A proximidade das terras
do Caraça a Vila do Ribeirão do Carmo,
levaram os desbravadores de terras a aventurarem-se pelo mato dentro em
busca de ouro, pedras preciosas e índios.
Esta busca, empurrou os bravos bandeirantes até as nascentes do Rio Doce,
onde a mata fechada abrigava os
índios e as riquezas ainda desconhecidas dos brancos.
Quando por lá passara Duarte Nunes catando o ouro e
levando os “granetes" de cor escura até São Paulo para serem examinados, comprovou-se
ser puro ouro e da melhor qualidade.
Abria-se com o achado, uma série de aventuras que se
tornaram épicas, sem contudo deixarem gravadas as marcas nas páginas da nossa história.
Os portugueses e paulistas viram que no leito dos
pequenos rios, junto das nascentes que ocorriam nas serras, estava o que
procuravam os portugueses, desde a descoberta do Brasil.
O ouro em catas tão altas, devia-se a erosão das
fortes correntes lavando as barrancas e depositando no leito plano, as pipetas
de jazidas tão ricas das serras.
Em 1.703, o bandeirante Manoel Dias atravessando para
o outro lado da serra do Caraça, foi encontrar nas estonteantes e cristalinas
águas da vertente Norte, o que procurava.
Seguindo os passos de Manoel Dias, os sertanistas:
Domingos Borges e Antônio Bueno, ambos de nação portuguesa e com o mesmo
propósito, fundaram por baixo da serra, o arraial de Catas Altas.
Com a fixação definitiva do alferes Domingos Vieira
na região, a ele foi doada a Sesmaria de Catas Altas.
Primeira da região em plena Mata.
Mais tarde, com o alarde da descoberta de ouro, os
primeiros povoadores começaram a se
assentar na terra:
Entre eles os pioneiros:
Antônio Ferreira Pinto
Domingos Moreira Afonso
Capitão Domingos Rodrigues Pontes
Capitão José Ferreira
João Pereira Fagundes
José Alves Pereira
Luiz Antônio Rodrigues Lima
Capitão Miguel Gonçalves de Carvalho
Manuel da Mota Moreira
Capitão Manuel de Seabra Costa
Manuel da Rocha Ferreira
Pedro Francisco de Carvalho
Dr. Francisco Ferreira Santos
Rafael Elvas
Teodósio Fernandes da Costa.
Esses os primeiros moradores de Catas Altas, que pela
Carta Régia de 23 de abril de l.745
receberam foros de cidadãos.
A 1ª Sesmaria doada a Domingos Vieira, ia se
dividindo a bem do crescimento da rica região.
Embrenhando-se pelas matas, esses lanceiros dos
sertões, largavam famílias e foram conquistando terras pela bacia do Rio Doce.
A inclemência do desbravio, não permitia carregar
junto deles a família constituída, deixando o aventureiro desbravador, a esposa
e os filhos nas Vilas recém-fundadas.
Preando índios para o trabalho, também pegavam
meninas virgens para as noites vazias de suas incursões
Eram diferentes de suas escravas negras; mais
rebeldes à posse e a entrega...
A tentação aumentava com a resistência e acabavam
sendo dominadas pelo instinto sexual de quem estava há tempo abstinente e longe de casa.
Mesmo sem poder trocar palavras, as noites já não
eram tão vazias ao dormirem com o corujar do mocho, ou o coaxar das rãs no
brejo...
Aumentando a prole, o sentimento cristão não permitia
o abandono da presa e cria na vastidão da mata.
Assim mestiçando no pecado tolerado, a igreja apesar
de contra, calava diante do poder dos capitães
e do desordenado povoamento.
Para bem da colônia portuguesa, era a maneira mais
vantajosa e rápida de se apossar das terras ocupadas pelos bugres e evitar a
posse por invasões estrangeiras de outros povos.
As terras ficavam por herança aos descendentes dos
portugueses, não importando a espúria consangüinidade de raças.
O povoamento mesclando as três raças: Branca,
vermelha e preta originando a mestiçagem.
Mais do que a fusão das raças, a mestiçagem produziu
um homem novo, afeito as condições climáticas e a possibilidade de maiores
explosões demográficas.
Se o Brasil inteiro se mesclava, por que não Catas
Altas?
Numa sociedade tolerante, com os privilégios dos
senhores escravocratas, donos das senzalas e da vida de seus escravos, eles
tinham direitos incontestáveis para seus prazeres.
Quando do nascimento dos filhos legítimos, a
quarentena da incontinência sexual, levava o esposo a procurar no próprio lar,
a substituta para as noites descasadas.
Com a promiscuidade campeando solta, 9 anos após
descoberta, Catas Altas demograficamente
crescera além das expectativas.
Nas folhas 104 do livro número 1 da paróquia, já era
dada notícias do primeiro cristão batizado na capela provisória no ano de
1.7l2.
Expandindo-se com os filhos legítimos e ilegítimos a
freguesia tornou-se colativa pelo alvará de 16 de fevereiro de l.724, sob as
bênçãos do padre Domingos Luís da Silva.
Neste ano, o povoado era maior e mais importante que
o de Santo Antônio do Rio Abaixo, fundado em 4 de dezembro de l.704.
Os primeiros habitantes de Catas Altas, foram
construindo suas moradias ao longo do caminho do Mato Dentro, que passava ao sopé da serra do Caraça.
A igreja definitiva que depois seria a matriz,
dedicada à Nossa Senhora da Conceição, teve início de suas obras nos primeiros
anos do século XVIII.
Nela trabalharam os empreiteiros: Manuel Fernandes
Pontes, Manuel Rodrigues e Francisco Antônio Lisboa, que não se deve confundir
com o célebre Aleijadinho.
Ainda trabalharam nela os artífices: Manuel Gonçalves
Valente e Manuel Pereira dos Santos.
