lavagem do minério.
As cobertas de fundição, serraria e carpintaria em pleno funcionamento; na hora que chegamos, ouvíamos de longe o barulho das bigornas e dos golpiões.
As galerias e poços ganhavam números pela ordem de abertura e depois, nomes dos ingleses chefes ou encarregados da sua construção.

Ver cópia do perfil da  Mina no Anexo nº 7

Junto da sede a casa do Comissário geral e um pouco a distância, a capela em construção.
Mais distante, os currais, cevas e coberturas dos cômodos dos tropeiros e vaqueiros.
Edward enchia os olhos com tantas novidades e ainda havia muita coisa para se ver.
Aquela epopéia da sua viagem não poderia ficar guardada só na mente, era necessário que ele registrasse tudo para contar aos pais,  como  vira e sentira as sensações de um sonho de menino que se fizera  realidade...
Ele estava do outro lado do Atlântico, tal como sonhara em tempos de menino; não na orla do mar, mas bem no seio de um país tão distante e belo...
Um dia no futuro, ele contaria a história para seus filhos, estes aos seus netos que passariam aos seus bisnetos e sucessivamente aos demais,  para que 200 anos depois, chegasse aos ouvidos dos seus mais afastados  descendentes...
Se a história se perdesse no tempo, a força da sua mente não deixaria apagada uma chama que iluminara seu caminho...
Na primeira noite em Gongo Soco, ele repassava as páginas do que memorizara  naqueles 74 dias de aventuras...
Seus pensamentos estavam  presos a viagem.
O que acontecera consigo, era sonho?
Ele estava realmente no Brasil?
Na dúvida apalpava seu rosto e seu corpo e levantando da cama, caminhava até a janela para  sentir  a realidade do novo ambiente
Os parentes também reviviam as suas epopéias e em breve, voltariam as mesmas aventuras no regresso à Inglaterra.
Contando a história da viagem, esquecia que eles haviam passado pelas mesmas aventuras que ele entusiasmado contava.
Ele teria que voltar á Inglaterra, para narrar toda a experiência por que passara à  Mary e aos seus amigos.
Certamente ficariam atônitos com suas proezas e orgulhosos  por ele Edward,  ser um dos seus...
Na madorna que antecede ao sono, ouvia os ruídos estranhos ao acostumado ouvido das noites da Inglaterra. Os insetos, o piar dos pássaros noctívagos não permitiam o sono tranqüilo, seus pensamentos continuavam presos a viagem...
Inicialmente a travessia do oceano, enfrentando o desconhecido e a improvisação de passageiro flutuante, depois, os amenos dias passados na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, aguardando a liberação da tropa que os conduziria à Minas Gerais.
As primeiras horas de contato com a natureza ao sair do Rio de Janeiro e começando a subir a Serra do Mar.
Início de outra aventura, agora em terra, martírio que não previra por desconhecer completamente o país.
Sobre o dorso do pangaré “filho da puta“ além de teimoso, duro e trotão.
         Desmunhecava nas corridinhas que o chicote obrigava a dar.
Sempre na rabeira da tropa, ele manhosamente ia ficando para trás.
O solavancar contínuo das nádegas contra o assento e o Santo Antônio do arreio, maltratava o meu corpo, especialmente os fundilhos.
Não adiantava me queixar, todos sofriam os mesmos problemas, até que um  tropeiro mais humano,  vendo minha posição incômoda esgueirada, arranjou uns sacos para amortecer o apisoar constante.
O Sol castigava e a pele ardia no fogo abrasador da exposição contínua.
A caminhada no primeiro dia, bem não começara quando saímos do Rio e já tínhamos vontade de descer da montaria.
A tropa subindo tentando galgar a serra, os arreios deslizando sobre o lombo molhado e suarento dos animais.
Meu corpo todo molhado de suor, ia se desfazendo no pegadiço que começava nos fios de cabelo, passava pela região do cóccix e ia até a ponta dos dedos dos pés.
O cabresto e rédeas de couro cru presas as minhas mãos, começaram inicialmente a fazerem calos, depois feridas que doíam com o sal do meu suor.
 As nádegas feridas eram pura moxinga como diziam os negros, e o maldito suor salgando-as para meu martírio.
