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CAPÍTULO XI A PROVINCIANA CATAS ALTAS


A proximidade das terras do Caraça a Vila do Ribeirão do Carmo,  levaram os desbravadores de terras a aventurarem-se pelo mato dentro em busca de ouro, pedras preciosas e índios.
Esta busca, empurrou os bravos  bandeirantes até as nascentes do Rio Doce, onde a mata fechada abrigava  os índios  e as  riquezas ainda desconhecidas dos brancos.
Quando por lá passara Duarte Nunes catando o ouro e levando os “granetes" de cor escura até São Paulo para serem examinados, comprovou-se ser puro ouro e da melhor qualidade.
Abria-se com o achado, uma série de aventuras que se tornaram épicas, sem contudo deixarem gravadas as marcas  nas páginas da nossa história.
Os portugueses e paulistas viram que no leito dos pequenos rios, junto das nascentes que ocorriam nas serras, estava o que procuravam os portugueses, desde a descoberta do Brasil.
O ouro em catas tão altas, devia-se a erosão das fortes correntes lavando as barrancas e depositando no leito plano, as pipetas de jazidas tão ricas das serras.
Em 1.703, o bandeirante Manoel Dias atravessando para o outro lado da serra do Caraça, foi encontrar nas estonteantes e cristalinas águas da vertente Norte, o que procurava.
Seguindo os passos de Manoel Dias, os sertanistas: Domingos Borges e Antônio Bueno, ambos de nação portuguesa e com o mesmo propósito, fundaram por baixo da serra, o arraial de Catas Altas.
Com a fixação definitiva do alferes Domingos Vieira na região, a ele foi doada a Sesmaria de Catas Altas.
Primeira da região em plena Mata.
Mais tarde, com o alarde da descoberta de ouro, os primeiros povoadores começaram  a se assentar na terra:
Entre eles os pioneiros:

Antônio Ferreira Pinto
Domingos Moreira Afonso
Capitão Domingos Rodrigues Pontes
Capitão José Ferreira
João Pereira Fagundes
José Alves Pereira
Luiz Antônio Rodrigues Lima
Capitão Miguel Gonçalves de Carvalho
Manuel da Mota Moreira
Capitão Manuel de Seabra Costa
Manuel da Rocha Ferreira
Pedro Francisco de Carvalho
Dr. Francisco Ferreira Santos
Rafael Elvas
Teodósio Fernandes da Costa.

Esses os primeiros moradores de Catas Altas, que pela Carta Régia de 23 de abril de l.745  receberam  foros de cidadãos.
A 1ª Sesmaria doada a Domingos Vieira, ia se dividindo a bem do crescimento da rica região.
Embrenhando-se pelas matas, esses lanceiros dos sertões, largavam famílias e foram conquistando terras pela bacia do Rio Doce.
A inclemência do desbravio, não permitia carregar junto deles a família constituída, deixando o aventureiro desbravador, a esposa e os filhos nas  Vilas recém-fundadas.
Preando índios para o trabalho, também pegavam meninas virgens para as noites vazias de suas incursões
Eram diferentes de suas escravas negras; mais rebeldes à posse e a entrega...
A tentação aumentava com a resistência e acabavam sendo dominadas pelo instinto sexual de quem estava há tempo abstinente e  longe de casa.
Mesmo sem poder trocar palavras, as noites já não eram tão vazias ao dormirem com o corujar do mocho, ou o coaxar das rãs no brejo...

Aumentando a prole, o sentimento cristão não permitia o abandono da presa e cria na vastidão da mata.
Assim mestiçando no pecado tolerado, a igreja apesar de contra, calava diante do poder dos capitães  e do desordenado  povoamento.
Para bem da colônia portuguesa, era a maneira mais vantajosa e rápida de se apossar das terras ocupadas pelos bugres e evitar a posse por invasões estrangeiras de outros povos.
As terras ficavam por herança aos descendentes dos portugueses, não importando a espúria consangüinidade  de raças.
O povoamento mesclando as três raças: Branca, vermelha e preta originando a mestiçagem.
Mais do que a fusão das raças, a mestiçagem produziu um homem novo, afeito as condições climáticas e a possibilidade de maiores explosões demográficas.
Se o Brasil inteiro se mesclava, por que não Catas Altas?
Numa sociedade tolerante, com os privilégios dos senhores escravocratas, donos das senzalas e da vida de seus escravos, eles tinham direitos incontestáveis para seus prazeres.
Quando do nascimento dos filhos legítimos, a quarentena da incontinência sexual, levava o esposo a procurar no próprio lar, a substituta para as noites descasadas.
Com a promiscuidade campeando solta, 9 anos após descoberta, Catas Altas  demograficamente crescera além das expectativas.
Nas folhas 104 do livro número 1 da paróquia, já era dada notícias do primeiro cristão batizado na capela provisória no ano de 1.7l2.
Expandindo-se com os filhos legítimos e ilegítimos a freguesia tornou-se colativa pelo alvará de 16 de fevereiro de l.724, sob as bênçãos do padre Domingos Luís da Silva.
Neste ano, o povoado era maior e mais importante que o de Santo Antônio do Rio Abaixo, fundado em 4 de dezembro de l.704.
Os primeiros habitantes de Catas Altas, foram construindo suas moradias ao longo do caminho do Mato Dentro,  que passava ao sopé da serra do Caraça.
A igreja definitiva que depois seria a matriz, dedicada à Nossa Senhora da Conceição, teve início de suas obras nos primeiros anos do século XVIII.
Nela trabalharam os empreiteiros: Manuel Fernandes Pontes, Manuel Rodrigues e Francisco Antônio Lisboa, que não se deve confundir com o célebre Aleijadinho.
Ainda trabalharam nela os artífices: Manuel Gonçalves Valente e Manuel Pereira dos Santos.
Voltando a formação social de Catas Altas, lembramos de Gilberto Freire, que em sua análise sobre a família brasileira, dizia:
“- E claro que sempre houve a senzala e todas as conseqüências derivadas: Miscigenação, Mãe Preta e Moleque da casa Grande...“
Acrescentando o que dizia o sociólogo, lembramos do ditado que dizia:

“O mineiro que tem consigo uma negra Mina, nunca faltará a sorte na mineração. “

Por estas e por outras crenças, a todo pretexto nasciam crianças e aumentava a população da região das Minas Gerais.
Os filhos espúrios dos brancos com as negras, gerava um novo tipo aclimatado às condições da terra e herdando os predicados benéficos da fusão de raças tão diferentes.
A fecundidade do europeu português e das negras do continente africano, aguçou o instinto reprodutor dos lusitanos, dando ao Brasil, os frutos desta união:
O mulato e a mulata.
Enquanto a mulher branca fechava-se dentro dos lares assobradados, a mulata circulava livre entre as senzalas e os terreiros da Casa Grande.
Sinhazinha, quando tinha contato com os moços, somente nos ritos religiosos ou através das janelas de suas casas ouvindo as serenatas.
O flerte de longe não podia ser notado por terceiros, pois aos pais, era um ato de despudor da filha e um atrevimento do jovem deslumbrado...
As uniões eram tramadas pelos pais interessados, fortalecendo o elo entre as famílias mais abastadas.
Para a escrava, a liberdade plena nos terreiros das fazendas ou nos grandes quintais das propriedades.


Como crias da natureza, se expunham com as vestes mínimas, pulando como cabritas aos olhos do criador; Se os lírios brancos enfeitavam os jardins, a mulata enfeitiçava os corações dos sinhozinhos, mostrando o que as sinhás ocultavam em suas vestes caras.
Era o mínimo da veste, no máximo da tentação aos olhos de sinhozinho; meninas nas graciosas formas puberes, com seus corpinhos flexíveis como enguias  meneando os corpos quase nus no rebolado do côncavo e do convexo.

O poder do senhor e a submissão da escrava era um prato de doces frutos,  expostos ao gosto de quem era dono e podia desfrutá-los.
Fruto de vez, mesocarpo amadurecendo para a colheita;  sinhozinho tinha a primazia de colhê-los para seu deleite,  sentindo a parte carnosa do  viço virgem...
Só um poeta com a visão e a vivência de Renato Teixeira Guimarães, podia cantar em versos o que no Brasil fora dado aos homens:

                             M U L A T A
                             
  
             Mulata!  Flor estranha das senzalas,
             Misteriosa rosa dos mocambos!
             Tens dilúvios de amor na voz, se falas
             E incêndio de paixão nos olhos bambos.

                                 Por tua fresca pele cor de jambos,
                                 um cheiro quente de volúpia exalas.
                                 Na cozinha és mais fêmea, entre molambos;
                                 Que as brancas entre sedas pelas salas.

              Freira de amor de carne hospitaleira,
              Esposa oculta que ninguém dá nome
              Noiva da mocidade brasileira...
                                                                   
                                 Tu nos dás carne e fruto em nossa rede,
                                 Eva trigueira da primeira fome,
                                 Samaritana da primeira  sede!
  
Foi na sociedade escravagista e no ambiente acolhedor da região central de Minas, que os ingleses da Cornualha, encontraram o ambiente para suas aventuras amorosas e neste particular as pretas e as mulatas tiveram um papel  preponderante.

Na falta da mulher branca, o inglês sentia que a de cor satisfazia seus instintos; pois era mais fácil e a mão, nas vezes que Eros mexia com a libido.
Na África do Sul, muitos deles já haviam experimentado o sabor das bagas suculentas e  os portugueses já radicados no Brasil,  deram a eles a muda de um fruto ainda mais saboroso, a mulata...
Que digam os batistérios preenchidos pelos padres, que mostram os registros guardados pelos Arcebispados.
Como cresceu Catas Altas sob os lençóis de linho!
Como nasciam mestiços, sob as sombras dos laranjais.
No século XIX, após a abertura dos portos por D. João VI, não só as mulatas aportuguesadas de olhos negros ou pardos, começaram também a nascer meninos de olhos verdes, fruto da invasão inglesa aos locais das minas.
Os jovens ingleses da Mina do Gongo Soco, que esperavam voltar um dia para sua terra e lá se casarem, não conseguiam abstinentes esperar por tantos anos.
Meninos da cor de chocolate e de olhos verdes, começaram a nascer no Gongo Soco e imediações de Catas Altas.
Os livros de batistério da paróquia de Nossa Senhora da Conceição registravam nas séries: G-5 até G-9.
 Párvulos filhos naturais da cabra cativa fulana com o inglês, fulano: “Junho" - “Mary“ - “Robert “ - “Charles“
A contra gosto o padre Francisco Xavier de França fazia assentamentos de nomes não latinos sem a identificação com o santo do dia.
Estafando-se em pregar a moral dos costumes nas catas de Quebra Ossos, Morro d’água Quente e no arraial do Arranca Toco, o vigário sentia-se frustrado, por pregar ao vento.
Durante as missões, batismos por atacado, revelando muitas vezes, um mesmo progenitor para 1 a 5 filhos durante o período de um ano.
Não era milagre da multiplicação como fizera Jesus com os pães, era pouca vergonha mesmo, campeando na devassidão dos costumes.
O que mais magoava o vigário era o mau exemplo dos chefes dos acampamentos, homens que se julgavam proprietários do corpo e da alma de suas escravas.
- Ah,  Catas Altas!
Nova Sodoma do século XIX...

O crescimento desordenado em função da mineração, não estava estruturado para abastecer tanta boca.
Começara a faltar pão, ordem e sobre tudo, respeito...
Os crimes campeavam e o ouro incentivava os roubos a ganância e a usura.
Raro era o minerador que vinha para Catas Altas com o intuito de fixar raízes, o ouro só dava uma safra.
Ali surgiram alguns tropeiros que do comércio, conquistaram espaços entre os que mineravam.
Para alimentar tanta gente, alguns forasteiros começaram a dedicar-se ao cultivo do campo e foi com esta atividade incessante, que surgiram as famílias tradicionais:

Alkimins, Alves da Silva, Ayres, através dos Martins,  Barrocas, Bittencourts, Brüzzis, Cottas, Coutinhos, Emerys, Franças, Figueiredos, Gomes Martins, Gomes da Matha, Hoskens, Lacerdas, Leitões, Martins, Mendes, Mendes Campello, Moreiras, Munis, Passos Ferreiras, Pennas, Pereiras da Cunha, Pinto Ferreira, Proenças, Prudêncios,  Sás, Teixeiras Vasconcelos, Viegas, Vieiras da Silva e Viveiros.

Algumas destas famílias, as mais antigas, quando Saint’Hilaire as conheceu, visitando Catas Altas, deixaram no escritor naturalista, forte impressão, pela hospitalidade e afabilidade de seus membros.
Por conviver com elas, ele deixou este registro:

“Os mineiros são como os franceses; eles nos olham bem antes de tirar o chapéu; sua mão fica suspensa junto a aba, sem saber se levanta ou deixa como está, num olhar desconfiado...
Quanto às mulheres, quando as olhamos, fecham a cara e seus homens faziam-nas sumir para o interior da casa e o tom da conversa mudava completamente, quando não, cortando-a definitivamente. “

Todos os forasteiros que por lá passaram, deixaram impressões do ar desconfiado do mineiro, principalmente durante a guerra do Paraguai; medo do agente recrutador de voluntários...
O matuto isolado,  sem  contato civilizador, foi simplificando o palavreado, corroendo letras e silabas das palavras e daí criando o linguajar próprio e diferente:

“UAI - OC - OCÊ - NHÔ - IÔIÔ - IAIA -  OIA - OI - ANCÊ - OIU - OXEM - PRO MODE - INTÉ TRU DIA - MINHÃ - NOSSINHÔ - FIL DAS UNHA - PRA QUE - SUS CRISTO - TÁ SOLANDO em vez de está chorando.  DALINA  em vez de galinha.”