Voltando a formação social de Catas Altas, lembramos
de Gilberto Freire, que em sua análise sobre a família brasileira, dizia:
“- E claro que sempre houve a senzala e todas as
conseqüências derivadas: Miscigenação, Mãe Preta e Moleque da casa Grande...“
Acrescentando o que dizia o sociólogo, lembramos do
ditado que dizia:
“O mineiro que tem
consigo uma negra Mina, nunca faltará a sorte na mineração. “
Por estas e por outras crenças, a todo pretexto
nasciam crianças e aumentava a população da região das Minas Gerais.
Os filhos espúrios dos brancos com as negras, gerava
um novo tipo aclimatado às condições da terra e herdando os predicados
benéficos da fusão de raças tão diferentes.
A fecundidade do europeu português e das negras do
continente africano, aguçou o instinto reprodutor dos lusitanos, dando ao
Brasil, os frutos desta união:
O mulato e a mulata.
Enquanto a mulher branca fechava-se dentro dos lares
assobradados, a mulata circulava livre entre as senzalas e os terreiros da Casa
Grande.
Sinhazinha, quando tinha contato com os moços,
somente nos ritos religiosos ou através das janelas de suas casas ouvindo as
serenatas.
O flerte de longe não podia ser notado por terceiros,
pois aos pais, era um ato de despudor da filha e um atrevimento do jovem
deslumbrado...
As uniões eram tramadas pelos pais interessados,
fortalecendo o elo entre as famílias mais abastadas.
Para a escrava, a liberdade plena nos terreiros das
fazendas ou nos grandes quintais das propriedades.
Como crias da natureza, se expunham com as vestes
mínimas, pulando como cabritas aos olhos do criador; Se os lírios brancos
enfeitavam os jardins, a mulata enfeitiçava os corações dos sinhozinhos,
mostrando o que as sinhás ocultavam em suas vestes caras.
Era o mínimo da veste, no máximo da tentação aos
olhos de sinhozinho; meninas nas graciosas formas puberes, com seus corpinhos
flexíveis como enguias meneando os
corpos quase nus no rebolado do côncavo e do convexo.
O poder do senhor e a submissão da escrava era um
prato de doces frutos, expostos ao gosto
de quem era dono e podia desfrutá-los.
Fruto de vez, mesocarpo amadurecendo para a
colheita; sinhozinho tinha a primazia de
colhê-los para seu deleite, sentindo a
parte carnosa do viço virgem...
Só um poeta com a visão e a vivência de Renato
Teixeira Guimarães, podia cantar em versos o que no Brasil fora dado aos homens:
M U L A T A
Mulata! Flor estranha das
senzalas,
Misteriosa rosa dos mocambos!
Tens dilúvios de amor na voz, se
falas
E incêndio de paixão nos olhos
bambos.
Por tua fresca
pele cor de jambos,
um cheiro
quente de volúpia exalas.
Na cozinha és
mais fêmea, entre molambos;
Que as brancas entre sedas pelas
salas.
Freira de amor de carne
hospitaleira,
Esposa oculta que ninguém dá nome
Noiva da mocidade brasileira...
Tu nos dás
carne e fruto em nossa rede,
Eva trigueira
da primeira fome,
Samaritana da
primeira sede!
Foi na sociedade escravagista e no ambiente acolhedor
da região central de Minas, que os ingleses da Cornualha, encontraram o
ambiente para suas aventuras amorosas e neste particular as pretas e as mulatas
tiveram um papel preponderante.
Na falta da mulher branca, o inglês sentia que a de cor
satisfazia seus instintos; pois era mais fácil e a mão, nas vezes que Eros
mexia com a libido.
Na África do Sul, muitos deles já haviam
experimentado o sabor das bagas suculentas e
os portugueses já radicados no Brasil,
deram a eles a muda de um fruto ainda mais saboroso, a mulata...
Que digam os batistérios preenchidos pelos padres,
que mostram os registros guardados pelos Arcebispados.
Como cresceu Catas Altas sob os lençóis de linho!
Como nasciam mestiços, sob as sombras dos laranjais.
No século XIX, após a abertura dos portos por D. João
VI, não só as mulatas aportuguesadas de olhos negros ou pardos, começaram
também a nascer meninos de olhos verdes, fruto da invasão inglesa aos locais
das minas.
Os jovens ingleses da Mina do Gongo Soco, que esperavam
voltar um dia para sua terra e lá se casarem, não conseguiam abstinentes
esperar por tantos anos.
Meninos da cor de chocolate e de olhos verdes,
começaram a nascer no Gongo Soco e imediações de Catas Altas.
Os livros de batistério da paróquia de Nossa Senhora
da Conceição registravam nas séries: G-5 até G-9.
Párvulos
filhos naturais da cabra cativa fulana com o inglês, fulano: “Junho" -
“Mary“ - “Robert “ - “Charles“
A contra gosto o padre Francisco Xavier de França
fazia assentamentos de nomes não latinos sem a identificação com o santo do
dia.
Estafando-se em pregar a moral dos costumes nas catas
de Quebra Ossos, Morro d’água Quente e no arraial do Arranca Toco, o vigário
sentia-se frustrado, por pregar ao vento.
Durante as missões, batismos por atacado, revelando
muitas vezes, um mesmo progenitor para 1 a 5 filhos durante o período de um ano.
Não era milagre da multiplicação como fizera Jesus
com os pães, era pouca vergonha mesmo, campeando na devassidão dos costumes.
O que mais magoava o vigário era o mau exemplo dos
chefes dos acampamentos, homens que se julgavam proprietários do corpo e da
alma de suas escravas.
- Ah, Catas
Altas!
Nova Sodoma do século XIX...
O crescimento desordenado em função da mineração, não
estava estruturado para abastecer tanta boca.
Começara a faltar pão, ordem e sobre tudo,
respeito...
Os crimes campeavam e o ouro incentivava os roubos a
ganância e a usura.
Raro era o minerador que vinha para Catas Altas com o
intuito de fixar raízes, o ouro só dava uma safra.
Ali surgiram alguns tropeiros que do comércio,
conquistaram espaços entre os que mineravam.