A tarde, a temperatura subia e entrávamos naquele inferno abrasador, como almas penadas; nós ingleses pedíamos para que a marcha cessasse para alívio de tantos tormentos.
Como era bom, quando enveredando por estrada sombreada, ficávamos livres dos raios diretos do Sol!
Apesar do aspecto rude dos tropeiros, começamos a confiar neles quando precisávamos de informações.
Eram precisos ao nos darem às horas olhando para o céu; alertávamos aconselhando a parar ou acelerar uma marcha em vista de uma chuva preste a cair.
Conheciam rastros de todos os animais e perigos que estavam pela frente; e o que mais nos chamou a atenção: sabiam qualificar quais  ervas medicinais seriam boas para os nossos males durante a viagem.
Servindo de plantas que apanhavam ao lado dos caminhos, entregavam a pessoa de Mr. Land e mostrava como deveria prepará-las em infusões medicamentosas.
O relaxar do corpo com o calor, afrouxava nossa postura e começávamos a pender sonolentos, de uma maneira perigosa em cima dos arreios.
O animal sensível e maldoso sentia a rédea bamba e começava a ditar a marcha ao seu bel prazer.
O Sol carrasco caía como brasa sobre nossas cabeças e os olhos se fechavam feridos pela luminosidade refletida dos cristais.
Cabia ao rocinante, seguir por mim os caminhos das gerais...
Que alívio! Alguém dissera que a parada para o almoço estava a menos de 1 milha...
A ( muçumba ) ardendo e esfolada, pedia água e repouso, mas a jornada ainda teria 3 a 4 horas depois da ( massamorda ).
Contrariando aos ensinamentos; ouvíamos, guardávamos e repetíamos palavras que nem saibamos que não eram do vernáculo português.
Como evitá-las, se não conhecíamos direito à língua!
Chegava a casa de pasto da parada; desequilibrados e manquitolantes, caminhávamos no sentido do balcão da taberna.
Com o corpo dolorido, repassávamos os olhos vasculhando o seu interior; cachorros dormindo junto as portas e gatos miando com olhares súplices .
Presos em ganchos, as mantas de toucinho objeto de desejo dos felinos, bem como os rolos de lingüiças que dentro em pouco desceriam para satisfação dos esfomeados.
Olhando os bichanos, eles lambiam o focinho mostrando com gestos o que o miado não podia dizer.
Ronronantes, alisavam as nossas pernas como se fossemos velhos amigos, deixando o pelo macio afagar o nosso ego.
Eles por experiências sabiam que os forasteiros eram mais sensíveis aos seus apelos.
Das sobras dos fregueses, faziam seus banquetes, já que o rancheiro português, obrigava-os a dieta só de  ratos.
A comida tão diferente da européia, cozinhada com banha de porco e o trivial constando quase sempre de: Feijão, farinha de mandioca, canjica e lingüiça.
Como verdura, vegetais apanhados no próprio mato ao lado: grelo de samambaia, arbusto que os índios tupis, chamam de “Ham a’bae “ o que é torcido; ora-pro-nobis, outra planta que do  latim, dá um guisado muito gostoso, da família das cactáceas ( Peireskia aculeata ) e palmitos da família dos auquenipterídeos.
Para os tropeiros, torresmos salpicados sobre postas de angu, prato predileto deles.
O guia, a nós ingleses advertia da inconveniência de comermos comida tão gordurosa; o primeiro dia era de experiências e de provas.
Que provas passaríamos, desde a partida de São Sebastião do Rio de Janeiro!
Grupos de 3 a 4 cavaleiros revezavam nas paradas incontinentes ao mato.
A dor de barriga era maior que o medo de adentrarmos pela brenha.
Supúnhamos que bastava dar um pulo no mato, para aparecer os jacarés, sucuris, lagartos e outros bichos daquela terra.
Não tínhamos muito tempo a perder no aliviar, pois a corrida  para se juntar a tropa, era desconfortável no galopar que deveríamos imprimir para novamente incorporarmos a cavalhada.
Admirável era a maneira discreta como as mulheres conseguiam dominar as cólicas,  esperando nova parada programada.
Mal sustínhamos sobre as selas, com a dor  dos músculos presos e dormentes nas posições forçadas sobre elas.
Doíam a cacunda, muçumba, coxas e os cambitos e o Sol castigando inclemente como satanás no inferno.
Não bastasse a inclemência do tempo, as ferroadas dos carrapatos e dos mosquitos pernilongos, chupando nosso sangue doce e nobre.