Com o jeito matuto de ser e fechado entre montanhas, só se misturava  com os índios e  negros fugidos.
Nos socavões devolutos ou grotas onde ninguém penetrava, criava a família formando castas isoladas, que no minério rico, encontrava trabalho.
Dai a denominação toponímica que generalizou o seu nome.
MINEIRO.
Enquanto perdurou a abundância do ouro de aluvião, a população crescia formando povoados com a massa escrava e uns poucos brancos portugueses.
Os brancos que se tornavam ricos com a cata do ouro, recebiam os produtos de Portugal e os importados da Inglaterra.
Vestes e objetos como tecidos, calçados e vidros transportados por mar até os portos de Salvador, Rio de Janeiro, Santos e Paratí.
Os negros escravos manufaturavam suas roupas e calçados com os sacos de aniagem; improvisando com sabedoria os tecidos de uso pessoal  que não podiam comprar.
Da mesma maneira que improvisavam vestes, adaptavam os alimentos, sobras da “Casa Grande.”
Os restos retalhados e indesejáveis do capado que matavam, o feijão preto não comido pelos brancos e o fubá que se espalhava pelo chão dos moinhos.
O negro ia adaptando a sua maneira,  seus pratos da alimentação.
Se a veste escrava era rala e parca, Deus cobria as negras com a sensualidade dos seus corpos, vestindo-as esmeradamente com os remelexos de seus gingados.
Nelas não havia pelos escondendo a pele que reluzia a sensibilidade dos olhares indiscretos de seus donos, tão pouco as inúmeras anáguas que escondia a carne em chama...
Correndo atrás da lebre, o caçador encontrava a caça entregue em sua foja...
Nhô deixava lá dentro do sobrado, o linho forrando camas de jacarandá torneadas e recobertas de véus mosquiteiros, os urinóis e as escarradeiras de louça  inglesa, as toaletes com mesas de mármores de Carrara e seus espelhos bisotados, para deitar-se  sobre o leito do capim cheiroso com a cabritinha despontando para vida...
A negrinha também sonhava em ter como sinhá, tudo aquilo que dava conforto e prazer de se ver e desfrutar.
As cadeiras de espaldar, as mesas longas, as louças de Limoges e os cristais Baccarat.
 - Como era bonita a casa dos sinhozinhos!
Para o ambiente da época, não importava que da cozinha para dentro, os cômodos cheirassem a ranço e a cozinha na semi escuridão, coberta pelo picumã  fosse obra de tantas aranhas tecendo desde a construção do casarão.
Ah! a comodidade dos brancos; eles tinham nos orinóis e  cagatórios sobre os regos de serventia.
Aquela guarita de adobe, um luxo, estrategicamente instaladas sobre a água corrente.
O trono com a cadeira vazada anatômica, permitindo aos homens à comodidade do badalo suspenso à ventilação direta.
A visão zoológica, vendo os bichos passando por debaixo.
Os galináceos, os porcos e os pássaros  alimentando-se e fazendo a higiene do canal, não permitindo que os troços fossem levados até ao córrego.
Na cadeia alimentar, devolviam aos animais o que era dado a eles  indiretamente.
Dentro do casarão as coisas importadas, do lado de fora a rusticidade do eterno provisório, inclusive as instalações sanitárias,  quando existiam...
O mineiro para comodidade do bolso, esquecia o conforto, não obstante, o ouro guardado retirado nas bateias.
Foi principalmente com a ida para Vila Rica, que Magdalena começou a perceber as diferenças do conforto que a cidade grande proporcionava e as diferenças entre o povo da capital e da Vila onde morava.
O que era fino e o que era grosso, o educado e o deseducado, a diferença gritante do conversar com as pessoas esclarecidas e a rudeza do linguajar escravo.
Agora ela prestava atenção nas palavras e no maltrato da língua portuguesa.
Fosse na conversação, ou nas modinhas que cantavam, ela percebia o barbarismo aos ouvidos, quando não, à  afronta ao pudor...
Alguns versos ela chegara a decorar e fazia questão de guardá-los para mostrar a quem cantava o sentido impróprio dos versos.

Eu queria, ela quiria,
eu pidia, ela negava,
eu chegava, ela fugia.
eu fingia, ela chegava...

Chupa minina a cana
qui é doce muito bão,
mais mió, é chupa na cama
gostusura do Bastião...

Tião,  s’ocê é gande,
só dá eu,  sastifação!
Maise, tudo  isto  é glande?
Nu tô aqui  pra  judiação...

Inté qu’ocê merece,
carregá na sua mão;
tudo qu’ancê carece,
dado de coração...

Nas bicas da serventia, lavando as roupas e o vasilhame da casa, as negras cantavam sem mesmo saberem o sentido exato dos versos chulos, que aprendiam ouvindo na senzala.

Uma tarde a sós com a mãe, revelou acanhadamente o que as escravas cantavam, recitando de viva voz, os versos que ouvira envergonhada.
- Você depois que voltou de Vila Rica, põe maldade em tudo que ouve, filha!
- Mas o que elas cantam é chulo, mamãe!
- E o que é chulo, filha?
Magdalena achou melhor por termo a conversa; se a mãe não entendia a letra, muito menos as escravas ignorantes.
Com o tempo, ela foi explicando às escravas o sentido malicioso dos versos, que além de indecorosos, eram também  impróprios na boca de uma mulher...
Seu jeito todo especial para ensinar, ensejou as escravas assimilarem a catequese moralizadora da mestra; não se ouvindo mais o bangulê cantado em versos imorais.
Dando nova versão a letra dos versos e ensinando a leitura, os negros mais chegados, começaram a serem alfabetizados.
Quando Magdalena fora mandada à Vila Rica, as línguas ferinas não perdoavam o desperdício do dinheiro.
Ninguém também se lembraria mais tarde, que foi graças aos estudos de suas filhas, que as meninas do Guarda-Mor conquistaram os bons partidos, de homens estrangeiros...
- Prá que, muié letrada?
Quantas vezes não ouviu o capitão Thomé, aquela indagação...
- Muié diziam eles, foi feita prá escola do lar, onde não falta serviço...
Prá aperfeiçoar, bota as fias no bordado e nas costuras, gentes!
Ao saberem que até as escravas do Guarda-Mor estavam aprendendo a ler, as senhoras da sociedade e analfabetas, acharam uma afronta às sinhazinhas...
Padre Francisco Xavier comentou o caso com Magdalena.
- Por que elas também não aprendem, padre?
- Aqui não tem escola para elas, filha!
- Se o senhor abrir as portas da sacristia para esta finalidade, eu me ofereço para ensiná-las...
Nem todas passariam pela humilhação de serem ensinadas por uma mocinha, mas um bom número de voluntários, apresentou-se para matricular numa das primeiras escolas de alfabetização fundada em Catas Altas.
Padre Francisco fez questão de dar a primeira aula do curso, explicando porque estava abrindo a escola.
A cegueira dos que não sabem ler é pior do que a dos verdadeiros cegos.
Maria Magdalena iniciando a carreira de mestra, explicou porque abria com padre Xavier a escola.
Ouvindo em sua própria casa, coisas que nunca deviam ser ditas por uma mulher, ela se envergonhava, sabendo que, eram ditas por ignorância de quem desconhecia o verdadeiro significado das palavras.
O padre que ficaria somente na aula de abertura, sentindo o interesse de tanta gente, passou a dar aulas de catecismo e particularmente de moral,  o que faltava na época à  comunidade mineradora da vila.
O Guarda-Mor vendo o trabalho de Magdalena sentia o quanto fora importante os estudos da filha em Vila Rica.
As atividades sociais dela e a ajuda na direção da casa, chamou a atenção de todos.
Na casa do Capitão começaram a surgir novos móveis, espelhos, tapetes, reposteiros e porcelanas; a menina ia pondo o dedo em tudo.
As escravas recebiam aulas como servir educadamente as visitas e responder quando solicitadas.

Nas noites de tertúlias, as bandejas de prata circulavam com o chá e os sucos sobre as mãos estendidas e oferecidas às visitas femininas.
Para os homens, o vinho e as frasqueiras de licores.
Magdalena já sabia a preferência de cada um dos freqüentadores de sua casa:
Para o avô Paulo, o mais velho dos visitantes, a laranjada sem muito adoçante e nada de comidas sólidas.
Para Dr. Manoel Moreira de Figueiredo, creme português, cuja receita ele mesmo trouxera de Portugal.
Compartilhando com ele, o velho Martinho Martins, que lembrava de sua mãe fazendo aqueles doces no fogão da sua casa na ilha Terceira dos Açores.
Padre Xavier, preferia o doce de ovos, que levava segundo a receita, meia dúzia de gemas de ovos, açúcar mascavo e leite.

Já o major José Maria Brüzzi e sua esposa a prussiana D. Cornélia Pastrana, o “Strudel" de amêndoas com baunilha e fruto de cacau.
O Coronel Emery tinha  preferências pelas tortinhas de Magdalena, como ele mesmo dera o nome.
Com tantos agrados, as noites na casa do capitão Thomé e de dona Rita, ficaram famosas, pois além dos velhos, os filhos do Guarda-Mor atraiam também os moços da mesma idade.
Não foi sem razão, que eles pescaram para suas filhas no decorrer dos anos, quatro pretendentes estrangeiros para honrarem e se associarem aos Mendes Campellos.
As discussões políticas, religiosas e sobre mineração dominava a rodinha, de vez em quando descambava sobre educação, coisa que padre Francisco mais do que religião, abordava; pois evitava discutir a fé com pessoas que não era do seu credo; caso dos ingleses que freqüentavam a casa do Guarda-Mor.
A educação entrava na conversa, depois que o Caraça fechara suas portas, desde 24 de agosto de 1.842.
Havia passado 5 anos, a escola continuava fechada para os moços; um desastre segundo Dr. Moreira que conhecia tão bem o educandário.
- Perde-se coisas materiais e até espirituais como o seminário do Caraça, porém Deus nos dá outras coisas como recompensa pelo que perdemos...
- Como assim,  doutor?
- Estive ontem na Vila do Ribeirão Santa Bárbara, onde fui abençoar 2 novos cristãos que se batizavam, filhos de parentes que não podemos recusar convites, por mais longe que estejam.
- Quem, doutor Moreira?
- O mais novo filho do comerciante Domingos José Teixeira Pena, sobrinho de dona Anna Teixeira Pena, vosso parente açoriano, sô Martinho!
-Meu não, de Donana minha esposa!
- Farinha do mesmo saco, patrícios e comerciantes...
Donana, já foi visitar a comadre dona Ana Moreira Pena?
-Ela esteve em Santa Bárbara dia seguinte ao nascimento, 30 de novembro   de l.847 e  chegou a comentar que dariam ao menino um nome pomposo.
- Ou Donana, como vai chamar o menino do Domingos?
- Que menino, Martinho?
- Do Domingos Pena...
- Ah! Se não me engano, Afonso Augusto.
- É, na hora de registrá-lo vai ficar um nome tão extenso que se gastará  uma página para escrevê-lo; hoje é moda das famílias mais importantes, imitando os nobres...
Só vendo como a igreja estava enfeitada de flores, cantos em latim, e rapapés dos convivas.
Parecia festa da Ressurreição, tantos eram os foguetes!  
     - Que, igreja bonita!

Ver anexo nº 22 e 23 ( Igreja matriz  de Santo Antônio em Santa Bárbara. )

O casarão da ladeira todo embandeirado; a varanda quadrada ficou apinhada de gente para assistir as pastorinhas se exibindo no pátio central, com seus cânticos e danças em homenagem ao menino batizado e ao que iria nascer 24 dias depois, o menino Jesus.
- O senhor conversou com o arcipreste, padre Xavier?
- Padre João Batista de Figueiredo não faltaria à festa, mesmo que não fosse ele o oficiante do batismo!
Foi ele que me chamou a atenção do forro da sala principal, pintado nos retábulos, cenas cotidianas de cada continente.

   O ano de 1.848 começou auspicioso para Maria Magdalena; uma turma de meninos foi entregue a ela para alfabetizá-los.
Por sua vontade estenderia o ensino de alfabetização a toda população carente, inclusive às crianças escravas.
Seu pai e os senhores de escravos opunham, dizendo:
- Abrindo os olhos da negrada, em pouco tempo vamos ter sedição, tal como já houve em Santo Antônio do Rio Abaixo e Palmares das Alagoas.
- Pelo contrário, pai!
Quanto mais se aprende, mais raciocínio e respeito o homem tem.
Já se foi o tempo que os escravos rebelavam; hoje a milícia está atenta e ativa.
Só nos tempos de Felício dos Santos e Tiradentes os homens sublevavam, porém naquela época  havia motivo para revolta...
A leitura abre a visão dos negros e aí começam a mensurar o que eles chamam de direitos.
- Ora, pai! O senhor mesmo está falando e reconhecendo os seus  direitos...
- Quem falou com você que negro têm direitos?
Direito, filha! É de quem gastou uns bons cruzados para comprá-los...
Você não fica lendo panfletos libertários que os Liberais andam espalhando, filha!
A libertação dos escravos como eles querem, será a desgraça para toda a nação, inclusive aos seus proprietários...
Mais que a desgraça dos seus donos, será dos próprios negros quando libertos, não tiverem onde trabalhar e comer...
O tal Euzébio de Queiroz, que anda apregoando na Câmara a necessidade da extinção do tráfico de escravos, será que pensou no que ocorrerá?
É muito bonito os fatiotas da corte, com seus fraques e gravatas subirem na tribuna para pedirem a abolição da escravatura, mas será que eles sabem de onde vem o que eles comem?
Ou acham que o maná ainda cai do céu?
Ah!!!  Quando faltar os negros na roça...
Será que o deputado Euzébio trocará a pena pela enxada?
Seu tio Chico é que sabe das coisas, quando diz:
- “Negro nós cria, engorda e bota na roça; se manga no eito, vendemo prá não contaminá a praça, ou no tronco pra sê amaciado pelo chicote. “
Sua tia Bonifácia coitada ceifava os negrinhos pra ficar bonitinhos e o Chico vendia todos como capado para os compradores das minas.
- Que judiação!
Dava gosto ver os compradores mandando os bacuris abrirem  a boca para que eles  mostrassem os dentes...
Admirados com a gordura e os dentes brancos, compravam as peças para levá-los para mineração de ouro do Gongo ou da Cata Preta.
Depois, viam que tudo, “era uma merda. “
Fruto de que?
Trato demasiado da sua tia, minha filha!
Se agora está assim, imagine quando a negrada for livre; quem irá roçar, plantar o milho e o feijão?
- É verdade que o tio Chico, chegou a vender numa só partida, todos os homens machos?
- Todos não, o Baptista ele preservou para fazer novas crias...
Na época, ele tinha em mente a mudança para Leste da zona da Mata, dai ter vendido não só os machos, mas também diversas fêmeas escravas.
- Ele acabou indo para lá, não foi?
- Ajuntou as trouxas e partiu para Abre Campo, com balaios, caixotes, mulas, burros e a filharada...
Pelo nome do lugar, você pode imaginar como era a mata fechada...
Quando o Chico negociou toda negrada para partir, minha cunhada jurou que ele nunca mais venderia seus bacuris.
Ela cansara de encher os olhos com as crias, tomada de amores por eles, e depois assistia a venda deles como se fossem reses...
- Era muita maldade para quem criara!
Tia Bonifácia tinha razão, com seu coração de ouro, apegando-se aos meninos que ela vira nascer e criara, alguns deles, nascidos na viagem e trazidos quase mortos do posto de Passanha.
Geralmente índios Botucudos, Coroados, Malalís e Monoxós; todos apreciadores do bicho da taquera, uma larva branca que os bacuris apreciavam e pediam para cozinhar.
Tia Bonifácia acabou aprendendo com os índios que o tal bicho, alem de alimento, servia depois de preparado, como pasta para curar feridas; remédio tiro e queda...
- Então foi o tio Chico que puxou o cordão?
- Que cordão?
A fileira dos parentes Mendes Campello que partiram para a Mata...
- Parece que sim, com eles outras famílias de Catas Altas, tais como:
Os HOSKEN, LACERDAS, MONTEIRO OLIVEIRA, MONTEIRO DE BARROS, PEREIRA d’AVILA, MUNIZ, e tantas outras que seguiram os Campellos.
- Gente corajosa e aventureira!
- Corajosa nada!
Necessidade de sobrevivência, pois em Catas Altas começou a faltar trabalho e terra.
O jeito era procurar onde havia com fartura, solo fértil.
No principio, até com os índios eles disputaram as terras, a maioria das vezes, tendo que sair correndo da sanha dos Botucudos; tribo das mais bravias da região.
Bonifácia tinha pavor deles, pois, o próprio marido propagava na região da Mata, que sua mulher criava os “mi’ri “.