Para alimentar tanta gente, alguns forasteiros
começaram a dedicar-se ao cultivo do campo e foi com esta atividade incessante,
que surgiram as famílias tradicionais:
Alkimins, Alves da Silva, Ayres,
através dos Martins, Barrocas,
Bittencourts, Brüzzis, Cottas, Coutinhos, Emerys, Franças, Figueiredos, Gomes
Martins, Gomes da Matha, Hoskens, Lacerdas, Leitões, Martins, Mendes, Mendes
Campello, Moreiras, Munis, Passos Ferreiras, Pennas, Pereiras da Cunha, Pinto
Ferreira, Proenças, Prudêncios, Sás,
Teixeiras Vasconcelos, Viegas, Vieiras da Silva e Viveiros.
Algumas destas famílias, as mais antigas, quando
Saint’Hilaire as conheceu, visitando Catas Altas, deixaram no escritor naturalista,
forte impressão, pela hospitalidade e afabilidade de seus membros.
Por conviver com elas, ele deixou este registro:
“Os mineiros são
como os franceses; eles nos olham bem antes de tirar o chapéu; sua mão fica
suspensa junto a aba, sem saber se levanta ou deixa como está, num olhar
desconfiado...
Quanto às mulheres,
quando as olhamos, fecham a cara e seus homens faziam-nas sumir para o interior
da casa e o tom da conversa mudava completamente, quando não, cortando-a
definitivamente. “
Todos os forasteiros que por lá passaram, deixaram
impressões do ar desconfiado do mineiro, principalmente durante a guerra do
Paraguai; medo do agente recrutador de voluntários...
O matuto isolado,
sem contato civilizador, foi
simplificando o palavreado, corroendo letras e silabas das palavras e daí
criando o linguajar próprio e diferente:
“UAI - OC - OCÊ - NHÔ - IÔIÔ - IAIA
- OIA - OI - ANCÊ - OIU - OXEM - PRO
MODE - INTÉ TRU DIA - MINHÃ - NOSSINHÔ - FIL DAS UNHA - PRA QUE - SUS CRISTO -
TÁ SOLANDO em vez de está chorando. DALINA em vez de galinha.”
Com o jeito matuto de ser e fechado entre montanhas,
só se misturava com os índios e negros fugidos.
Nos socavões devolutos ou grotas onde ninguém
penetrava, criava a família formando castas isoladas, que no minério rico,
encontrava trabalho.
Dai a denominação toponímica que generalizou o seu
nome.
MINEIRO.
Enquanto perdurou a abundância do ouro de aluvião, a
população crescia formando povoados com a massa escrava e uns poucos brancos
portugueses.
Os brancos que se tornavam ricos com a cata do ouro,
recebiam os produtos de Portugal e os importados da Inglaterra.
Vestes e objetos como tecidos, calçados e vidros
transportados por mar até os portos de Salvador, Rio de Janeiro, Santos e
Paratí.
Os negros escravos manufaturavam suas roupas e
calçados com os sacos de aniagem; improvisando com sabedoria os tecidos de uso
pessoal que não podiam comprar.
Da mesma maneira que improvisavam vestes, adaptavam
os alimentos, sobras da “Casa Grande.”
Os restos retalhados e indesejáveis do capado que
matavam, o feijão preto não comido pelos brancos e o fubá que se espalhava pelo
chão dos moinhos.
O negro ia adaptando a sua maneira, seus pratos da alimentação.
Se a veste escrava era rala e parca, Deus cobria as
negras com a sensualidade dos seus corpos, vestindo-as esmeradamente com os
remelexos de seus gingados.
Nelas não havia pelos escondendo a pele que reluzia a
sensibilidade dos olhares indiscretos de seus donos, tão pouco as inúmeras
anáguas que escondia a carne em chama...
Correndo atrás da lebre, o caçador encontrava a caça
entregue em sua foja...
Nhô deixava lá dentro do sobrado, o linho forrando
camas de jacarandá torneadas e recobertas de véus mosquiteiros, os urinóis e as
escarradeiras de louça inglesa, as
toaletes com mesas de mármores de Carrara e seus espelhos bisotados, para
deitar-se sobre o leito do capim
cheiroso com a cabritinha despontando para vida...
A negrinha também sonhava em ter como sinhá, tudo
aquilo que dava conforto e prazer de se ver e desfrutar.
As cadeiras de espaldar, as mesas longas, as louças
de Limoges e os cristais Baccarat.
- Como era
bonita a casa dos sinhozinhos!
Para o ambiente da época, não importava que da
cozinha para dentro, os cômodos cheirassem a ranço e a cozinha na semi
escuridão, coberta pelo picumã fosse
obra de tantas aranhas tecendo desde a construção do casarão.
Ah! a comodidade dos brancos; eles tinham nos orinóis
e cagatórios sobre os regos de
serventia.
Aquela guarita de adobe, um luxo, estrategicamente
instaladas sobre a água corrente.
O trono com a cadeira vazada anatômica, permitindo
aos homens à comodidade do badalo suspenso à ventilação direta.
A visão zoológica, vendo os bichos passando por
debaixo.
Os galináceos, os porcos e os pássaros alimentando-se e fazendo a higiene do canal,
não permitindo que os troços fossem levados até ao córrego.
Na cadeia alimentar, devolviam aos animais o que era
dado a eles indiretamente.
Dentro do casarão as coisas importadas, do lado de
fora a rusticidade do eterno provisório, inclusive as instalações
sanitárias, quando existiam...
O mineiro para comodidade do bolso, esquecia o
conforto, não obstante, o ouro guardado retirado nas bateias.
Foi principalmente com a ida para Vila Rica, que
Magdalena começou a perceber as diferenças do conforto que a cidade grande
proporcionava e as diferenças entre o povo da capital e da Vila onde morava.
O que era fino e o que era grosso, o educado e o
deseducado, a diferença gritante do conversar com as pessoas esclarecidas e a
rudeza do linguajar escravo.
Agora ela prestava atenção nas palavras e no maltrato
da língua portuguesa.
Fosse na conversação, ou nas modinhas que cantavam,
ela percebia o barbarismo aos ouvidos, quando não, à afronta ao pudor...