Já fôramos avisados do perigo da infestação dos acarinos ( ixodídeos )  que da ramagem do mato, saiam para coabitarem o nosso corpo; porém o que não nos informaram é que eles viajavam como passageiros na pele dos outros animais, inclusive os de sela.
Em todas as paradas éramos obrigados a vistoriar o corpo, catando os inúmeros parasitas que se agarravam a nossa pele.
Não havia lugar por mais escondido e discreto que fosse que eles não se intrometessem como senhores absolutos da carne e do sangue do nosso corpo.
Os bichinhos queimavam e nós desesperados queixávamos aos homens que nos guiavam.
- É ferroada de micuim, moço!
Deixa o bicho aí, na hora de deitar, vamos cuidar deles.
O tradutor nos irritava, pois ele parecia mancomunado com os carrapatos que chupavam o nosso sangue.
Era necessário a explicação que não podíamos arrancá-los sem  a devida técnica; se o ferrão permanecesse dentro da pele, causaria coceiras,  infecções e até febres mortais.
Nas estalagens das paradas retirávamos os bichos com ciência e sem as conseqüências danosas.
Nus, tomando uma travanguüante por dentro e passando uma parte em todo o corpo, os miudinhos eram mortos e os rodoleiros furados com alfinetes em brasa.
Achávamos que eram de famílias diferentes os diversos tipos que se infestavam ao nosso corpo; ficamos sabendo que eram os mesmos em diversas fases larvárias.
Seguíamos a risca as recomendações, apesar de agüentar as vezes, um dia inteiro com os repugnantes rodoleiros aferroados a nossa pele.
Para evitar as febres, aprendemos a ter paciência para arrancá-los no devido tempo.
Subindo as serras das gerais, tínhamos a ardência corporal, a boca seca e o nariz impregnado da poeira da estrada; os olhos semicerrados também sentiam a aridez dos campos  varridos pelos ventos.
Como era agradável atravessar os vales onde a vegetação resguardava as nascidas formadoras de riachos, induzindo a cavalhada a descansar na sombra amena...
A parada ligeira não nos impedia de banharmos naquelas benfazejas águas sob árvores frondosas.
A comitiva espalhava-se: homens para um lado, mulheres para o outro; com que alívio, voltávamos das moitas que nos escondiam!
As mulheres eram as que mais sofriam com o pudor, esperando as estalagens, onde em  recato pudessem ter o alívio...
Improvisado sobre regos d’água, o dejetório fornecia pelo menos a privacidade necessária.
Bem não saia o Sol, já estávamos na estrada vencendo distâncias dos campos esbatidos.
Galgando as subidas, espigões e carrascais, o Sol da manhã varria as brumas de veste cinza e deixava aos nossos olhos a paisagem descortinada do campo aberto.
A Mantiqueira ficara para trás; como Minas não se desfaz das serras outras vinham como a da Moeda cortando perpendicularmente o sentido da outra.
A estrada real a cavaleiro no alto dos espigões mostrava a amplitude do congonhal avançando para o Norte sem fim.
Na vastidão da nossa visão, não mais as árvores de lei,  como os Angelins, Jequitibás, Jatobás e Ipês; agora as retorcidas espécimes dos serrados onde abundava as frutas-de-lobo.
Por curiosidade, perguntávamos os nomes das variedades, esquecidas logo depois pela quantidade existente naqueles campos abertos e os nomes quase impronunciáveis a nossa língua.
Entre as espécies européias e as americanas, haviam diferenças, porém o que mais chamava a atenção, era o volume da massa florestal brasileira, nos matizes mais diversos que se pode conceber.
Na Europa, predominantemente os Pinheiros e Carvalhos num verde comum na Primavera e Verão, o tom Outonal das cores caramelo e marrom e depois a cor  branca das árvores cobertas pela neve.
As árvores brasileiras se enchem de flores na Primavera e durante o ano, suas folhas têm matizes diversos nunca perdendo a folhagem de seus galhos...
Paraíso de animais: Veados, antas, pacas, cutias e uma diversidade de pássaros que a cada dia nos deslumbrava; não passava um dia sequer sem ver novas espécimes.
Na alegria da cavalgada pela madrugada, onde tudo corria bem, os tropeiros cantavam alegres ao compasso do trotar da tropa e num embalo só:



Alumia os caminhos, oh Sol!
do nêgo véio que anda só,
que dure bom tempo no arrebol
prá noite calma, eu e ela só...

            Aaaah! ôôô! aí ai ai!
            noite longa, eu e ela só...

Em coro os tropeiros repetiam o estribilho e nós ingleses querendo saber o que cantavam...
Como podia cantar tão bem entoados, aquela gente bronca mas de sentimentos tão apurados!
A bruma que cobria os campos subia e  transformava-se  em nuvens  que se diluíam no infinito; ao entardecer, o céu se cambiava em matizes cor-de-rosa, formando faixas rasgadas junto ao horizonte.
 O humor dos tropeiros não era o mesmo da madrugada; cansados de andar à pé e continuamente arranjando as cargas, eles se transformavam.
Também pudera! A jornada fora maior que a dos outros dias e as juritis já cantavam chorosas o despedir de mais um dia...
Descadeirados pelo trotar dos animais, ficávamos a espera da parada.
                Que alívio!
Acabara os arrancos e o socar constante das cochas e nádegas sobre as selas naquele dia.
Cambaleantes, descíamos com dificuldade para entregar as rédeas aos tropeiros.
Como era bom ver ao longe, uma chaminé esfumaçando o céu!
Sinal de que alguém estava cozinhando o nosso jantar...
O cheiro do curral que no principio da viagem repugnava, agora era bem recebido como prenúncio de repasto e descanso breve.
Em todas as estalagens a beira da estrada real, havia ranchos onde abrigar a tropa e farta comida a saciar a fome e sede.
As mulheres conduzidas para os aposentos internos, onde geralmente tomavam o banho em bacias e dormiam em camas de madeira ou rede.
Nós os homens conduzidos a um rego ou bica, onde sob  o jato d’água, tomávamos o banho a céu aberto, escondidos entre ramagens que o hospedeiro convenientemente mandava plantar.
Jorrando intermitentemente sobre pedras, nós assentávamos sobre elas e deixávamos a  água penetrar pelos poros.
Lavados da poeira, suor e de alguns carrapatos, esperávamos o jantar preparado para tanta gente.
Logo depois do jantar deitados sobre mantas de couro cru, refazíamos no sono os desgastes da viagem.
Antes de deitar, os tropeiros nos ensinaram a tomar uma “talagada“ para chamar mais depressa o sono e expulsar os demônios interiores e exteriores do nosso corpo.
Ficávamos implicados com os ciscos intrusos dentro das garrafas; eram pedaços de raízes de bálsamo, canela e outras plantas medicinais que adicionavam a cachaça.
Rara era a pousada onde dormíamos em cima de um colchão atulhado de palha de milho e o travesseiro de paina de marcela.
Quando conseguíamos dormir sobre eles, era uma sorte!    
Aquele cheiro de camomila recendia agradavelmente; o sono vinha fácil ao corpo derreado sobre o enxergão.
Pela manhã, a dificuldade de levantar com o corpo manhoso envolvido no atulhado e amortecido colchão.
O café com o leite e o angu frito quebravam juntamente com as broas, o jejum da manhã.
Descansados, dormidos e prontos, os cincerros nos chamavam à nova jornada...
A manhã ainda menina, e nós partindo para Gongo Soco, última parte de uma viagem que nos parecia interminável.

Eu sonhara ou tudo aquilo era realidade!
Southampton onde embarquei e nem chegara a conhecer direito; o estuário tendo a sua frente a ilha Wigth, era realmente tão belo como parecera à primeira vista?
O impacto do medo daquela longa viagem, não permitia que eu percebesse direito o que a visão me oferecia.
Lembro-me do susto quando o navio largando o estreito canal entre a ilha Wigth, começou a adernar nas águas do Canal da Mancha.
Em saltos a quilha rasgava a massa de ondas,  oscilando perigosamente  e eu agarrado a sua amurada.
Sozinho no tombadilho, eu teimava em olhar para ver como era a Inglaterra vista do lado de fora.
A costa parecia envolta numa espumante cor branca; limite final do manto azul  das vagas ondulantes  que se quebravam nos rochedos.
Ao longe varriam os meus olhos, cenários desconhecidos numa tarde deslumbrante.
A baia de Weymouth, Lyme, cabos Prawle e Start e os últimos acidentes, Cabo Lizard e as afastadas ilhas Scily, escondendo por trás, Land’s End.
Nada mais restara da minha Inglaterra; agora só a escuridão do primeiro dia de uma viagem.
O balanço do navio durante tantas horas, já me causava enjôos e os meus olhos começaram a se fechar cansados...
  

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