Conhecendo palavras do Tupí-Guaraní, os índios do Rio Doce olhavam para ela com certa reserva e chamavam-na de: “Muçurana“
Depois de certo tempo, os próprios índios contaram a razão do nome:
Muçu é a mesma coisa que reptil e Rana a tradução de guerreira ou encantadora de cobras...
Como havia aprendido com os índios capturados em Peçanha a arte de manipular remédios da flora, era tida por eles, como uma “pa’yé“
- Então era verdade que o tio criava índios para depois vendê-los?
E eles submetiam a escravidão como os negros?
Claro!  Com bom trato e às vezes chicotada, até cavalo xucro agente amansa, minha filha!
Quer um exemplo: Zéfa e Nhana são purís, crias da Bonifácia que chegaram no Retiro sob o laço e chicote; pela amostra você vê quanto era eficiente os métodos de sua tia.
Na Cachoeira, Chico e Bonifácia mestiçavam o gentio com africano, como mexido em fogão; dando crias de cor parda, perna fina, cabelos corridos e olhos castanhos.
Gente apreciada não só para o trabalho, como também para os prazeres da cama, pois perdia no acasalamento, o bodum dos negros.
A apuração da raça, além de apreciada pela aparência, era desfrutável ao gosto do comcúbito.
- Então, Zéfa e Nhana tem a mistura destas raças?
- Negra dos Bantus de Angola e vermelha da grande nação Tupi.
- Como é que o senhor sabe?
- Bonifácia conhecia as crias da fazenda, como as suas próprias; ela era capaz de lembrar e nomear as mães, mesmo decorridos vários anos.
O pai, ainda era mais fácil, pois lá no retiro, o Chico só acasalava negras com o seu reprodutor escolhido:
Baptista, negro de 1,85 metros de altura, pesando 7 arrobas de músculos e ossos; este não era o seu nome de batismo, recebera o apelido depois de adulto, já como garanhão.
O nome veio da razão dos batismos que ele dava às negrinhas virgens na senzala.
Tio Chico concordava com este tipo de acasalamento?
- Ora se concordava!
Era ele mesmo que determinava, pois queria as crias sadias e parracudas...
- Então Miúda, não é filha dele?
- Certamente que não, pois o tamanho dela negaria a paternidade.
- Corre boatos que o Baptista deixou uma descendência de quase 100 filhos, é verdade?
- Ninguém vigiava as senzalas depois de fechada durante a noite, de maneira que na escuridão seria impossível dizer, quem era pai de quem, apesar dos mais fortes, como Baptista, dominarem o reduto.
O “marruá“ valia pelo que as próprias negras comentavam, apesar de pesadão para a lavoura e lida com animais.
Entretanto, era ele que levantava carros de boi nos atoleiros; colocando-se de um lado da mesa do carro, contra 4 do outro.
Diziam que ele conseguia derrubar um boi bravo com um só murro no testeiro do bicho; era bater e cair de joelhos...
Toda a escravatura tinha respeito e até medo dele.
Magdalena lembrou do negro Zaga, que acompanhava Edward, associando a imagem dele, com Baptista.
- Será, que Zaga era filho do Baptista?
Na sua mente ela via o Baptista semelhante ao Zaga o que não seria impossível da paternidade dele, tendo em vista os inúmeros escravos do Retiro, vendidos à Mina do Gongo.
Magdalena voltada às suas imaginações, não viu nem ouviu a mãe  perguntando:
- Que conversa animada é esta com seu pai?
Havia razão para a pergunta, pois pouco conversava o capitão Thomé com seus filhos.
O pai está contando casos dos tios, Chico e Bonifácia...
Sentado na varanda do fundo, lugar predileto para pitar, o capitão Thomé com os pés sobre um banco, alisava uma palha para fazer seu pito.
O canivete corria sobre a palha, como se afiasse sobre pedra, indo e voltando, sem que o capitão desse pela finura em que chegara a palha.
Todas as tardes depois das Ave-Marias sentava naquele mesmo lugar e geralmente ficava calado, vendo e ouvindo a esposa Rita, rezando o terço.

Magdalena,  observava o pai na sua tarefa manufatureira de cigarros, colocando-os depois de prontos, numa peça antiga de manteigueira.
Respeitando a reza de dona Rita, ninguém falava puxando assunto, até que ela desse sinal do término do terço.
Era ela mesmo que anunciava o fim da reza, geralmente dizendo para quem rezara naquele dia, data de aniversário de vida ou de morte de seus parentes.
- Tempo perdido de sua mãe, Magdalena!
Quem não andou certo nesta vida, não andará certo depois da morte...
- Que é isto, Thomé!
Rezo inclusive para Donana sua mãe, que foi uma santa...
- Santa não precisa de reza, Ritinha!
Já ganhou  o céu com  todos os méritos de sua virtude...
- Mas, e para  seu pai,  capitão Paulo?
-Ah! Para os homens você não pode deixar de rezar, ele ria pois conhecia seus   próprios pecados e do pai,  tantos eram os filhos naturais...

- Mãe, quem são os pais da sua cunhada Manuela Umbelina?
- O Francisco e  a Bonifácia Emerenciana Gomes Pereira.
- Qual deles é filho do Thomé das Letras?
- O Francisco, com o  mesmo sobrenome, Monteiro de Oliveira...
Todos descendentes dos Chassins, Godoys e Gagos.
Por que vocês são tão amigos e ligados a eles?
Por via dos casamentos em família e amizades desde o tempo de meninos.
Dos dias que passávamos na Cachoeira de Santo Antônio, dos banhos e brincadeiras.
Tia Bonifácia como nós a chamávamos, não permitia que tomássemos banho na cachoeira, alegando que era impróprio e indecente para nós meninas.
Mas, quando víamos o Fernando, Francisquinho e o João dirigindo-se para as quedas, não resistíamos aos apelos deles e seguíamos atrás.
Era irresistível o convite para descer nas pedras lodosas daquele escorregador natural.
Foi nadando lá que conheci o Thomé, o capeta como era chamado, por molestar principalmente a nós meninas.
No principio, tínhamos ódio de suas brincadeiras, depois ele mesmo vendo que em vez de atrair, espantava com seus modos, mudou de tática e abrandou seus ímpetos...
No Verão, todas às semanas visitávamos tia Bonifácia, pretexto para nadarmos com as meninas: Lucinda, Rita e Ana Maria.
- Então o pai era um capeta, mãe?
- Se era!
- O rabo cresceu, cresceu tanto, que  hoje não tem como escondê-lo...
- Ou mãe, a senhora tem coragem de falar assim do pai?
- Todo homem é assim, minha filha!
- Ah! Garanto que meu Eduardo não é, nem o padre Francisco...
- Este veste saia, tô falando dos pintos calçuldos...
- Você ainda pensa no inglês, filha?
 - Para a senhora confesso que sim;  não posso mentir.
Mas para o pai, finjo que o esqueci...
- Então nem a mim quero que você confesse seus sentimentos amorosos...
Mudando de conversa, Magdalena perguntou:
- Mãe, eu estou curiosa, como nadavam lá na Santanna, na Cachoeira e na fazenda do Engenho da tia Anna Clara?
- Com vestidos, sobre calças longas justas, amarradas nos tornozelos; colando o tecido molhado na pele, deixava ver as formas como se não estivessem compostas.
Era por isto que a Bonifácia e eu não gostávamos que as meninas nadassem com os meninos maiores.
Pandenga que nós mesmas não sentíamos nenhuma maldade, pois os menores até nadavam nus.
O perigo era os velhos quando ficavam sabendo das nossas peraltices,  desobedecendo as recomendações...
O banho nos rios, principalmente no Verão, transformava-se em brincadeiras, sem necessidade de esquentar a água ou espremermos nas bacias, tolhendo os movimentos.
No Inverno, só os corajosos na parte da tarde conseguiam nadar nas fazendas da Cachoeira e da Santanna.
Quando não conseguíamos montaria, andávamos a pé descendo o leito do rio Maquiné, até a fazenda.
Descalços, ferindo os pés nos seixos, procurávamos saltar de pedra em pedra, o que às vezes provocava escorregões espetaculares nas pedras  lodosas.
Nos pocinhos, extasiávamos com os lambaris e piabas tentando pescá-los com represamento da água.
- Sua infância foi muito alegre, não foi, mãe?
- Tanto como a sua, filha!
-Por que o pai não conta como à senhora as suas histórias de infância?
-          Falta de tempo, alem disso os homens não são apegados ás coisas passadas.
-           
- Por que há tanta confusão entre o pai e os outros Thomés?
- Sempre houve muitos Thomés em Catas Altas e um em particular, marcou época, o  Thomé Monteiro de Oliveira, apelidado mais tarde como Thomé das Letras, que era casado com dona Anna Maria Valentina; o casal também tinha um filho com o mesmo nome do pai e sucessivamente os filhos  homenageavam  o patriarca da família Monteiro de Oliveira.
O tal Thomé das Letras chegara quase a se ordenar padre, daí sua cultura e o apelido como ficou conhecido para distingui-lo dos outros.

 A fama dos Monteiros de Oliveira vem do sangue herdado dos Antão de Leme e Felipe Gago.
Desbravadores, e fundadores da cidade de São Paulo, tal como o companheiro padre Manoel da Nóbrega nos idos anos de 1.750.
Esta gente seguindo João Ramalho, ajudaram a erguer os alicerces da Piratininga.
- Mãe, conta pra mim:
 Como é que a senhora fica sabendo de tanta coisa?
- São histórias de família, passadas de boca em boca, principalmente pelo tal Thomé das Letras, cultivador das raízes das famílias de Catas Altas.
- Aqui durante vários anos, foi o fim das entradas para o Norte e Leste; pois as matas e as doenças não permitiam penetrações, não se falando dos índios que dominavam toda a região circunvizinha.
Com esta barreira pela frente, os habitantes começaram a se casar por aqui mesmo, formando quase uma família só, de poucos troncos.
- A senhora guarda tanta coisa da sua origem, por amor aos antepassados, ou por vaidade?
- Pelas 2 coisas que afinal se resumem  em l única: Amor...
- Eu acho lindo preservar histórica das famílias, é pena não podermos buscar nossas raízes até Adão e Eva....
- Bem que São Mateus tentou esta façanha com a genealogia de Jesus, indo até ao antepassado mais distante, Abraão.
Veja filha, todo este interesse da sua parte por suas raízes,  é conseqüência de seus estudos em Ouro Preto; o ensino  amplia a visão e até mesmo a  valorização do amor com a distância...
A conversa  entre as duas enveredou por outros caminhos e a mãe perguntou:
- O que está se passando entre você e Eduardo?
Ele deixou de escrever e procurá-la?
- O que a senhora queria que ele fizesse,  depois do silêncio a resposta que ele pedia?
- Há um ditado, filha!
“Quem espera sempre alcança...“
Se você tem mesmo um grande amor por ele, convença-o a converter-se à nossa fé e seu pai mudará de opinião.
- Ele é igual ao pai, parecem mulas empacadeiras.
- Você sabe que a fé remove montanhas, peça à Deus esta graça...
Magdalena sentia que às vezes a mãe estava ao seu lado, porém não tinha coragem de ser sua aliada contra a vontade do marido.
Aquele preconceito religioso estava sendo obstáculo a muitos namoros, que surgiram com a presença dos ingleses na região.
No olhar e proceder da filha, dona Rita via uma magoa  latente...

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 A Primavera de 1.848, além das flores, trouxe pesadas chuvas  dificultando o trânsito pelas estradas da região.
Até as tropas descansavam esperando uma estiagem para voltarem a cruzar os caminhos.
Não só Catas Altas sofria a inclemência do tempo, a zona da Mata inteira padecia sob as chuvas contínuas.
Em meados de Outubro, Magdalena teve notícias que Edward estava na Mina de Quebra Ossos e operando também no  arraial do Arranco Toco, depois viria para o Morro d’Água Quente.
Certamente conforme combinado, estava conjeturando a maneira de realizar os planos do casamento; infelizmente para ela, de uma maneira indesejável...
O sonho de desfilar de véu e grinalda pela nave da matriz, ia desaparecendo.
Sua decepção apesar de grande, não mudava sua obstinação de casar-se no fim do Ano.
Durante as noites, permanecia insone e o segredo alimentando os pensamentos; ela tentava na costura, afastar suas apreensões de rebeldia.
Mas, como afastá-las se nem o enxoval pudera fazer!
Era visível o  seu  emagrecimento, culpa segundo ela, de suas atividades sociais; escondendo o real motivo.
 Em novembro através do Bull, ficara sabendo que Edward já estava com casa montada na Vila dos Ingleses do Gongo Soco e que a data combinada para às bênçãos matrimoniais, seria a mesma.
 Com a falta de contato e correspondência, Magdalena não ficara sabendo da morte de Anne Jeferre em 26 de Agosto, pessoa que  contaria como aliada e amiga na vila dos ingleses em Gongo Soco.
Morte prematura, pois contava apenas com 46 anos!
Muito nova para ser levada desta vida, ainda mais, distante dos seus na Inglaterra.
Com sua morte, o marido Jeferre ficara viúvo e o menino filho de Edward, órfão pela segunda vez.
John Hosken deveria estar num estado lastimável, ele adorava a mãe adotiva que cuidara dele, desde o primeiro dia de nascido.
 Magdalena apesar de não conhecer Anne, chorou profundamente a perda da pretensa sogra.
Anne Jeferre seria a sua  ancora quando fixasse residência na mina do Gongo.
Quanta coisa ruim não estava acontecendo!
Seria tudo aquilo um castigo de Deus à sua desobediência ao pai e aos preceitos doutrinários da religião?
Anne, que fizera o papel de mãe preparando o seu enxoval e montado a casa para Eduardo, tinha partido...
Magdalena tinha um profundo respeito e gratidão por aquela figura humana, que Deus levara...
Ela se sentia culpada e pagando caro por seus sentimentos egoístas.
Ultimamente rezava com toda a fé pedindo perdão a Deus, achando que contrariava com seu amor a um anglicano,  o que os padres condenavam.
Nesta hora de incertezas, levava às mãos ao camafeu com o retrato de Edward e dizia:
“ -Nós seremos felizes, Deus não pode estar contra quem ama...“
A situação piorou ao saber que o viúvo Jeferre tinha voltado para Inglaterra. um amigo a menos com que poderia contar quando fosse morar na mina dos ingleses.
Jeferre não suportando a viuvez, pediu demissão à Brasilian Mining Association.
Edward e o filho John passaram a revezar moradia entre a casa de hospedes do Gongo-Soco e a do Morro d’Água Quente.
A vida complicara para o solteirão inglês, tendo que olhar para o filho de 9 anos, apesar da ajuda de Genoveva.
A negra não tinha nenhuma autoridade sobre o menino e os estudos dele, começaram a ser afetados por suas viagens constantes.
Durante a noite, pensando na situação do filho órfão, sentia-se inteiramente culpado pela desdita do menino.
John perdera a mãe verdadeira, no dia que nascera como também o pai; agora pela segunda vez, perdia os pais adotivos que o criaram.
Órfão de pais por 2 vezes...
Quanto fora irresponsável convivendo maritalmente com Antônia e da união,  consequêntemente  gerarem o filho...
Longe de sua mente em rejeitar o menino, era a consciência pesada pela maneira como tinha que deixá-lo entregue aos cuidados de terceiros, uma negra como Genoveva, completamente ignorante.
John passara a ser um estorvo ao seu trabalho, pois a medida que crescia, não obedecia a  ama e o pai tinha que levá-lo para onde viajasse, entusiasmando-o pela companhia do pai.
O menino vestia-se da mesma maneira paterna, com as roupas de minerador, botas e capacete, percorrendo as regiões da serra do Caraça.
A cor morena queimada pelo Sol, dava ao rosto trigueiro, um aspecto sadio, fruto da vida de liberdade que passara a ter.
Por mais extensas que fossem as viagens, ele nunca reclamava, melhor seria agüentar as feridas causadas pelas montarias, que a prisão dentro de casa.
Viajando, ele conhecia novos lugares, novas pessoas e o pai instruindo-o sobre o que viam: Flora, fauna e principalmente pela geologia do solo.
Aprendera imitando o pai, a apanhar amostras de pedras e examiná-las, como se entendesse da constituição química e física da amostra.
Quando não recebia a atenção do pai,  recorria ao Zaga para saber de que natureza era o mineral em sua mão.
Rapazinho, cavalgando lado a lado sobre os animais, ninguém poderia desconfiar que ele fosse filho do estrangeiro.
Um de olhos verdes e cabelo cor de ouro, falando uma língua que poucos entendiam, o outro bem moreno de olhos castanhos, conversando na mesma língua estranha aos brasileiros.
Quando o mocinho perguntava o nome de uma árvore ou vegetal diferente, o pai passava a pergunta para o negro, conhecedor de toda a flora da região.
- Zaga, fala prá eu e o John o nome árvore ali, apontava em direção.
- Jacarandá, capitão!   Peça boa prá carapinteiro fazê mubia...
- Não carapinteiro Zaga, “maraceneiro...”