Alguns versos ela chegara a decorar e fazia questão
de guardá-los para mostrar a quem cantava o sentido impróprio dos versos.
Eu queria, ela
quiria,
eu pidia, ela
negava,
eu chegava, ela
fugia.
eu fingia, ela
chegava...
Chupa minina a cana
qui é doce muito
bão,
mais mió, é chupa na
cama
gostusura do Bastião...
Tião, s’ocê é gande,
só dá eu, sastifação!
Maise, tudo isto é
glande?
Nu tô aqui pra
judiação...
Inté qu’ocê merece,
carregá na sua mão;
tudo qu’ancê carece,
dado de coração...
Nas bicas da serventia, lavando as roupas e o
vasilhame da casa, as negras cantavam sem mesmo saberem o sentido exato dos
versos chulos, que aprendiam ouvindo na senzala.
Uma tarde a sós com a mãe, revelou acanhadamente o
que as escravas cantavam, recitando de viva voz, os versos que ouvira
envergonhada.
- Você depois que voltou de Vila Rica, põe maldade em
tudo que ouve, filha!
- Mas o que elas cantam é chulo, mamãe!
- E o que é chulo, filha?
Magdalena achou melhor por termo a conversa; se a mãe
não entendia a letra, muito menos as escravas ignorantes.
Com o tempo, ela foi explicando às escravas o sentido
malicioso dos versos, que além de indecorosos, eram também impróprios na boca de uma mulher...
Seu jeito todo especial para ensinar, ensejou as
escravas assimilarem a catequese moralizadora da mestra; não se ouvindo mais o
bangulê cantado em versos imorais.
Dando nova versão a letra dos versos e ensinando a leitura,
os negros mais chegados, começaram a serem alfabetizados.
Quando Magdalena fora mandada à Vila Rica, as línguas
ferinas não perdoavam o desperdício do dinheiro.
Ninguém também se lembraria mais tarde, que foi
graças aos estudos de suas filhas, que as meninas do Guarda-Mor conquistaram os
bons partidos, de homens estrangeiros...
- Prá que, muié letrada?
Quantas vezes não ouviu o capitão Thomé, aquela indagação...
- Muié diziam eles, foi feita prá escola do lar, onde
não falta serviço...
Prá aperfeiçoar, bota as fias no bordado e nas
costuras, gentes!
Ao saberem que até as escravas do Guarda-Mor estavam
aprendendo a ler, as senhoras da sociedade e analfabetas, acharam uma afronta
às sinhazinhas...
Padre Francisco Xavier comentou o caso com Magdalena.
- Por que elas também não aprendem, padre?
- Aqui não tem escola para elas, filha!
- Se o senhor abrir as portas da sacristia para esta
finalidade, eu me ofereço para ensiná-las...
Nem todas passariam pela humilhação de serem
ensinadas por uma mocinha, mas um bom número de voluntários, apresentou-se para
matricular numa das primeiras escolas de alfabetização fundada em Catas Altas.
Padre Francisco fez questão de dar a primeira aula do
curso, explicando porque estava abrindo a escola.
A cegueira dos que não sabem ler é pior do que a dos
verdadeiros cegos.
Maria Magdalena iniciando a carreira de mestra,
explicou porque abria com padre Xavier a escola.
Ouvindo em sua própria casa, coisas que nunca deviam
ser ditas por uma mulher, ela se envergonhava, sabendo que, eram ditas por
ignorância de quem desconhecia o verdadeiro significado das palavras.
O padre que ficaria somente na aula de abertura,
sentindo o interesse de tanta gente, passou a dar aulas de catecismo e
particularmente de moral, o que faltava
na época à comunidade mineradora da
vila.
O Guarda-Mor vendo o trabalho de Magdalena sentia o
quanto fora importante os estudos da filha em Vila Rica.
As atividades sociais dela e a ajuda na direção da
casa, chamou a atenção de todos.
Na casa do Capitão começaram a surgir novos móveis,
espelhos, tapetes, reposteiros e porcelanas; a menina ia pondo o dedo em tudo.
As escravas recebiam aulas como servir educadamente
as visitas e responder quando solicitadas.
Nas noites de tertúlias, as bandejas de prata
circulavam com o chá e os sucos sobre as mãos estendidas e oferecidas às
visitas femininas.
Para os homens, o vinho e as frasqueiras de licores.
Magdalena já sabia a preferência de cada um dos
freqüentadores de sua casa:
Para o avô Paulo, o mais velho dos visitantes, a
laranjada sem muito adoçante e nada de comidas sólidas.
Para Dr. Manoel Moreira de Figueiredo, creme
português, cuja receita ele mesmo trouxera de Portugal.
Compartilhando com ele, o velho Martinho Martins, que
lembrava de sua mãe fazendo aqueles doces no fogão da sua casa na ilha Terceira
dos Açores.
Padre Xavier, preferia o doce de ovos, que levava
segundo a receita, meia dúzia de gemas de ovos, açúcar mascavo e leite.
Já o major José Maria Brüzzi e sua esposa a prussiana
D. Cornélia Pastrana, o “Strudel" de amêndoas com baunilha e fruto de
cacau.
O Coronel Emery tinha
preferências pelas tortinhas de Magdalena, como ele mesmo dera o nome.
Com tantos agrados, as noites na casa do capitão
Thomé e de dona Rita, ficaram famosas, pois além dos velhos, os filhos do
Guarda-Mor atraiam também os moços da mesma idade.
Não foi sem razão, que eles pescaram para suas filhas
no decorrer dos anos, quatro pretendentes estrangeiros para honrarem e se
associarem aos Mendes Campellos.
As discussões políticas, religiosas e sobre mineração
dominava a rodinha, de vez em quando descambava sobre educação, coisa que padre
Francisco mais do que religião, abordava; pois evitava discutir a fé com
pessoas que não era do seu credo; caso dos ingleses que freqüentavam a casa do
Guarda-Mor.
A educação entrava na conversa, depois que o Caraça
fechara suas portas, desde 24 de agosto de 1.842.