Algumas palavras ainda confundiam na pronuncia e na grafia exata ao minerador inglês.
Desviado da escola e ouvindo nomes errados, John mesmo assim ia ganhando a sabedoria do homem do campo, não obstante, o dialeto banto que mais ouvia.
Prestando atenção no que o pai  e Zaga falavam e faziam, ia cada vez mais ganhando experiência na área da mineração.
Escola diferente, pois não exigia tempo  integral assentado em bancos de salas de aulas, repetindo a mesma coisa que a mestra mandava.
Se na escola o que entrava por um ouvido e saia pelo outro, no campo o aprendizado ficava gravado na memória, sem nenhuma necessidade da cantilena repetitiva...
A sabedoria do pai e do Zaga eram diferentes, porém bem mais fáceis de serem guardadas, pois tudo era concreto aos olhos.
Aos sábados, quando os ingleses descansavam e ficavam em casa, o pai mandava o John escrever os nomes das coisas que vira durante a semana, ou mesmo discorrer sobre o que mais admirara.
Com o auxílio do dicionário que a mineradora presenteara a Edward, o filho desfazia as dúvidas e a grafia certa das palavras.
Tentando corrigir os exercícios do filho, Edward também se favorecia com o aprendizado da escrita portuguesa.
Bem mais cedo que esperava, Edward sentiu a melhora de comportamento do John, tanto no proceder, como no interesse pelas coisas que eram úteis; principalmente a escrita, que ele via a necessidade de aprender.
As andanças de Edward pelas faldas do Caraça chegaram ao conhecimento do capitão Thomé Campello.
O godeme como era conhecido pelo povo, andava prá todos os lados com um menino que diziam ser filho dele.
A boca pequena, falavam:
- Comé qui capitão vai dá a minina pr’ele, se o memo anda fazendo cria como touro nos pastos?
Era mió dexá a fia sortera como rês tresmaiada, qui  juntá  ela  cum touruno!
 Ai do  godeme se ficá pressiguindo a minina!
Agaranto qui capitão toma jeito...
- Como ele vai  separá a minina do godeme?
- Capitão manda ela se juntá ao tio Chico lá na Mata...
- Uai, Chico Campello partiu?
- Cum muié, fios e toda a escravatura!
- Gentes, e as terras do Retiro?
Capitão Tumé tá incumbido de vendê elas...
- Nossa! Catas Artas tá secando como brejo rasgado...
- Entonces sô Chico  aprumou memo?
- Com tudo que tinha; e agora quem vai criá nego prá roça  e minas?
- Ele memo uai, lá na Mata é mais fácil criá nego...
Tô sabendo que as terras do Abre Campo é uma imensidão e na beira do Rio São João do Matipó, dá espiga de mio, de dois e meio parmo...
- Hum! Uma andorinha nu faze Verão, mas  ancê vai vê a voação depois qui ele assentá por lá e começa a chamá a irmandade...


A famia do capitão é qui tá com razão, pois o ouro acabô, nego nu tem maise, prá lidá com enxada, tudo aqui tá  mingando... “

Com o tráfico negreiro impedido pela Inglaterra, a fonte do sô Chico e dona Bonifácia minguara, quem sabe eles conseguiriam domesticar índios para  que substituíssem os negros?
Muita gente em Catas Altas reclamava a falta de trabalho, daí a partida das famílias para outros lugares.
A partida do sô Chico e dona Bonifácia, era prenúncio de uma época que mudaria completamente o modo de vida,  não só dos habitantes da terra onde nasceram, mas também  dos brasileiros.
A falta deles era sentida em todo arraial, principalmente por dona Rita  Benedita nos domingos, quando recebia depois da missa, a visita de todos os familiares.
Por ser livre e sem compromissos com etiquetas sociais, algumas pessoas achavam-na mal educada, para não dizer bronca, o que não era certo, pois tinha conhecimentos admiráveis da flora medicinal.
Com as plantas, fazia porções milagrosas,  aprendidas com os índios que o marido preava nas terras de Peçanha.
Dos bugres, herdara cohecimentos da eficiência das plantas  curativas, nas diversas espécies oferecidas pela flora:
A quina, o boldo, capeba, carqueja, jenipapo, mamão, óleo de copaiba, poaia, poejo, romã, salsa, urucum e quantas outras que aprendera com os índios.

Os partos mais complicados de suas escravas era ela mesma que fazia à maneira índia, mergulhando a parturiente nos poços formados pela cachoeira de Santo Antônio.
Processo salutar e higiênico, tanto para a parturiente, como para o feto, ambos lavados pelas águas que corriam puras sobre as  pedras.
De cócoras sobre os rasos remansos, o menino vinha escorregando nas mãos da própria mãe; o choque térmico despertava a criança para o mundo de Sá Bonifácia.
Quando Chico Campello falou em partir, ela bateu o pé contra a mudança para a zona da divisa entre  Minas e o Espirito Santo.
Depois que o marido prometeu em encher de “Kiris“ a casa em Matipó, ela concordou em fazer a mudança.
Carinhosa no trato com as crianças, os meninos adoravam a velha, até naquela brincadeira de apontar para a genitália dos meninos e dizer:
- Pra que estas muxibas?
Vamos cortar e dar pros cachorros...
Os meninos levavam as mãos sobre os órgãos e saiam correndo para longe da velha.
Ao voltar da corrida espavorida, ela chamava o menino e retirava de um embornal dependurado da cozinha, uma fatia de rapadura e dizia:
- Meu bacurí, ninguém vai cortar suas pelancas!
Bacuri segundo o marido, na língua Tupi era “ Waku’ri “ que traduzido significava  Menino.
Martinho Martins Lourenço foi um dos que mais sentiu a partida do casal, pois eram eles ótimos fregueses do seu armazém, além de amigos.
Bonifácia sabia do apreço do português  pelas mulatas e mangava com ele oferecendo crias mocinhas em troca dos artigos mostrados no seu estabelecimento.
- Ah Sá Bonifácia, não me comprometa com Donana!
A senhora sabe da brabeza dela e do ciúme que ela tem quando elogio uma mulher...
Rindo, vendo o português vermelho, acrescentava com as suas provocações:
- Ora sô Martinho, qual português rejeita tão bom negócio?
- Eu, Sá Bonifácia!
Perco boas compras em troca de assossego...
Suas crias são famosas e deveras mui lindas, porém indigestas para este velho e humilde lusitano...
Bonifácia merecia uma atenção especial, pois era uma das maiores compradoras do armazém, atendida geralmente pelo próprio dono.
Terminada as compras, quando ia saindo, o português  gritava do andar térreo onde localizava a venda no sobrado:
- Dunana, ou Dunana!
Temos em riba café prá Sá Bonifácia?
- O que queres homem?
- Pergunto se temos café prá Sá Bonifácia?
- É claro filho de Deus!
Que seja bem vinda ao nosso humilde lar...
Era praxe Donana perguntar o que seu marido queria, pois  prestando atenção na fala da  resposta,  sabia  se ele desejava mesmo  fazer agrado ao freguês...
Quando sô Martinho perguntava: “Temos ou não temos; ela teria que responder, não. “
Ao contrário, quando dizia:  “ Temos café ai em riba, ela deveria responder,  sim “
Alguns mais íntimos do casal sabiam daquela artimanha do português para adoçar a boca da freguesia, e as vezes brincando, eles é que gritavam lá de baixo para Donana.
- Oi Dunana, temos café com quebra-quebra aí em riba?
Sorrindo a comadre esperava no nível do piso do assoalho, a subida dos amigos.
O português era cheio de truques, como ensinava a velha escola comercial da santa terrinha.
Sá Bonifácia, convidada para passar uma tarde com Donana, ficou implicada com a quantidade de calçados espalhados pela casa e  propriedade.
Primeiro achou que era desmazelo, depois vendo que sempre ficavam nos mesmos lugares atrás das portas,  perguntou se aquilo era  simpatia.
- Simpatia nada,  Bonifácia!
É mania de gente velha, trocando calçados para cada lugar onde pisa...
- Como assim,  comadre?
- Martinho quando levanta, põe um chinelo, depois na porta da cozinha coloca um tamanco para ir regar as verduras.
Volta do quintal e calça uma botina se vai a missa, se vai sair a cavalo põe a bota de cano alto.
Volta dos passeios e veste uma cômoda alpercata para atender em pé a sua freguesia.
Ao fechar o comércio, calça uma sandália para dar ar aos pés, o devido descanso por um dia ereto junto do balcão.
- Meu Deus, que desperdício de dinheiro!
- Ele diz que está fazendo economia...
- Como fazendo economia se usa tantos diferentes calçados?
- Mas realmente faz, pois  durante todo o resto da sua  vida, nunca mais trocou os que estão aí...
Mania higiênica Donana!
Com tanta troca, não esquenta os pés provocando o calor do chulé e nem chega a gastar os calçados!
Aquela conversa sobre intimidades dos casais, levou Donana a perguntar a razão por que Bonifácia não estava indo à missa celebrada pelo padre Francisco.
O vigário Donana, proibiu o Chico de comungar enquanto preasse índio, o que ele não concorda, pois vive de suas crias e  vendas.
Dai nosso sumiço das missas do padre Xavier.
Mas, e quando vocês estão em pecado?
Quando podemos, vamos ao Caraça ou a igreja de Santo Amaro em Brumado, lá ninguém faz restrições ao nosso modo de vida...
Se encontro com sô vigário,  é uma vexação, pois não guardo mal querença com ele, mas fica o constrangimento.
O pior é quando eu e o Chico estamos juntos e damos de cara com ele; ambos se cumprimentam, mas não mantém sustentação de conversa, ai, sou obrigada a fazer que os dois se assuntem...
- Estamos sabendo que vocês estão querendo mudar de Catas Altas, é verdade?
- Verdade, verdadeira, Donana!
- Então tá na hora de acabar com a morrinha com sô vigário...
- Até que tenho tentado Donana.
A querela vexa toda a família e não sabemos por que os dois ficaram tão turros!
Corre a boca pequena que a indiferença é pelas vendas de bugres, imagina se padre vai se preocupar com alma de pagão?
Se vendemos vaca, burro e porco, por que não vender o bicho do mato, que é tudo a mesma coisa!
Com a proibição do tráfico de escravos, onde Chico ia arranjar braços para as minas?
Padre Francisco até que deveria ficar contente, pois o Chico tornou-se verdadeiro missionário, pegando pagãos entre o gentio e transformando-os em cristãos...
Pensando bem, se não há mais negros, há índios que necessitam da caridade dos cristãos!
Coitadinho deles, no mato sem roupas comidas e teto!
Como as duas fontes de renda do Chico estavam secando, inteligente como era, viu que teria que aumentar a prole escrava que ainda lhe restava.
Consultou entendidos: A mulher e até uma negra de confiança...
O melhor conselho surgiu da negra Feliciana que estava encostada para o trabalho.

- Negro Nhô Chico,  quando bebe brucutaia cum mindoim paçocado, vira capeta e cresce o chifre entre os cambitos; é disso qui muié moça gosta.
- Onde vou arranjar brucutaia?
- Ancê nu sabe, Nhô?
No alambique, a primeira distilada com cheirinho  de cana!
Ancê memo tem aqui e das boas!
- Mas só isto, Feliciana?
- Ou Nhô, pra mexê com o chifrudo, bota catuaba nela e ancê vai vê qui porrete!
Com a senzala mais alegre, os negros atribuíam a bondade de  Nhô Chico ao coração envelhecido; amaciado pelos anos...
A cachaça excitava os ânimos e o complemento afrodisíaco, multiplicava os resultados.
O mel de cana como Bonifácia dera nome, sortira efeito desejado.
Menos de 1 ano após o santo remédio, 20 negras estavam embuchadas, andando pela fazenda de pernas abertas de tanto peso.
Foi um amojamento geral.
Chico andava eufórico, passando receita para quem constatava a eficiência em sua senzala.
O que ele fingia ignorar, era a promiscuidade campeando sob  efeito do Mel de Cana.
Tios e sobrinhas,  irmãs com irmãos que deitavam numa mesma tarimba, seviciando menores, como se natural fosse o acasalamento.
A cada escrava que paria, Sá Bonifácia premiava com veste nova e um mês depois, aconselhava as escravas  ir trocando o seu leite materno, por leite de vaca.
Quando acontecia uma diarréia, provocada pela desmama,  a criancinha era colocada no peito de outra escrava, para que cessasse a caganeira, ou na falta de uma ama de leite, chá de  folha ou casca  de araçá, medicamento adstringente para fechar a saída.
Meninas de 13 e 14 anos, carregavam recurvas seus bacuris a moda indígena, dependurados nas costas.
Fazia dó,  ver as carinhas ainda frescas, criando filhos para Nhô Chico...
Um doutor visitando sua fazenda, perguntara a razão de desmamarem os bebês tão cedo.
- Ah doutor,  então o senhor não sabe que o aleitamento é vacina contra a parição!
Muié que amamenta não prenha; e nós não estamos aqui pra embelezá cativas e crias...
As negras quanto mais crias tiverem, mais preciosas elas se tornam...
Os falsos conceitos como lidar com as escravas, limitava os anos de vida fértil delas, mas ainda não havia estatísticas para comprovar os fatos...
No  último ano ainda morando em Catas Altas,  Chico queixava-se na porta da igreja de Nossa Senhora da Conceição:
- Eta ano ruim!
Até na parição da senzala a safra caiu e morreu 2 peças!
- Só 2, compadre Chico?
- Você queria mais, desalmado?
Ele explicava que as mães eram novas demais e acabavam rebentando-se...
- Sá Domenia está perdendo a pratica, Chico?
Ela fez tudo que sabia, mandou soprar bexigas, vestir camisa do pai pelo avesso, besuntou de azeite, deu rapé pras negras cheirar e enxugava o suor com água fria de botão de rosa.
Tudo inútil, não teve jeito, 4 peças em 2 barrigadas!
Prejuízo e tanto!
Alguém maldosamente da roda argumentou:
- Vai ver que Sá Domênia não vestiu nas meninas a camisa certa!
Todos sabem que na Cachoeira, a camisa certa é a do Baptista e ela dá para vestir 2 negras de uma só vez...
- Como vocês falam besteira, meu Deus!
Negro não veste camisa, eles  não suportam agasalhos...

 - São as minhas camisas que Sá Domênia manda buscar...

Uma risada geral no adro da igreja, perturbando o padre na sua prática.
No retiro da Cachoeira dos Barbosas, quando surgiam visitas, os proprietários faziam de tudo para contentá-las.
Uma das coisas prediletas de Sá Bonifácia era mostrar sua riqueza.
Mandava juntar as negras prenhas na frente da varanda, tal como fazia o marido mostrando suas vacas mojadas; aquilo para alguns mais íntimos, era uma maneira de insultar o Chico,  pois as prenhas mais novas,  geralmente  carregavam no bucho, o sangue dos Campellos.
Chico quando ia prear índios, ou comprava escravos, era ele que escolhia o que levaria para Catas Altas.
Economicamente dava preferência para as mulheres  embarrigadas, pois fazia negócio prevendo o dia de amanhã.
Ao bater os olhos no rebanho, fazia questão de escolher em pé, andando em volta delas, mirando o rosto,  seios e bundas.
As que não miravam em seus olhos e as de bunda murcha,  ele separava de um lado como refugo e as encaradeiras, se juntavam as bamboleantes.
Era um gosto ver o homem com os olhos fixos, sem piscar, analisando as negras para Sá Bonifácia...
Sua experiência e seu olho clínico era infalível e a esposa só tinha elogios pelas  escolhas acertadas.
Olhos benditos!
Nove meses depois, duplicava o rebanho e estranhamente, até mulatinhos de olhos claros nasciam na senzala.
O Chico comentava sorridente:
- Veja Bonifácia, a sorte que você teve?
Escolhi e paguei sem saber que estavam prenhas!
As curumins chegavam desbarrigadas e caras de meninas, 9 meses depois estavam no mojo...
Como proprietário, era seu atributo conhecer primeiro  o seu rebanho...
Com que prazer ele via as meninas compradas, dobrando de peso e volume na primazia de seus ofícios, Prenhar...
Após o primeiro parto, a negra ou a mulata, tinha o direito de escolher o seu macho, podendo ficar entre o Baptista ou outro negro com quem enrabicharia de vez...
O importante para os proprietários, era aos 11 ou l2 meses depois, estarem novamente embarrigadas.
A safra não pode ser menor do que a do ano anterior, nunca minguar, dizia Bonifácia.
Sá Domenia multiplicava-se como parteira, ( aparadeira ) como designavam as parteiras que serviam o Retiro.
Ela exigia o quarto fechado, apenas iluminado pela lamparina  de um combustível mal cheiroso,  enchendo o ambiente de fumaça.
Com frio ou calor, a parturiente fazia a delivrança envolta em cobertas.
Um pouco de azeite para untar a intimidade,  a cebola e alho sobre o ventre, ajudaria no milagre da vida...
Recitando orações escritas por dona Bonifácia, a negra parturiente acabava por engolir o papelucho, para maior efeito quando a coisa emperrava...
Se a futura mãe não respondesse aos apelos da magia, uma porção de pólvora via oral, resolveria “explosivamente “o parto.
Por sorte, dona Domenia não falhava.
Para secar o umbigo dias após, o rapé e a folha de bonina embebida no azeite de mamona, ou a pasta de assa-peixe.
Muitas das indiazinhas e as negrinhas que foram levadas para Sá Bonifácia,  experimentaram o seu primeiro homem nas viagens do Mato Dentro para Catas Altas.
Inocentes,  saiam das senzalas ou das Matas de Peçanha, para os braços de seus compradores.
Sob a luz da lua ou das estrelas, eram violadas, conhecendo o amor sem amor.
Sinhozinho que dera vestes novas e fora tão bonzinho, transformava-se em algoz, sem que elas soubessem por que fazia aquilo com ela...
Naquela viagem que nunca chegava ao fim, vinha a tristeza por achar que assim seria os seus dias futuros: Andar, dormir, andar, dormir, sem nunca chegar...
Andavam durante o dia, com Sol ou com chuva, à noite se não as molestassem; dormiriam o sono pesado de quem a pé cortava estradas e vaus de rios...
Uma nova vida nascia para ela e dela...
Até quando, seria  realmente dela a cria que cresceria em seu ventre?

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 Era habito do Dr. Moreira levantar cedo;  tomava seu café da manhã juntamente com a esposa Maria Brasilina, mulher de ilustre descendência Alkimin; ambos saiam ao alvorecer, ela tomando rumo da igreja matriz ao lado da sua casa, ele saindo para atender os pacientes em observação.
A exceção da quinta-feira, que atendia o colégio do Caraça, os demais da semana, rodava pela periferia de Catas Altas.
Acabava o desjejum e já encontrava as montarias arriadas  e seu escravo Lourenço, a espera no pátio.
O preto sabia de todos os hábitos do médico, antecipando os seus desejos.
Dr. Moreira confiava ao negro a colheita de ervas medicinais que ele conhecia e apanhava para que o médico fizesse as infusões.
Todos os clientes do facultativo tinham a boa vontade de indicarem os lugares onde poderiam ser encontradas as raízes e plantas que Lourenço colhia.
Sempre que podia, voltava para o almoço em sua própria casa e se não voltasse a sair, mandava desarrear a besta e soltava-a no grande quintal.
Tratada numa baia, o capim de reforço vinha da fazenda do Engenho da Onça, que misturado a cana, dava a besta um pelo viçoso e brilhante.
Ao voltar das visitas aos pacientes, a primeira coisa que fazia era lavar as mãos com a água  que Rosa depositava nos  recipientes  de louças inglesas.
A escrava nunca deixava o jarro sem água; qualquer que  fosse a hora mais adiantada da noite; a negra ficava a espera da volta do sinhô doutô para virar a água...
Dona Brasilina quando o via de cenhos retraídos e a testa enrugada,  perguntava:
- O que te aflige Manoel?
- Nada de importância...
Coisas de médico de família, querendo intrometer-se na vida de seus clientes, tal como os  Anjos da Guarda.
Imagine Brasilina, eu vestido de saia e asas!
- Anjo São Manoel, até que o nome assenta, querido!
- Mas com quem você está a preocupar?
- Com o Thomé Campello, abatido e preocupado.
- Filho demais, Manoel!
- Não, sua preocupação era outra, zelo de pai voltado para a filha Maria Magdalena.
Você acredita que até hoje ele não deu resposta de seu consentimento de namoro para o inglês?
Certo ou não, ele se sente numa enroscada, pois, o namorado da filha além de ateu, tem um filho natural, o que quer dizer, talvez tenha também uma amante...
- Ah Manoel!
Que homem em Catas Altas não tem seus pecados de luxuria?
- Ou Brasilina, você tem coragem de jogar isto em minha cara?
Não sou santo como deveria ser todos os homens,  mas fidelidade!
- Eu sei Manoel, falo dos homens em geral, não de você em particular...
- Aí do médico que for infiel a esposa!
Você imagina, a repercussão negativa  que teria  com a sua clientela?
 Dos forasteiros, ninguém conhece o passado, talvez por isto o Guarda Mor não quis ainda dar a resposta ao inglês.
- O Guarda-Mor Thomé não tem razões, a não ser religiosas para se opor ao casamento; com tantos filhos naturais, ele não é exemplo para censurar o namorado da filha pela cria  espúria que tem...
- Deve ser implicância do Thomé, pois já ouvi referências elogiosas ao inglês, que além de trabalhador, tem ótima posição na companhia mineradora.
- O que faz o tal namorado de Magdalena na Mina?
- Ajuda na administração e é responsável direto pelos homens que trabalham dentro da mina.
Deve ser um homem de coragem e responsabilidade, pois tem carta de Cabo de Mina.
Tenho pena da Maria Magdalena se vier a casar com o inglês!
- Por que?
- Os riscos que ele corre mexendo com dinamite!
- Mas todos os homens correm riscos em suas profissões,  Manoel!
Veja o seu caso, percorrendo por este mundo ai fora;  de noite ou de dia, com Sol ou com chuva, frio ou calor, você também não está  se arriscando?
- A vida é assim querida!
Eu padecendo pela inclemência do tempo e as aperturas de médico, você sofrendo por achar que sofro...
Mulher de médico tem que ser santa, Brasilina!
Foi por isto que me casei com você...
- Só por ser santa?
- Lógico que não, eu me enrasquei também na doçura deste fruto.
São mais preciosos do que todo o ouro encontrado nesta Catas Altas.
O metal um dia acabará, pois não dá duas safras; já a videira se cuidada, vicejará a vida inteira...
- O que adoçou a sua boca hoje, Manoel?
- O prazer de servir, sabendo que tem tanta gente necessitando de mim e de ser servido, pois tenho você, querida!
Feliz sou eu, que posso conciliar o meu trabalho com o bem estar dos outros...
- E quem está precisando de você, hoje?
Donana Martins, ontem já sentia as dores de parto, o português me pediu para examiná-la...
Mas isto é trabalho de parteira, não de médico!
A parteira bem que estava tentando, mas o traquina resolveu bater o pé e não quer botar a cara para fora.
- Só pode ser por medo de Sá Domenia.
Vai ver que o menino tem razão, a primeira coisa ao abrir os olhos é a cara da Domenia!
- Como você sabe que é menino homem?
- A demora, o ventre, tudo me faz crer que é um macho, além dos outros que nasceram nesta semana.
Rosa que ouvira a conversa, comentou com Anastácia:
“Os home antigamente sabia fazê as coisas;  ora meino macho, ora fêmea, perece qui hoje eles isqueceram como suprar! “
- Discunjuro Anastácia, chega de nêgo pru garimpo, prá qui botá sofredô no mundo?
- Nóis percisa é de muié prá ajudá agente, muita muié...
Assim nóis pode dividir a zafaneira...
Ancê vê! Comida dia inteiro, doce na taxa prá fazê, vazias prá lavá, casa prá arrumá.
Quedê tempo prá nóis zuerá?
Anastácia  rebolando as ancas largas de negra saudável e parideira, saiu para a bica do quintal, arrastando 3 negrinhos; nascidos cada um nos quatros últimos anos.
- Lá vai a pata choca,  com  os  patinhos atrás!
Eta nega fia da puta, prá pari!
Inté qui perece coeio!
Uma pilha de gamelas e panelas de ferro, estavam na bica esperando mãos para lavá-las.

- Oh mundo marvado!
     qui só dá trabaio,
     de dia, carrega balaio,
     de noite, no pau arrochado.”

Começando a arear as panelas, a negra de vez em quando gritava:
- Oh peste!
Ocê que matá, eu?

As crias soltas no imenso quintal, não ouviam a mãe aos berros e  Rosa  rindo dos problemas que os filhos de Anastácia aprontavam.
À tarde, a chuva que caia mansa, prolongaria por mais alguns dias, no quarto dia, o Sol surgiu fulgurante enxugando o barro.
As pessoas pareciam outras.
No gramado do adro, roupas estendidas quaravam sob os raios do Sol surpreendente.
Negras com gamelas e balaios transitavam pela grama, estendendo ou apanhando-as .
Quem passasse o olhar sobre aquele imenso tapete colorido de  peças, notaria a qualidade delas, tanto as de linho e seda, como as de algodão pelo chão.
Meninos desocupados saltavam sobre elas, escolhendo a grama para ser pisada, num brinquedo de amarelinha.
Anastácia chamada para dar jeito nos meninos,  gritava:
- Cupinheiras do inferno!
Pro mode que ancês nu vai pulá,  na puta qui pariu ancês?
Capetas, do inferno!
Se ancês nu iscuita eu, vai iscuitá é o zumbido  desta vara...
O que os meninos brincando não faziam, ela correndo atrás deles  pisava  nas roupas que quaravam...
Cocinha, mucama do Cel. Emery ajudava Anastácia a por os meninos a correr.
- Tá veno,  Cocinha!
Três diabos a me atenazar o dia inteiro...
A negra esquecia que na hora de fazê-los,  nada melhor do que o gosto  daquele prazer...
Cocinha ria, pois sentia no próprio ego, quanto era bom fazer um capetinha daqueles por baixo  de Nhô...
Posto os meninos a correr, ofegante Cocinha perguntou:
- Ou Nhana!  E a menina do Guarda-Mor,  casa ou não casa com o Godeme?
- Coroné nu qué, maise a minina bate o pé!
Vamo vê nu qui vai dá...
Tadinha,  ela lacrimina o dia intero!
Nóis nu sabe quem moia maise, se os lenços de Nhá ou a chuva qui cai!
Minína bonita, igarsinha a Nossa Sinhora Ceição...
- Nossa Sinhora vai ajudá ela, pois ela carece e merece.
- Você imagina!
Minina de prendas; rica, fromosa, presa nas rédias e freios na mão do Coroné!
- Isto é vida?
- Cocinha , e nóis também nu tamo carecendo?
- Se tamo? Agente nu pode nem oia prás ciroulas dos Nhôs!
Eu sinto um isquentamento e uma tribulança na muçumba que vai até taio do rabo!
Ou calô mardito, ou merda de farta de nêgo danada!
Pade Xavié inda fala na “absnência“ de carne...
- Oxem! Sô vigaio fala isto é  pro mode qui nunca porvô!
- Num fala assim, Cocinha!
Ocê tá perjurando o santo nome  dele...
- Maise é assim memo, Nhana! Quem porva nu isquece maise...
Ai de mim se nu tomo todo dia o chá de maracujá!
- Prá qui qui serve, muié?
- Prá fazê agente drumi em paz,  assim nóis no  caí de vez no fogo do desejo!
- Disgracera de sumana sem fim!
Farta d’home nêga, é pior que sede de tropero correndo atrás de burro  desembestado na serra!
Ah! Qui sudade do Lurenço!
Nêgo bão de fornicação, boca fechada de mudinho, mas de mão atrevida fazendo maise qui a boca dele!
Treis trevessas de lua longe dele e do seu  rapé!
            Trem bão talí, basta chegá perto da boceta dele prá gente começa a ispirrá...
Esturrinho mió, nem na Bahia!
As fuças da gente limpa como rio, adepois do pé d’agua!
É pro isto qui Lurenço nu larga o pó, perece qui o demo botô Mama-cadela com pondo dentro da boceta.
Basta uma fungada prá agente começa a viaja num sonho estertorado e vadio de desejo.
Longe do Lurenço quando cheiro o seu pó, é memo como se ele tivesse junto d’eu; é pro mode disto que ele dexô com eu  um tiquitinho de sua lembrança...
Com Lourenço na cabeça, ela versou:

“Oh! escravo marvado,
Oh! mundão sem fim’
Onde tá infiado,
meu dengo, pichuim; 

                             Com pade foi batizado,
           na capela do Bonfim
           e na senzala arclamado,
           sem asas, querubim.

Oh!  nêgo desabusado 
 de verga sem fim;
vorta pro seu bom-bocado,
gosto torrado d’amendoim.
    