Havia passado 5 anos, a escola continuava fechada para
os moços; um desastre segundo Dr. Moreira que conhecia tão bem o educandário.
- Perde-se coisas materiais e até espirituais como o
seminário do Caraça, porém Deus nos dá outras coisas como recompensa pelo que
perdemos...
- Como assim, doutor?
- Estive ontem na Vila do Ribeirão Santa Bárbara,
onde fui abençoar 2 novos cristãos que se batizavam, filhos de parentes que não
podemos recusar convites, por mais longe que estejam.
- Quem, doutor Moreira?
- O mais novo filho do comerciante Domingos José
Teixeira Pena, sobrinho de dona Anna Teixeira Pena, vosso parente açoriano, sô
Martinho!
-Meu não, de Donana minha esposa!
- Farinha do mesmo saco, patrícios e comerciantes...
Donana, já foi visitar a comadre dona Ana Moreira
Pena?
-Ela esteve em Santa Bárbara dia
seguinte ao nascimento, 30 de novembro
de l.847 e chegou a comentar que
dariam ao menino um nome pomposo.
- Ou Donana, como vai chamar o menino do Domingos?
- Que menino, Martinho?
- Do Domingos Pena...
- Ah! Se não me engano, Afonso Augusto.
- É, na hora de registrá-lo vai ficar um nome tão
extenso que se gastará uma página para
escrevê-lo; hoje é moda das famílias mais importantes, imitando os nobres...
Só vendo como a igreja estava enfeitada de flores, cantos em
latim, e rapapés dos convivas.
Parecia festa da Ressurreição, tantos eram os foguetes!
- Que, igreja
bonita!
Ver anexo nº 22 e 23
( Igreja matriz de Santo Antônio em Santa Bárbara. )
O casarão da ladeira todo embandeirado; a varanda
quadrada ficou apinhada de gente para assistir as pastorinhas se exibindo no
pátio central, com seus cânticos e danças em homenagem ao menino batizado e ao
que iria nascer 24 dias depois, o menino Jesus.
- O senhor conversou com o arcipreste, padre Xavier?
- Padre João Batista de Figueiredo não faltaria à
festa, mesmo que não fosse ele o oficiante do batismo!
Foi ele que me chamou a atenção do forro da sala
principal, pintado nos retábulos, cenas cotidianas de cada continente.
O ano de
1.848 começou auspicioso para Maria Magdalena; uma turma de meninos foi
entregue a ela para alfabetizá-los.
Por sua vontade estenderia o ensino de alfabetização
a toda população carente, inclusive às crianças escravas.
Seu pai e os senhores de escravos opunham, dizendo:
- Abrindo os olhos da negrada, em pouco tempo vamos
ter sedição, tal como já houve em Santo Antônio do Rio Abaixo e Palmares das
Alagoas.
- Pelo contrário, pai!
Quanto mais se aprende, mais raciocínio e respeito o
homem tem.
Já se foi o tempo que os escravos rebelavam; hoje a
milícia está atenta e ativa.
Só nos tempos de Felício dos Santos e Tiradentes os
homens sublevavam, porém naquela época
havia motivo para revolta...
A leitura abre a visão dos negros e aí começam a
mensurar o que eles chamam de direitos.
- Ora, pai! O senhor mesmo está falando e reconhecendo
os seus direitos...
- Quem falou com você que negro têm direitos?
Direito, filha! É de quem gastou uns bons cruzados
para comprá-los...
Você não fica lendo panfletos libertários que os
Liberais andam espalhando, filha!
A libertação dos escravos como eles querem, será a
desgraça para toda a nação, inclusive aos seus proprietários...
Mais que a desgraça dos seus donos, será dos próprios
negros quando libertos, não tiverem onde trabalhar e comer...
O tal Euzébio de Queiroz, que anda apregoando na Câmara
a necessidade da extinção do tráfico de escravos, será que pensou no que
ocorrerá?
É muito bonito os fatiotas da corte, com seus fraques
e gravatas subirem na tribuna para pedirem a abolição da escravatura, mas será
que eles sabem de onde vem o que eles comem?
Ou acham que o maná ainda cai do céu?
Ah!!! Quando
faltar os negros na roça...
Será que o deputado Euzébio trocará a pena pela
enxada?
Seu tio Chico é que sabe das coisas, quando diz:
- “Negro nós cria, engorda e bota na roça; se manga
no eito, vendemo prá não contaminá a praça, ou no tronco pra sê amaciado pelo
chicote. “
Sua tia Bonifácia coitada ceifava os negrinhos pra
ficar bonitinhos e o Chico vendia todos como capado para os compradores das
minas.
- Que judiação!
Dava gosto ver os compradores mandando os bacuris
abrirem a boca para que eles mostrassem os dentes...
Admirados com a gordura e os dentes brancos,
compravam as peças para levá-los para mineração de ouro do Gongo ou da Cata
Preta.
Depois, viam que tudo, “era uma merda. “
Fruto de que?
Trato demasiado da sua tia, minha filha!
Se agora está assim, imagine quando a negrada for
livre; quem irá roçar, plantar o milho e o feijão?
- É verdade que o tio Chico, chegou a vender numa só
partida, todos os homens machos?
- Todos não, o Baptista ele preservou para fazer
novas crias...
Na época, ele tinha em mente a mudança para Leste da
zona da Mata, dai ter vendido não só os machos, mas também diversas fêmeas
escravas.
- Ele acabou indo para lá, não foi?
- Ajuntou as trouxas e partiu para Abre Campo, com
balaios, caixotes, mulas, burros e a filharada...
Pelo nome do lugar, você pode imaginar como era a
mata fechada...
Quando o Chico negociou toda negrada para partir,
minha cunhada jurou que ele nunca mais venderia seus bacuris.
Ela cansara de encher os olhos com as crias, tomada
de amores por eles, e depois assistia a venda deles como se fossem reses...
- Era muita maldade para quem criara!