           De Catas Artas foi levado,
           bem pra longe de mim;
           hoje lá no subrado,
           Sudade, só sudade ruim...

No solar do Dr. Moreira, uma negra gritava:
- Anastácia! Ou Anastácia!
Quede ocê,  criatura?
Respondendo em voz baixa:
- Tô aqui!
 Eta gente bruaca, eta calandu dos diabos!
Apanhando as roupas que quaravam no gramado da praça, hábito cultural herdado dos portugueses, que eles chamavam, "assoalhar"  encheu um balaio de peças e teria que voltar  tantas vezes, quantas fossem necessárias para levar o restante.
Novamente lá de dentro, novo chamado:
- Anastácia, ou Anastácia!
- Já falei:  Tô indo!
Fala prá Sinhá qui tô juntando os trapo dela no assoalho.
- Nega burra!
Vê como ancê chama isto de trapo, quase nas fuças dela!
Cantarolando, ainda no caminho, deu para ouvir os últimos versos:

Sudade, só sudade ruim,
gosto torrado d’amendoim...

Com o tempo firme, a semana parecia correr mais rápida com a agitação de tropas na Vila e os cincerros ruidosos querendo desafiar os sinos da matriz...
Fazia falta aquela sonoridade dos cincerros:

Pling, plong, pling, plong...

Até os chingos dos tropeiros, eram bem vindos com a estiagem da chuva...
Catas Altas engalanava-se com o Sol brilhando sobre a Serra.
Ao contrário de muitos lugares, o arraial tornava-se mais agitado nos domingos.
Os fazendeiros e retireiros vinham assistir a missa dominical, cumprindo o preceito religioso.
A praça enchia-se de gente; charretes, cavalos e até carros de bois, esperando o final da missa.
Os relinchos dos animais e os cascos escavando o chão, dava ao cenário uma beleza ingênua, somente vista no interior das  terras de Minas.
Pitando um cigarrinho de palha, alguns poucos infiéis aguardavam de cócoras  o término da missa.  
O Sol quase a pino mostrava as sombras esgueiradas dos telhados, onde os animais procuravam se esconder.
Na casa do Guarda-Mor, os cômodos voltados para a Serra,  estavam sombreados e a claridade infiltrava sem vida pelas frestas das janelas; a madeira ressequida pela exposição ao tempo, já não tinha as cores da última  pintura.
Algumas tábuas das esquadrias macho e fêmea, não mais se encaixavam deixando passar pelas frestas, os raios do sol.
Naquela ala, estava o quarto de Magdalena, dando a janela para o braço avançado do quintal que vinha até a praça.
Da sua cama, via a serra e especialmente a passarada sobre os galhos das árvores do quintal.
 Magdalena acordara nesta manhã de domingo, escutando um zum, zum, zun ao lado da sua janela.
Espreguiçando indolente, ainda de olhos fechados, ouviu Miúda conversando com alguém do lado de fora.
- “Então sô Dú chegô de minhã!“
Qui bão pra sinhazinha, ou dia fromoso!
- Ancê tá certa, é ele memo, eu vi com estes zoios , Zaga tocando os burros com baú nos lombos...
Levantando da cama, esperta, saiu Magdalena correndo para a escada que ligava os dois andares do sobrado.
- Sinhazinha, ancê discarça, tá doida minína!
Vai apanhá constipação!
A beleza física da mocinha, transverberava através da luz que mostrava a roupa íntima.
Como se fosse uma criancinha, Zefa reclamava:
- Num bota o pé nu chão, Sinhazinha!
Eu carrego ancê, fiinha!
- E verdade, Zefa!
Eduardo, chegou?
- Sô Du nu sei, mas o malungo qui anda qu’ele, tá aí...
Se o Zaga está aqui, Eduardo também está...
- Ora Nhá! Onde tá a corda, por trás vem a cacimba...
O coração de Magdalena disparou e Zefa abraçada ao seu corpo, sentia o pulsar disparado.
Há quanto tempo eles  não se encontravam!
- Fiinha, seu coração vai sartar!
Não podendo abraçar fisicamente a quem desejava, apertou seus seios contra os de Zéfa e disse:
Como é bom Zéfa, como é bom esperar a quem se ama!
Permanecendo por algum tempo caladas, ambas sentiam o pulsar da felicidade; uma pelo fogo ardendo dentro do coração apaixonado, a outra pelo desvelo de ama.
Zéfa que vira Magdalena nascer e crescer, tinha os olhos molhados e a voz engasgada:
Fi-fi-inha! Nu güento tanta sastifação...
Levada pela cativa caminharam até ao toucador.
- Nhá, como tô filiz, ancê é um anjo do céu!
Esta nêga tá orguiosa de tê  criado ancê!
Dengosa e sorrindo nos braços de Zéfa, os cabelos soltos pendiam para o chão em  cascata; como se fosse uma criança, a ama carregava-a e ela distante  se sentindo em seus pensamentos  nos braços de Eduardo...
- Nunca fartará forças prá carregá ocê, fiinha!
Zéfa penteava seus cabelos e ela parecia estar levitando, nem ouvira o que a ama falara.
Colocando-a sobre a cama, suas pernas dobradas deixava ver o que Zéfa só vira quando criança.
Abaixou a camisola e  compondo o seu  corpo  disse:
- Drome Nhá, vou acorda ancê, antes da missa...
Um perfume suave de flor de laranjeira estava impregnado a roupa de cama.
Magdalena ouvia em sussurro Zéfa cantando:        

               - Minina, minha minina,    
                  que tanta gracinha tem,
                  drome, pois quem te nina,
                  é gente que te qué  bem...

Os olhos estavam se fechando e o sono veio fácil, confirmado por um suspiro mais profundo...
Ela ainda ouvia uma voz distante dizendo:
                   
             - E’ gente que te qué  bem...

Zéfa notou que os lábios dela  se abriam num sorriso de anjo; com quem sonhava Magdalena?

A primeira missa dominical já havia terminado, poucos arredavam os pés do adro, movimentando-se para os cumprimentos aos amigos e parentes.
Os sinos badalavam anunciando a segunda missa e na praça chegavam  os retireiros e fazendeiros que moravam fora.
Confraternização semanal tão bucólica, que as vezes inspirava o sermão do padre Francisco Xavier de França, o padre da família como todos o consideravam.
Dispersos os fiéis, as casas  começavam a se encher de parentes e as vendas tomadas por gente falante, querendo aproveitar a vinda na rua, para abastecerem-se do que faltava nas casas do campo.
Entre as escolhas das peças de panos sobre o balcão do armarinho, enquanto a esposa optava por sua preferência, o marido na parte dos secos e molhados conversava numa rodinha, bebendo a melhor caninha da venda, escondida na parte interna.
Aquela era especial, servida aos melhores fregueses,  por isto não ficava à vista nas prateleiras.
No domingo,  a féria do comércio multiplicava, e era paga quase toda à vista...
As primeiras badaladas anunciando a segunda missa, lembrou à Zéfa que era hora de acordar Magdalena.
Carregando nos braços o jarro de louça inglesa. cheio de água, Miúda chamou do lado de fora do quarto:
- Nhá, ou Nhá, alevanta!
Tá aqui a água prá ancê lavá.
Abrindo a porta, Zéfa que fora acordar a menina, perguntou:
- Tá morna, Miúda?
- Perece que tá, Zéfa!
Com o jarro sobre o toalete, Zéfa derramava a água sobre as mãos abertas de Magdalena, que ainda mantinha os olhos semicerrados.
- Acorda, minina!
A roupa tá aí passada, Nhá!
Ela espreguiçava indolente, Zéfa fez a  Magdalena uma observação:
- Socê demorá muito, nu vai vê o Godeme antes da missa...
- Ah! Meu Deus esqueci dele...
Vestindo uma toalete toda branca, confeccionada em Vila Rica, o modelo em linhas helênicas, realçava a cintura alta e bem formada.
Combinando com o vestido, os sapatos de lacinho e meias brancas complementavam a toalete que Magdalena vestia pela primeira vez na sua terra.
- Ocê tá uma fromusura, Nhá!
O Godeme vai babá vendo ancê assim.
- Fala baixo e deixa de conversa, Miúda!
  Alisa por trás o vestido sem deixar rugas...
Duas mãos leves desciam por trás alisando o vestido.
- Tá como ancê gosta, Nhá!
- Coroné Thomé e sua mãe, saíram a cavalo de minhã.
- Para onde eles foram?
- Só pode ser prá Cachoeira, pois seguiram prá rua dereita...
O perfume que passara, enchia de fragrância o quarto.
- Ancê tá igarsinha a Nossinhora!
- Não diga blasfêmia, Miúda!
- Gentes, pois nu é vredade?
- Você é cega ou boba, Miúda?
- Nem cega, nem boba, Nha; pois oio com os dois oios que Deus me deu...
As mulheres judias Miúda, usavam túnicas e mantos e não vestidos; Nossa Senhora era pura e eu, a mais pecadora das mulheres.
- Ancê pecadora, Nha?
- Qui pecado ancê carrega?
- Ancê é branca e pura dá cor das continhas do mar...
- Não se diz continha do mar, mas pérola....
- Minha boca nu sabe falá, pe-ro-la-la...
- Pois tenta falar certo, do contrário não vou levá-la quando casar...
Imagine você ensinando ao  Eduardo a falar o português errado!
- Gentes, o godeme fala errado?
- Não, Miúda, ele fala outra lingua e está aprendendo a falar a nossa, tal qual seus avós quando chegaram ao Brasil.
- Uai, de onde meus pais  véios vieram?
- Da África, Miúda, do outro lado do mar.
- Qui mar, Nhá?
- Ah! deixa pra lá...
Ou Nhá, ocê ainda nu tomô o desijum, comé qui vai fazê prá nu sujá o vistido?
- Qui linda qui ocê tá!
Após o dejejum, Magdalena por diversas vezes voltou ao quarto para mirar-se no espelho grande do toalete; cada vez que olhava, refazia a maquiagem.
Se a mãe estivesse em casa, certamente que perguntaria:
- Prá que tanto capricho, menina?
Só as mucamas sabiam que por trás de todo aquele capricho, estava a presença do inglês no arraial.
Dona Rita e capitão Thomé, juntamente com os filhos: Francisco e Maria Raymunda,  foram visitar os tios na fazenda da Cachoeira.
Bonifácia fazia aniversário naquele dia, talvez um dos últimos que passaria em Catas Altas, pois ultimamente, vinham falando que iriam mudar para a mata fechada...
Zéfa contara que Manuela a namorada do Francisco, também fora com  ele comemorar a festa; numa roupa parecendo de homem e montada de pernas abertas sobre o cavalo.
- Montaria de amazonas Zéfa, mais própria para as mulheres!
- Ou Nhá, eu achei tão isquisita perecendo home!
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Na véspera, uma comitiva de ingleses do Gongo Soco, chegara ao arraial  e estava hospedada no hotel do John Bull.
Através de Maria Raymunda, Magdalena recebera recado que Eduardo chegara e marcava um passeio para encontrarem-se na baixada do Maquiné, aproveitando a folga do domingo.
Descanso  do trabalho para os católicos brasileiros, pois os ingleses folgavam no sábado como era de hábito na Inglaterra e no Gongo Soco.
Como companheiros do pic-nic, foram os irmãos: Bizita, Fernando e Maria Raymunda.
No adro da igreja do Rosário, estavam os ingleses companheiros de Eduardo: O Bull, Emery e Henewood.
Bizita beliscou o braço de Magdalena e disse:
- Olha mana!
Os ingleses com Eduardo!
Aqueles rapazes brancos, mas queimados pelo Sol, pareciam pimentões maduros sob os capacetes  de campanha.
- Magdalena, Magdalena!
Eduardo  chamava o seu nome para apresentá-la aos seus patrícios.
Um tanto sem jeito, as meninas estavam sendo apresentadas pelo Bull e Magdalena sentiu-se frustada, pois queria um encontro mais solitário com  Edward...
Sua vontade era estar mais junto dele, sem desvios de sua atenção para com os outros que faziam companhia.
Ele afastou-se dos demais e pegando em  sua mão  disse baixinho:
- “My darling, my darling!
As palavras dele suavam ternas  e os olhos faiscavam de desejos e ela ouviu depois:
- “ I  love you...
Are you coming with me? 
Era mais do que lógico que ela queria ir com ele...
Fosse para onde fosse, ela era dele e podia levá-la para onde quisesse...
- “ Are you sure going that way?
Ela tinha plena certeza, queria seguí-lo fosse qual fosse os caminhos...
Arrastando-a pelas mãos, ela seguia como podia saltando de sandália e ele com suas botas pesadas pulando sobre as pedras.
O cascalho rolado, às vezes machucava seus pés delicados, porém ela estava anestesiada com o contato das mãos dele e seguia sem reclamar das fincadas nos pés, provocadas pelo leito pedregoso do riacho...
Encobertos pela vegetação ribeirinha, os dois se afastaram dos demais para unirem-se num beijo que traduzia toda saudade e desejo de ambos...
Ela sentia seu coração disparar em contato com o corpo másculo do homem que amava, ele também tremia ...
Um só corpo ocupava o mesmo espaço, mas os corações batiam acelerados mostrando que eram dois e não um...
Antes de se juntarem novamente aos demais, ele disse para Magdalena:
- Molha sua mão e passa sobre os lábios!
Ele também apanhando com a palma da mão a água corrente do riacho, tentava desfazer as marcas daquele beijo...
Rubra, olhos brilhando e com o cabelo um tanto desalinhado, alisava o vestido amarfanhado, compondo-se para voltar junto do grupo.
A água desfizera as marcas do rosto, mas não recompôs o desalinho do cabelo.
Com as vozes aproximando-se, ela largou a mão de Eduardo e lentamente seguiram na caminhada que empreendiam.
Os companheiros passaram a frente e eles um pouco distantes, voltaram a dar as mãos sem dizerem uma palavra.
O calor que transmitiam um ao outro, bastava naquele contato de mãos presas.
Seu pulso está acelerado, Eduardo!
- “Don’t worry... “

Magdalena tinha por que se preocupar, ela sentia na apertura de sua mão contra a dele, uma coisa diferente em seu estado...   
 Com os cestos cheios e os embornais a tiracolo, a caminhada ficava mais difícil na trilha irregular da margem do riacho.
Cristalino, o Maquiné despencava da serra do Caraça, formando cascatas e na baixada, remansos represados por pontas de lajes.
Às vezes, sumindo enfurnado sob pedras e voltando a aparecer misterioso bem adiante espumante.
Todos descalços caminhavam pisando no leito encascalhado ou pedregoso.
Edward admirado chegou a notar em alguns instantes,  faiscas brilhantes junto da areia; era certamente ouro.
Nas catas mal orientadas de outrora, ficara ainda vestígios no leito precioso.
- My God,  that is Gold! Gold!!!
Gold, gold!
Right in that moment
Nas mãos mergulhadas no espelho d’água, Edward trouxe entre os dedos uma pequena faisca daquele metal que era a razão da sua vinda para o Brasil.
Falando palavras misturadas do inglês com o português, ele mostrava a todos o que tinha nas mãos.
- Sabe?
That’s gold, those are gold nugget;  falou devagar pensando que entenderiam o que dizia.
- O que é  nugget?
Lembrando a versão portuguesa, conseguiu falar: “pe pi ta “
Terra very, very rica demais...
- Nós viemos aqui para catar ouro, ou para passear?
Magdalena sentia-se menos valorizada que o grão que o namorado tinha na mão.
- Oh, Magdalena, você muito mais valor pepita!
Os que ouviram o galanteio rasgado do inglês, riram da forma de se expressar dele.
Pensando que deveria pesquisar naquele lugar, demarcava com os olhos a posição em que se encontrava e perguntou para Magdalena:
- How far are we from Catas Altas?
Magdalena não entendeu o que ele perguntara.
Bull que ouvira a pergunta, respondeu por ela:
Devemos estar a  1,5 mile...
O tempo da caminhada com paradas e passos lentos, não dava para balizar a distância percorrida.
Pensativo Edward refletia como era diferente o povo inglês do brasileiro, fosse na Inglaterra, aqueles terrenos que percorriam, deveriam  estar  revolvidos  por mineradores, tal como fizeram na costa Oeste Americana, especificamente na Califórnia...
Aquela serra era sem dúvida nenhuma um rico depósito de ouro ainda inexplorado; se o que se via de aluvião era grande, o que dariam os veios dentro da serra.
Atravessando troncos dispostos como pinguelas, o riacho fazia com sua geometria tortuosa, meandros cortando o sopé da serra.
Ora, estávamos na margem direita, ora na esquerda; sombreando a margem do rio, ainda vicejavam: Araribás, Angelins, Angicos, Braúnas, Cedros, Canelas  e Ipês e por baixo, uma massa esverdejante e luxuriosa de plantas tropicais.
A mata a margem do riacho regenerava aos poucos do que fora há um século antes
Aqui Eduardo, era muito comum aparecer onças  jaguatiricas, atraídas pela quantidade de animais pequenos que se infiltravam por dentro da mata.
Uma em especial deu o nome ao rio, a ave “Bicudo Maquiné“
Aqui Maquiné muita rica, Magdalena!
Edward olhava admirado  para o alto da serra...
- How high. is this peak?
- O pico mais alto, está a 2.2l7 metros,  o Inficionado.
Aquele mais próximo é o pico do Sol a 2.074 metros de altura.
Edward admirado dos conhecimentos da namorada, perguntou:
- Quem deu Magdalena, medidas?
- Just a remind, I’m a teacher!
Ele ria do inglês de principiante...
- Não vou falar nem responder mais em sua língua inglesa...
- Ou Magdalena, assim não fala com eu...
- Não foi você mesmo que me pediu que esforçasse para aprender sua língua, mesmo que, falando errado?
- Sim, Magdalena se morar  Gongo Soco, só falar lingua minha...
- Como vamos morar em Gongo Soco,  se meu pai não deu  consentimento ainda  para casarmos?
- Resposta seu pai,  não  precisar mais,  pastor Cuming escrever padre Francisco Xavier, pedindo ele fazer  casamento católico eu e você,  se não fazer, ele fazer nosso casamento lá Gongo Soco.
- Você teve a coragem de fazer a consulta com o pastor do Gongo, sem me avisar?
- Não, reverendo sabe que eu quer casar com você igreja católica, se padres  igreja Catas Altas não querer, aí ele fazer nossa igreja no Gongo...
Deus é universal e único Magdalena!
Minha religião também boa para casar gente...
Magdalena pensava no que Edward estava dizendo, se não houvesse outro recurso, o jeito seria aceitar dos Anglicanos o que os Católicos Apostólicos negavam.
Depois de certo tempo,  olhando para Edward, disse:
- Concordo, casaremos no dia 8 de dezembro, dia em que se comemora a nossa padroeira, Nossa Senhora da Conceição...
Se o pai continuasse opondo ao matrimônio, eles casariam sem festa e sem o consentimento.
- Eu apenas ponho  uma condição para nosso casamento:  Que você respeite a liberdade da minha religião, sem nenhuma objeção; concorda?
- Yes,  my darling!
Nunca pensar eu  contrariar Magdalena, especialmente  religião.
Nós ingleses muito fiéis e duros  nossos hábitos, mas respeita  direitos de pessoas.
The individuality is sacred...
Você Magdalena, fica religião católica;  That’s my faith...
- Is it right?
Magdalena flexionando a cabeça, confirmava  que concordava; ela seguindo a religião católica e ele a fé que tinha...
Se ela não abria mão de seus princípios religiosos, como poderia pedir a ele para renegar sua fé?
- Follow me, come this way.
Os dois entraram na garganta da gruta do Maquiné, contornando a cachoeira que em queda livre, despencava de grande altura esparramando água.
Por trás da cortina d’água os dois se abraçaram; ninguém poderia vê-los, tão pouco o que diziam.
Magdalena percebeu os lábios dele se mexendo e ela deduziu o que ele dizia:
- I love you!   I love you!
Sabendo que ninguém poderia escutá-los começaram a gritar:
- I love, I love, I love...
A umidade em suspensão formava uma névoa visível, mas que as moças não perceberam as conseqüências.
Em pouco tempo, estavam com as vestes úmidas e coladas ao corpo.
O contato de Edward mostrava quanto era desejada e ela percebeu quanto estavam molhados.
Afastando bruscamente, ela sentiu vergonha e ele raiva de ter provocado o constrangimento dela...
O corpo de Magdalena tremia no calor da intimidade deles e na frieza externa dos dois corpos molhados.
Ela não poderia ficar como estava; a veste completamente molhada...
Sentido o vestido colado ao corpo, ela teve vergonha de ter suas formas físicas expostas a olhos indiscretos.
Há na vida de toda criatura humana, desejos inconfessáveis que é difícil refrear; ele nada dizia, pois teve medo de piorar o mal que causara, naquele prazer inusitado...
Silenciosa, ela se afastou dele para pegar no cesto, uma blusa que retirara  com o calor da caminhada.
Por sorte ela trouxera aquele agasalho.
Mais afastado deles, vinham gritos que o eco repetia dentro daquele vale:
“ Magdalena, Magdalena,  ena, ena, ena; repetia o eco...
- Don’t worry!
- Eu me preocupo sim, Edward!
"Eles estão à nossa procura...”
Segurando-a pelos braços, os dois voltaram para a direção de  onde vinham os gritos.
- Onde vocês estavam?
Chamamos diversas vezes por vocês!
- Lá dentro não se escuta nada...
Os que chegavam começaram  a aproximar-se da queda d’água.
- Cuidado com os respingos, eu me molhei toda!
Eu vou sair para me secar ao Sol; Edward disse em bom português:
- Que pena!
What a beautiful  place!
Realmente este lugar é lindo, Edward!
Olha como a água sai de dentro da pedra para dar o salto...
Ela vem como um véu de noiva, tão pura e fria...
Ele não entendia o que ela falava e pediu que tentasse explicar em inglês:
“ - Is pure, and river is cool...
Como toda mulher deve ser, complementou em português.
 “ - By no means.
- Sim, de todas as maneiras possíveis à mulher tem que ser recatada, ela estava censurando a si mesma como se comportava no pic-nic.
-  “It’s pure, but not cool...“
- A frieza Edward, é própria do que é puro, assim também é a água para matar a sede, que é quente e incontrolável...
O eufemismo da professorinha, tentava colocar o namorado em seu devido lugar; mas ele não entendeu  nada do que falava.
Tentando segurar as mãos dela, ela pudicamente afastou-se e foi sentar numa grande pedra no meio do riacho.
- Comporte-se meu querido, não deixe transparecer  o que sentimos; não atrapalhe o que está tão bom...
- Muito bonita!
- A cachoeira?
- Oh! tudo;  você,  cachoeira, serra e terra...
Agora vejo,  aqui mui lindo!
E você nunca tinha percebido antes?
- You are kidding?
Eu fala verdade, Magdalena!
Gosta eu muito você...
Gritos vindos da cachoeira chamavam a atenção dos dois; saltando e gritando, a turma toda molhada brincava na bacia  formada pela queda.
Escavada pela erosão dos tempos, uma bacia se formara numa piscina natural.
Ali estava a prova do que o provérbio diz:
“Água mole, pedra dura, tanto bate até que fura...“
No remanso os meninos nadavam deliciados.
Edward suado e com o corpo pedindo água, não resistiu os apelos dos que nadavam.
Retirando a camisa do corpo, mostrava o tronco nú; pela primeira vez Magdalena via a musculatura avantajada dele.
O corpo bem proporcionado, mostrava o ombro largo e o tórax saliente, o mamilo com halo ao derredor, mais escuro e o peito cabeludo  queimado pelo Sol.
Àquela cor rosa era raro entre os europeus geralmente medrosos de se queimarem no país inteiramente tropical.
Saltando da pedra em que se desnudara, caiu de cabeça nadando veloz rumo ao refluxo da queda d’água.
Magdalena acompanhava o seu mergulho; ela viu seus braços estendidos e as mãos espalmadas tocando o fundo.
Num impulso com as mãos, revirou o corpo e com os pés apoiados no fundo, alavancou de volta a superfície, ele estava próximo do jorro caudaloso.
Desviou a cabeça da carga d’água e recebeu o impacto sobre as costas.
Seu rosto acusou o choque e a dor que veio depois; ele nadava para o lado da pedra onde sentara Magdalena.
Ao subir na pedra, uma marca vermelha mostrava a força da queda livre sobre seu corpo; seus músculos ressentiam o golpe e o rosto magoado era uma só expressão de dor.    
 Nada mais saudável do que uma ducha sobre o corpo, porém  perigosa quando não avaliada.
Edward ficou calado e Magdalena perguntou:
- Você se  machucou?
Só o movimentar da cabeça assinalava que não,  mas a fala faltara  para contrariar sua negativa.
Magdalena vendo a região toda vermelha, sabia que devia estar doendo e começou  a massagear com as mãos leves o lugar.
- Aspira e respira querido!

Ele não entendeu e ela pensou como dizer as mesmas palavras em inglês, lembrando, disse:
- “ Breath deeply, so you will get better! 
Respire fundo, repetiu ela em português...
Ele seguindo o que ela mandava, depois de certo tempo, voltou a respirar mais aliviado.
- “ I’ve got worried indeed!
- Eu me preocupo sim, respondeu nervosa a namorada, vendo-o com a expressão de dor.
Magdalena pouco a pouco ia aperfeiçoando com seu esforço a língua inglesa, o que deixava o namorado entusiasmado com o progresso e interesse dela.
Sentados sobre uma laje, observavam os demais brincando dentro d’água, seus pés nús por baixo da calça molhada, brincavam fazendo carinhos...
- Quando casarmos quero voltar aqui disse Magdalena olhando o rosto dele.
“Falar casar Magdalena,  reverend Cuming  conversar por carta com   reverend Xavier, se ele não casar eu você Catas Altas, ele casa nós em Gongo Soco
- Que carta é esta, Edward?
- Ele,  Mr. Cuming,  escreveu para eu e fala que pai seu, mandou pessoa saber  vida minha Gongo Soco...
- Meu pai fez isto?
- Sim, e a “Mining“ deu o  que pai seu querer...
- Por favor Edward, perdoa  o  meu pai;  ele deve ter feito isto porquê os  ingleses não são católicos e alguns de seus patrícios não gozam de bom conceito aqui...
- No Brasil é muito comum esta atitude, quando os pais não conhecem a família do noivo ou vice-versa.
- Carta dele vai acabar “preconception contra eu e nosso marriage“
- Cuidados de pai, querido!
Qualquer outro teria as mesmas preocupações, além do ciúme de estar perdendo um bem que ele gerou e criou...
- Eu não mais falar seu pai, pedido casamento; Edward Hosken  homem  inglês fully proud!
- Que é fully proud?
- É amor eu mesmo...
- Orgulho, você quer dizer.
- Yes, orgulho...
- Nem eu quero que você se porte como menino...
- Então se pai seu não responder eu, você e eu casa?
- Esperarei até às l8,00 horas do dia 8 de dezembro, conforme combinado, depois deste prazo, vou para a capela do padre Xavier e lá casaremos...
- E se pai seu não querer?
Aceita  reverend Cuming?
- Claro, sem as  bênçãos de Deus  é que não vamos ficar...
- Eu leva: John Bull, Mr. Yory, Zaga e filho meu: O John Hosken, como testemunhas.
- O John não pode, ele ainda é criança!
- Então levo o John Emery.
- Ele é muito amigo de meu pai, e pode contar o nosso segredo...
- Mr. Emery patrício meu, não contar nada...
- Então vou conhecer o seu filho no dia do nosso casamento?
- Sim, ele muito vontade ver “step-mother “
- O que é step-mother?
- Mãe segunda, depois outra...
- Madrasta, você quer dizer.
- Sim, mother madastra...
Ele reclama não ter  mãe;  Antônia,  John não conheceu.
- Meu pai ficou sabendo deste filho seu, uma das razões de se opor ao casamento.
- É crime Brasil ser pai, Magdalena?
- Nas condições que foi gerado, a sociedade brasileira condena e recrimina.
- My God! For God’s sake!
Is it a sin being a single?
- Não diga blasfêmia Edward, 
- Que você é solteiro todo mundo sabe, nem por isto, deixa de ser condenável  sua irresponsabilidade de ter um filho solteiro... 
Não querendo continuar com o assunto que era desagradável à ambos, Magdalena afastou-se e de longe perguntou:
- Você está com fome?
Em voz alta gritou para os companheiros do pic-nic:
- Vocês já comeram?
- Não, não, vieram as respostas.
A turma foi se aglomerando perto dos cestos que guardavam a matutagem, as pedras serviam de mesas e assentos.
Nada melhor para abrir o apetite que uma caminhada e um banho pela manhã; as iguarias desapareceram repentinamente, sem nenhuma cerimônia o cesto esvaziou-se...
Depois de alimentarem-se ficaram conversando sobre a beleza daquele passeio; Magdalena pediu para a irmã Maria Raymunda:
- Canta alguma coisa mana:
A voz suave que todos conheciam no coral da igreja, começou num solo. o que as demais conheciam:

 
                       Que a tarde vai,  é um fato,
                       o Sol se pondo nas alturas,
                       o Sofrê cantou no mato
                       e no brejo as saracuras...

As outras meninas responderam em coro:                      

                    Sofrê, não é bicho nato,
                       é dor;  tantas agruras!
                       se ele canta no mato,
                       é por sofrer suas torturas...

                       Menina! deste fato,
                       virão abraços de ternuras
                       não permita com seu ato,
                       nove meses de aperturas...

Com o verso cínico e impróprio as mocinhas começaram a rir, os ingleses não sabiam a razão e elas voltaram a cantar o estribilho:
  
                       Sofrê, não é bicho nato,
                       é dor;  tantas agruras!
                       Se ele canta no mato,
                       é  por sofrer suas torturas...    


Edward encabulado, pediu à Magdalena para que ela explicasse os versos, pois todas elas olharam para ele rindo, quando cantaram...
Você não entendeu?
- To repeat...
Magdalena não quis cantar e as outras meninas cantaram por ela:

                      Se ele canta no mato,
                      é por sofrer tantas torturas...

- Vocês cantando, faz lembrar chegada nossa primeira vez Catas Altas.
- Como assim?