Tia Bonifácia tinha razão, com seu coração de ouro,
apegando-se aos meninos que ela vira nascer e criara, alguns deles, nascidos na
viagem e trazidos quase mortos do posto de Passanha.
Geralmente índios Botucudos, Coroados, Malalís e
Monoxós; todos apreciadores do bicho da taquera, uma larva branca que os
bacuris apreciavam e pediam para cozinhar.
Tia Bonifácia acabou aprendendo com os índios que o
tal bicho, alem de alimento, servia depois de preparado, como pasta para curar
feridas; remédio tiro e queda...
- Então foi o tio Chico que puxou o cordão?
- Que cordão?
A fileira dos parentes Mendes Campello que partiram
para a Mata...
- Parece que sim, com eles outras famílias de Catas
Altas, tais como:
Os HOSKEN, LACERDAS, MONTEIRO OLIVEIRA, MONTEIRO DE
BARROS, PEREIRA d’AVILA, MUNIZ, e tantas outras que seguiram os Campellos.
- Gente corajosa e aventureira!
- Corajosa nada!
Necessidade de sobrevivência, pois em Catas Altas começou a
faltar trabalho e terra.
O jeito era procurar onde havia com fartura, solo
fértil.
No principio, até com os índios eles disputaram as
terras, a maioria das vezes, tendo que sair correndo da sanha dos Botucudos;
tribo das mais bravias da região.
Bonifácia tinha pavor deles, pois, o próprio marido
propagava na região da Mata, que sua mulher criava os “mi’ri “.
Conhecendo palavras do Tupí-Guaraní, os índios do Rio
Doce olhavam para ela com certa reserva e chamavam-na de: “Muçurana“
Depois de certo tempo, os próprios índios contaram a
razão do nome:
Muçu é a mesma coisa que reptil e Rana a tradução de
guerreira ou encantadora de cobras...
Como havia aprendido com os índios capturados em Peçanha
a arte de manipular remédios da flora, era tida por eles, como uma “pa’yé“
- Então era verdade que o tio criava índios para
depois vendê-los?
E eles submetiam a escravidão como os negros?
Claro! Com bom
trato e às vezes chicotada, até cavalo xucro agente amansa, minha filha!
Quer um exemplo: Zéfa e Nhana são purís, crias da
Bonifácia que chegaram no Retiro sob o laço e chicote; pela amostra você vê
quanto era eficiente os métodos de sua tia.
Na Cachoeira, Chico e Bonifácia mestiçavam o gentio
com africano, como mexido em fogão; dando crias de cor parda, perna fina,
cabelos corridos e olhos castanhos.
Gente apreciada não só para o trabalho, como também
para os prazeres da cama, pois perdia no acasalamento, o bodum dos negros.
A apuração da raça, além de apreciada pela aparência,
era desfrutável ao gosto do comcúbito.
- Então, Zéfa e Nhana tem a mistura destas raças?
- Negra dos Bantus de Angola e vermelha da grande
nação Tupi.
- Como é que o senhor sabe?
- Bonifácia conhecia as crias da fazenda, como as
suas próprias; ela era capaz de lembrar e nomear as mães, mesmo decorridos
vários anos.
O pai, ainda era mais fácil, pois lá no retiro, o
Chico só acasalava negras com o seu reprodutor escolhido:
Baptista, negro de 1,85 metros de altura,
pesando 7 arrobas de músculos e ossos; este não era o seu nome de batismo,
recebera o apelido depois de adulto, já como garanhão.
O nome veio da razão dos batismos que ele dava às
negrinhas virgens na senzala.
Tio Chico concordava com este tipo de acasalamento?
- Ora se concordava!
Era ele mesmo que determinava, pois queria as crias
sadias e parracudas...
- Então Miúda, não é filha dele?
- Certamente que não, pois o tamanho dela negaria a
paternidade.
- Corre boatos que o Baptista deixou uma descendência
de quase 100 filhos, é verdade?
- Ninguém vigiava as senzalas depois de fechada
durante a noite, de maneira que na escuridão seria impossível dizer, quem era
pai de quem, apesar dos mais fortes, como Baptista, dominarem o reduto.
O “marruá“ valia pelo que as próprias negras comentavam,
apesar de pesadão para a lavoura e lida com animais.
Entretanto, era ele que levantava carros de boi nos
atoleiros; colocando-se de um lado da mesa do carro, contra 4 do outro.
Diziam que ele conseguia derrubar um boi bravo com um
só murro no testeiro do bicho; era bater e cair de joelhos...
Toda a escravatura tinha respeito e até medo dele.
Magdalena lembrou do negro Zaga, que acompanhava
Edward, associando a imagem dele, com Baptista.
- Será, que Zaga era filho do Baptista?
Na sua mente ela via o Baptista semelhante ao Zaga o
que não seria impossível da paternidade dele, tendo em vista os inúmeros
escravos do Retiro, vendidos à Mina do Gongo.
Magdalena voltada às suas imaginações, não viu nem
ouviu a mãe perguntando:
- Que conversa animada é esta com seu pai?
Havia razão para a pergunta, pois pouco conversava o
capitão Thomé com seus filhos.
O pai está contando casos dos tios, Chico e
Bonifácia...
Sentado na varanda do fundo, lugar predileto para
pitar, o capitão Thomé com os pés sobre um banco, alisava uma palha para fazer
seu pito.
O canivete corria sobre a palha, como se afiasse
sobre pedra, indo e voltando, sem que o capitão desse pela finura em que
chegara a palha.
Todas as tardes depois das Ave-Marias sentava naquele
mesmo lugar e geralmente ficava calado, vendo e ouvindo a esposa Rita, rezando
o terço.
Magdalena,
observava o pai na sua tarefa manufatureira de cigarros, colocando-os
depois de prontos, numa peça antiga de manteigueira.
Respeitando a reza de dona Rita, ninguém falava puxando
assunto, até que ela desse sinal do término do terço.
Era ela mesmo que anunciava o fim da reza, geralmente
dizendo para quem rezara naquele dia, data de aniversário de vida ou de morte
de seus parentes.