- Chegando viagem da Inglaterra, moças de Catas, cantaram para nós ingleses, muito bonita.
-  Quando?
-  l5 anos atrás.
Magdalena não se lembrava do fato há tantos anos passados.
- You were so litle...
A sombra da serra cobria todo o vale do Maquiné, apenas o pico do Sol ainda brilhava com os raios vindo do lado Poente.
- Juntar as trouxas gritou Maria Raymunda.
Algumas cansadas e caminhando trôpegas, voltavam pelo mesmo caminho.
No adro da igreja do Rosário, pararam para descansar e despedirem-se.
Magdalena chamou a atenção das meninas:
- Olha lá para o alto, parece o ostensório do Divino!
O cume da serra brilhava espalhando raios para todos os lados.
Pagava a pena esperar pelo último fulgor daquela tarde...
Segurando a mão de Magdalena, Edward não queria soltá-la e ela sedutoramente pediu:  
- Deixe, deixe, eu preciso ir...
Se pudesse ela ficaria a vida inteira com suas mãos presas as dele, mas a irmã Maria Raymunda e as outras subiam a ladeira.
Era perigoso ficar ali sozinha com Edward, alguém poderia ver e comentar com seus pais.
Edward continuou parado e os outros ingleses sentados no degrau da escada da igreja de Nossa Senhora do Rosário.
O sino da matriz badalava as “Ave Marias “
Ele se lembrou da sua terra, l5 anos de ausência, longe dos seus entes queridos, havia naquele instante, um culto de saudade, pela separação dos seus pais e de Magdalena que acabara de sumir da sua visão.
Seria o último encontro antes de se casarem.
Uma dúvida pairava em sua mente:
Seriam  eles felizes, casando-se a contra gosto dos pais dela?
Valeu a pena sair da Inglaterra, para ser discriminado pelo ato de amar?
Ele não agüentava mais viver solteiro, faltava  o que todo homem necessita na sua idade.
8 de dezembro de l.848, nem um dia mais  solteiro...
Seria a marca definitiva para solução da sua  permanência  no Brasil.
Com o céu cobrindo de estrelas, ele juntou-se a rodinha dos outros ingleses; Bull, Emery e Henewood caminhando em direção a praça da Matriz.
Calado Edward distanciou-se dos outros três ingleses, dando passos mais vagarosos, ficando para trás.
Uma mão tocou em suas costas, sem que ele tivesse sentido alguém se aproximando.
- É você Zaga?
O negro sempre vigilante acompanhara a distância o passeio de Nhô Du.
- Onde você estava?
- Lá no Maquiné.
- Como não te vi?
Nhô só tinha olhares  prá Nhá Magdalena...
- Quando eu estiver com ela, não quero que você me siga!
- Maise,  e o brabo  pai dela!
- Eu resolvo meus problemas, Zaga...
Zaga sentia como fazia falta uma mulher na vida do inglês, ele precisava casar para que a vida dele tivesse sentido...
- Casa sem muié, é argibeira sem rapé.
- Nhô, percisa dá modo de casá!
Dia 8 de dezembro, Zaga; queira ou não o pai dela.
- Entonces, tá marcado?
- Está Zaga, se não acontecer volto para minha terra...
- Cê tá doido, Nhô?
Deus é pai, ancê vai vê como tudo estarará certo...
Voltando para o Hotel do Bull, eles teriam uma noite curta, pois sairiam às 4,00 horas da madrugada para Quebra Ossos.
- Se pudesse voltar o tempo!
- Vortar o que, sô Du?
- Voltar, recomeçar o dia de hoje...
- Prá mode de que, sô Du?

- Ora Zaga, Não seria para andar com você!
O negro silenciou com a tristeza patente, no modo grosseiro dele responder, caso raro entre os ingleses que preferiam calar a magoar os outros.

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Magdalena ao voltar para casa sentiu um alívio, pois os pais ainda não haviam voltado da Cachoeira.
Dona Rita encontrou as filhas em seus quartos, deitadas e de camisola, conversavam animadamente.
A mãe achou-as vermelhas, mas poderia ser  o efeito da luz do lampião.
- Que vocês fizeram hoje?
- Ah! Saímos para um pic-nic.
- É por isto que vocês estão queimadas, vocês estão muito vermelhas e necessitando molhar o rosto com água de pétalas de rosas.
Vou mandar Miúda trazer os jarros.
- Você está ardendo de febre, filha!
- Febre de amor, falou corajosa Magdalena.
- De que?
- De amor mãe, de amor!
- Você ainda pensa no inglês?
- Mais do que penso, sinto como se ele estivesse aqui perto de mim como à senhora está.
Eu gosto muito dele e estarei sempre pensando nele...
Maria Raymunda e Bizita ficaram pasmas com a coragem da irmã para confessar os seus sentimentos daquela forma para a mãe.
Havia naquele tom atrevido, talvez uma revolta que a mãe não sabia como amainar.
Depois de passar a toalha molhada no rosto das três filhas, dona Rita foi beijar uma por uma e deixou o aposento pensativa...
Ao ser puxada a porta, ela rangeu barulhenta e dona Rita disse para Miúda:
- Amanhã, manda Celestino untar as dobradiças desta porta  com sebo de boi; parece até alma penada amolando a gente!
Aproveita e fala com ele para passar em todas as outras, não quero que a casa  fique assombrada  com tais barulhos...
Até que a porta não incomodava Magdalena, pois raras eram às vezes que era aberta e fechada; o duro era agüentar o tic-tac do grande relógio de coluna.
Mesmo longe lá na sala, o seu barulho era ouvido durante a noite, por isto a mãe puxara a porta.
Saindo do quarto, dona Rita lembrara que Magdalena voltara a se cuidar melhor da sua toalete e vestes pessoais.
Nos últimos tempos, era ela mesmo que cuidava de suas vestes, ora passando a ferro, ora costurando, coisa que em outros tempos, deixava aos cuidados das mucamas.
A canastra onde guardava sua roupa pessoal ficava arrumada como se fosse viajar naquele dia.
A mãe chegou a perceber seu cuidado exagerado, com as roupas, porém nunca via Magdalena vestindo-as.
Intrigada, às vezes perguntava:
- Ou filha, prá que aprontar tanto, sem nunca vesti-las?
- Estão guardadas para quando voltar a engordar...
Um perfume exalava da canastra com a tampa suspensa.
Ao se despertar na segunda feira após o encontro com Edward, Miúda entrara no quarto sorrateiramente, porém esbarrou no criado.
- Que você quer Miúda?
- É prá ancê Nhá!
Com os olhos semicerrados, ela percebeu pelo cheiro estranho um buquê de flores nas mãos da negrinha.
- Que é isto?
- Prenda prá ancê qui sô Du, mandou!
- De Eduardo?
- Uai, de quem pode sê, Nha?
Levantando o corpo e sentada na cama, recebeu as flores procurando alguma identificação que esclarecesse o presente.
- Tinha algum bilhete, Miúda?
- Não Nhá, foi o nego Zaga que trazeu e disse:
- “Fala com sinhá Magdalena, qui o biete tá iscrivinhado no coração de sô Du.
Mais do que as palavras, ela sabia o que seu noivo queria dizer com as flores...
Ninguém em Catas Altas sabia que aqueles eram os últimos dias de solteira da filha do Guarda-Mor Thomé.
Os casamentos das pessoas importantes da Vila eram anunciados e preparados com meses de antecedência e as famílias viviam em clima de festa, preparando-se feéricamente para as bodas.
Na casa do Guarda-Mor a rotina era a mesma, nem os familiares de Magdalena poderiam supor o que ocorreria daí a uma semana.
No dia 4 de dezembro de l.848, padre Xavier fora à Santa Bárbara para abrilhantar os festejos da padroeira, encerrando o fim da novena.
Pagando a visita, o arcipreste João Batista de Figueiredo viria à Catas Altas para fazer o mesmo nos festejos de Nossa Senhora da Conceição, do dia 8 de dezembro.
O arraial despertara naquele dia de festas, sob o repicar de sinos e foguetes e a banda de música em retreta pelas ruas.
Desde 5,30 horas da manhã, a praça principal  começara a receber gente de fora e vários animais de cela, estavam amarados nos esteios do quadrilátero próximo da matriz.
Barraquinhas levantadas e dispostas ao lado esquerdo da igreja, recebiam salgados, quitandas, e outras prendas para o povo e o Leilão que ocorreria depois da missa.
Os padres: Francisco Xavier de França, João Batista de Figueiredo e o padre provedor, o vigário geral, Francisco Justino Gonçalves Viegas, iriam celebrar a missa solene das l0,00 horas.
O pregador do sermão, padre João Batista, exaltava no púlpito o privilégio da Imaculada Conceição.
Magdalena guardou na memória especialmente este trecho:
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“Ela a Virgem Maria, que nunca cometera um pecado sequer, nem mesmo os originais comuns às criaturas;”
Ela, que dentro em pouco receberia do papa a confirmação do dogma de sua pureza, era por isto que a festa revestia-se naquele ano, de um júbilo todo especial.
No Evangelho de hoje e no ofertório, vamos  alegrar-nos  como nas saudações dos anjos, dizendo:
Oh! Maria cheia de graça, que sejais neste dia e em todos os outros de nossas vidas a advogada nossa.
Assim como conquistastes tão grandes virtudes e a isenção do pecado, preservando-a do contágio, também a nós seja dada esta graça, livrando-nos do mal.
Sob vossa invocação, aqui estamos exaltando-a e pedindo humildimente a vossa proteção.
Sejais, Nossa Senhora da Conceição, nosso modelo de virtudes e obediência e acima de tudo: Como fostes filha fiel,  esposa amantíssima e mãe exemplar.”

  Aquele sermão do padre João Batista, parecia ser dirigido especialmente à sua pessoa.
Vermelha e de cabeça baixa,  sem tirar o véu que a  recobria, saiu  apressada da igreja, evitando cumprimentos até das amigas.
Já em seu quarto, em prantos não conseguia reter os soluços comprometedores.
Miúda, Zéfa e Nhana vieram do fundo da casa para saberem o que se passava com sinhazinha.
- Gentes, pro mode que ocê chora, Nhá?
- Nóis tá aqui pra sabê qui dói n’ancê!
Os soluços não cessaram e nem ela conseguia balbuciar qualquer palavra esclarecedora.
Nhana levantou a menina e Miúda ajudou-a a colocar Magdalena no seu  colo.
- Busca prela um chá de erva doce, Miúda...
- Fala fia, fala prá gente adividi a dor...

Entrecortados de soluços, Magdalena mal conseguia dizer:
- Não é nada, não!
Nem es-tou    do-en-te...
- Entonces, pro mode que ancê chora?
- Não posso falar...
- Meu Deuse, mas ancê tá falando, Nhá!
Qui foi qui deu n’ocê?
- Por favor Nhana! Não diga nada a ninguém, nem para mãe!
Calejada e experiente da vida, conhecedora dos problemas de Magdalena, virou para as outras e disse autoritária:
- Todo mundo pro serviço, goela tramelada e nem um pio do que ancês viram...
As outras saíram e Nhana acalentava-a passando suas mãos pelos cabelos.
 No colo e vestida, Nhana esperou que ela acalmasse um pouco e depois disse:
- Eu vi ancê nascê e crescê nestes braços, purisso sei pro que chora...
Se é de amô, pode chorá qui também já chorei.
Se é de dô, nu tem vregonha, pois tudo qui é gente, chora como vancê.
Maise, se ancê chora com medo de falá co’eu, intão é sua  nêga que vai chorá pro mode de ocê num confiá nela...
A simplicidade comovida de Nhana fez Magdalena abrir seu coração:
- Eu vou contar um segredo só para você, ninguém poderá ficar sabendo nesta casa, porém você vai me jurar que guardará o meu segredo...
Nhana pressentiu que a coisa era mais grave do que pensava.
Ouvindo passos da família voltando da missa, disse baixinho para Magdalena.
- Fica de bico calado e eu vou sair prá ninguém disconfiá qui ancê tá magoada, despois, vou falá com Nhá Rita que ocê tá doente e percisa amoitar prá sará de sua doença de moça.
 Na hora qui tivé o chá pronto, nois fala tudo qui tivé de falá...
- Não vai não, Nhana!
- Ou fia, se eu ficá aqui com ancê, dona Rita vai disconfiá qui tem coisa!
Como todos os domingos e dias santificados,  depois de terminadas as missas,  a casa se enchia dos parentes,  Maria Raymunda foi contar para a mãe que,  Magdalena estava de cama e tinha chorado muito com dores.
- Ela falou o que está sentindo?
- Ah! ela disse que estava com cólicas e Nhana está fazendo um chá para ela.
Foi até a cozinha saber que providência Nhana estava tomando.
- Ou Nhá, tô fazendo prela um chá de erva cidreira.
A cunhada Bonifácia, uma das freqüentadoras assíduas da casa nos domingos, reprovou a erva cidreira e mandou que fossem apanhar folhas da planta Metrasto e fizesse o chá com elas.
Entrando no quarto para ver a filha, notou que ela estava um pouco quente e queixando de cólicas.
- Bonifácia já recomendou um chá para você, filha!
Nhana está preparando...
Ao trazer o chá, Nhana mandou que bebesse e foi fechar a porta para que ninguém viesse incomodá-las.
- Bebe este chá de Mentastro, fia; vai sê bom procê.
Tá muito quente aqui dentro!
Pode abrir as janelas?
- Abre Nhana e vem sentar aqui...
Nhana fazia os mesmos  chamegos do tempo em que ela era criança.
- Ou Nhana, que vontade de voltar aos tempos que você me carregava no colo!
- Ocê já é moça fia, tá percisando é de um príncipe pra fazê isto com ancê.
- Você adivinhou o que quero falar com você...
- Como adevinhei?
- Hoje ao escurecer vou sair para encontrar com meu príncipe e não voltarei mais aqui. 
- Ancê tá vareando, fia!
- Não Nhana estou falando sério...
Eu preciso muito de sua ajuda, Nhana!
- Nu tô aqui ajudando ocê?
- Quero outra ajuda e muito mais importante do que você está fazendo agora.
- Entonces fala, fia...
- Nhana, eu vou mesmo fugir hoje com o Eduardo.
- Ocê tá falando isto de vredade?
- Num brinca qu’eu Nhá!
- Não estou brincando, vou fugir para casar de verdade.
- Mas como?
- As l9,00 horas na capela da casa do padre Xavier.
- Meu Deuse!
Ancê endoidou de vez.
- Não estou doida não Nhana.
- Você é a única pessoa com quem posso confiar nesta casa!
- Pru mode que, ancê nu fala com Nhá Maria Raymunda!
- É questão de sigilo, só em você confio este segredo, vou sair pelo fundo do quintal às 6,00 horas da tarde, direto para a capela
- Nu faz isto não, Nhá!
- Nós tudo vamo ficá doidos!
Vancê pensou na sua mãe, seu pai e nos irmãos?
- Penso em todos, mas também penso em mim...
- Quem vai com ancê?
- Daqui da minha casa, ninguém, mas lá na capela da casa paroquial, já tem gente me esperando para ser minha testemunha e do Edward.
Nhana, minha atitude não é caso resolvido agora, há muito tempo venho esperando a licença de papai para o nosso casamento.
Você sabe como tenho sido paciente, mas chega uma hora que não dá mais para esperar; Daí nossa atitude, indesejável.  
 


   

Um comentário:

  1. Historia linda.
    Sou descendente do Thome Monteiro de Oliveira cc a Maria Valentina de Jesus. tenho um livro da família que conta essa história do Chico e a Bonifácia.Carlos Carvalho

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