- Tempo perdido de sua mãe, Magdalena!
Quem não andou certo nesta vida, não andará certo
depois da morte...
- Que é isto, Thomé!
Rezo inclusive para Donana sua mãe, que foi uma
santa...
- Santa não precisa de reza, Ritinha!
Já ganhou o
céu com todos os méritos de sua
virtude...
- Mas, e para
seu pai, capitão Paulo?
-Ah! Para os homens você não pode deixar de rezar,
ele ria pois conhecia seus próprios
pecados e do pai, tantos eram os filhos
naturais...
- Mãe, quem são os pais da sua cunhada Manuela
Umbelina?
- O Francisco e
a Bonifácia Emerenciana Gomes Pereira.
- Qual deles é filho do Thomé das Letras?
- O Francisco, com o
mesmo sobrenome, Monteiro de Oliveira...
Todos descendentes dos Chassins, Godoys e Gagos.
Por que vocês são tão amigos e ligados a eles?
Por via dos casamentos em família e amizades desde o
tempo de meninos.
Dos dias que passávamos na Cachoeira de Santo
Antônio, dos banhos e brincadeiras.
Tia Bonifácia como nós a chamávamos, não permitia que
tomássemos banho na cachoeira, alegando que era impróprio e indecente para nós
meninas.
Mas, quando víamos o Fernando, Francisquinho e o João
dirigindo-se para as quedas, não resistíamos aos apelos deles e seguíamos
atrás.
Era irresistível o convite para descer nas pedras
lodosas daquele escorregador natural.
Foi nadando lá que conheci o Thomé, o capeta como era
chamado, por molestar principalmente a nós meninas.
No principio, tínhamos ódio de suas brincadeiras,
depois ele mesmo vendo que em vez de atrair, espantava com seus modos, mudou de
tática e abrandou seus ímpetos...
No Verão, todas às semanas visitávamos tia Bonifácia,
pretexto para nadarmos com as meninas: Lucinda, Rita e Ana Maria.
- Então o pai era um capeta, mãe?
- Se era!
- O rabo cresceu, cresceu tanto, que hoje não tem como escondê-lo...
- Ou mãe, a senhora tem coragem de falar assim do
pai?
- Todo homem é assim, minha filha!
- Ah! Garanto que meu Eduardo não é, nem o padre
Francisco...
- Este veste saia, tô falando dos pintos calçuldos...
- Você ainda pensa no inglês, filha?
- Para a
senhora confesso que sim; não posso
mentir.
Mas para o pai, finjo que o esqueci...
- Então nem a mim quero que você confesse seus
sentimentos amorosos...
Mudando de conversa, Magdalena perguntou:
- Mãe, eu estou curiosa, como nadavam lá na Santanna,
na Cachoeira e na fazenda do Engenho da tia Anna Clara?
- Com vestidos, sobre calças longas justas, amarradas
nos tornozelos; colando o tecido molhado na pele, deixava ver as formas como se
não estivessem compostas.
Era por isto que a Bonifácia e eu não gostávamos que
as meninas nadassem com os meninos maiores.
Pandenga que nós mesmas não sentíamos nenhuma
maldade, pois os menores até nadavam nus.
O perigo era os velhos quando ficavam sabendo das
nossas peraltices, desobedecendo as
recomendações...
O banho nos rios, principalmente no Verão,
transformava-se em brincadeiras, sem necessidade de esquentar a água ou
espremermos nas bacias, tolhendo os movimentos.
No Inverno, só os corajosos na parte da tarde
conseguiam nadar nas fazendas da Cachoeira e da Santanna.
Quando não conseguíamos montaria, andávamos a pé
descendo o leito do rio Maquiné, até a fazenda.
Descalços, ferindo os pés nos seixos, procurávamos
saltar de pedra em pedra, o que às vezes provocava escorregões espetaculares
nas pedras lodosas.
Nos pocinhos, extasiávamos com os lambaris e piabas
tentando pescá-los com represamento da água.
- Sua infância foi muito alegre, não foi, mãe?
- Tanto como a sua, filha!
-Por que o pai não conta como à senhora as suas
histórias de infância?
-
Falta de tempo, alem disso os
homens não são apegados ás coisas passadas.
-
- Por que há tanta confusão entre o pai e os outros
Thomés?
- Sempre houve muitos Thomés em Catas Altas e um em
particular, marcou época, o Thomé
Monteiro de Oliveira, apelidado mais tarde como Thomé das Letras, que era
casado com dona Anna Maria Valentina; o casal também tinha um filho com o mesmo
nome do pai e sucessivamente os filhos
homenageavam o patriarca da
família Monteiro de Oliveira.
O tal Thomé das Letras chegara quase a se ordenar
padre, daí sua cultura e o apelido como ficou conhecido para distingui-lo dos
outros.
A fama dos
Monteiros de Oliveira vem do sangue herdado dos Antão de Leme e Felipe Gago.
Desbravadores, e fundadores da cidade de São Paulo,
tal como o companheiro padre Manoel da Nóbrega nos idos anos de 1.750.
Esta gente seguindo João Ramalho, ajudaram a erguer
os alicerces da Piratininga.
- Mãe, conta pra mim:
Como é que a
senhora fica sabendo de tanta coisa?
- São histórias de família, passadas de boca em boca,
principalmente pelo tal Thomé das Letras, cultivador das raízes das famílias de
Catas Altas.
- Aqui durante vários anos, foi o fim das entradas
para o Norte e Leste; pois as matas e as doenças não permitiam penetrações, não
se falando dos índios que dominavam toda a região circunvizinha.
Com esta barreira pela frente, os habitantes
começaram a se casar por aqui mesmo, formando quase uma família só, de poucos
troncos.
- A senhora guarda tanta coisa da sua origem, por
amor aos antepassados, ou por vaidade?
- Pelas 2 coisas que afinal se resumem em l única: Amor...
- Eu acho lindo preservar histórica das famílias, é
pena não podermos buscar nossas raízes até Adão e Eva....
- Bem que São Mateus tentou esta façanha com a
genealogia de Jesus, indo até ao antepassado mais distante, Abraão.
Veja filha, todo este interesse da sua parte por suas
raízes, é conseqüência de seus estudos em Ouro Preto ; o
ensino amplia a visão e até mesmo a valorização do amor com a distância...
A conversa
entre as duas enveredou por outros caminhos e a mãe perguntou:
- O que está se passando entre você e Eduardo?
Ele deixou de escrever e procurá-la?
- O que a senhora queria que ele fizesse, depois do silêncio a resposta que ele pedia?
- Há um ditado, filha!
“Quem espera sempre alcança...“
Se você tem mesmo um grande amor por ele, convença-o
a converter-se à nossa fé e seu pai mudará de opinião.
- Ele é igual ao pai, parecem mulas empacadeiras.
- Você sabe que a fé remove montanhas, peça à Deus
esta graça...
Magdalena sentia que às vezes a mãe estava ao seu
lado, porém não tinha coragem de ser sua aliada contra a vontade do marido.
Aquele preconceito religioso estava sendo obstáculo a
muitos namoros, que surgiram com a presença dos ingleses na região.
No olhar e proceder da filha, dona Rita via uma
magoa latente...
............................................................................................................................
A Primavera de
1.848, além das flores, trouxe pesadas chuvas
dificultando o trânsito pelas estradas da região.
Até as tropas descansavam esperando uma estiagem para
voltarem a cruzar os caminhos.
Não só Catas Altas sofria a inclemência do tempo, a
zona da Mata inteira padecia sob as chuvas contínuas.
Em meados de Outubro, Magdalena teve notícias que
Edward estava na Mina de Quebra Ossos e operando também no arraial do Arranco Toco, depois viria para o
Morro d’Água Quente.
Certamente conforme combinado, estava conjeturando a
maneira de realizar os planos do casamento; infelizmente para ela, de uma
maneira indesejável...
O sonho de desfilar de véu e grinalda pela nave da
matriz, ia desaparecendo.
Sua decepção apesar de grande, não mudava sua
obstinação de casar-se no fim do Ano.
Durante as noites, permanecia insone e o segredo
alimentando os pensamentos; ela tentava na costura, afastar suas apreensões de
rebeldia.
Mas, como afastá-las se nem o enxoval pudera fazer!
Era visível o
seu emagrecimento, culpa segundo
ela, de suas atividades sociais; escondendo o real motivo.
Em novembro
através do Bull, ficara sabendo que Edward já estava com casa montada na Vila
dos Ingleses do Gongo Soco e que a data combinada para às bênçãos matrimoniais,
seria a mesma.
Com a falta de
contato e correspondência, Magdalena não ficara sabendo da morte de Anne
Jeferre em 26 de Agosto, pessoa que
contaria como aliada e amiga na vila dos ingleses em Gongo Soco.
Morte prematura, pois contava apenas com 46 anos!
Muito nova para ser levada desta vida, ainda mais,
distante dos seus na Inglaterra.
Com sua morte, o marido Jeferre ficara viúvo e o
menino filho de Edward, órfão pela segunda vez.
John Hosken deveria estar num estado lastimável, ele
adorava a mãe adotiva que cuidara dele, desde o primeiro dia de nascido.
Magdalena
apesar de não conhecer Anne, chorou profundamente a perda da pretensa sogra.
Anne Jeferre seria a sua ancora quando fixasse residência na mina do
Gongo.
Quanta coisa ruim não estava acontecendo!
Seria tudo aquilo um castigo de Deus à sua
desobediência ao pai e aos preceitos doutrinários da religião?
Anne, que fizera o papel de mãe preparando o seu
enxoval e montado a casa para Eduardo, tinha partido...
Magdalena tinha um profundo respeito e gratidão por
aquela figura humana, que Deus levara...
Ela se sentia culpada e pagando caro por seus
sentimentos egoístas.
Ultimamente rezava com toda a fé pedindo perdão a
Deus, achando que contrariava com seu amor a um anglicano, o que os padres condenavam.
Nesta hora de incertezas, levava às mãos ao camafeu
com o retrato de Edward e dizia:
“ -Nós seremos felizes, Deus não pode estar contra
quem ama...“
A situação piorou ao saber que o viúvo Jeferre tinha
voltado para Inglaterra. um amigo a menos com que poderia contar quando fosse
morar na mina dos ingleses.
Jeferre não suportando a viuvez, pediu demissão à
Brasilian Mining Association.
Edward e o filho John passaram a revezar moradia
entre a casa de hospedes do Gongo-Soco e a do Morro d’Água Quente.
A vida complicara para o solteirão inglês, tendo que
olhar para o filho de 9 anos, apesar da ajuda de Genoveva.
A negra não tinha nenhuma autoridade sobre o menino e
os estudos dele, começaram a ser afetados por suas viagens constantes.
Durante a noite, pensando na situação do filho órfão,
sentia-se inteiramente culpado pela desdita do menino.
John perdera a mãe verdadeira, no dia que nascera
como também o pai; agora pela segunda vez, perdia os pais adotivos que o
criaram.
Órfão de pais por 2 vezes...
Quanto fora irresponsável convivendo maritalmente com
Antônia e da união,
consequêntemente gerarem o
filho...
Longe de sua mente em rejeitar o menino, era a
consciência pesada pela maneira como tinha que deixá-lo entregue aos cuidados
de terceiros, uma negra como Genoveva, completamente ignorante.
John passara a ser um estorvo ao seu trabalho, pois a
medida que crescia, não obedecia a ama e
o pai tinha que levá-lo para onde viajasse, entusiasmando-o pela companhia do
pai.
O menino vestia-se da mesma maneira paterna, com as
roupas de minerador, botas e capacete, percorrendo as regiões da serra do
Caraça.
A cor morena queimada pelo Sol, dava ao rosto
trigueiro, um aspecto sadio, fruto da vida de liberdade que passara a ter.
Por mais extensas que fossem as viagens, ele nunca
reclamava, melhor seria agüentar as feridas causadas pelas montarias, que a
prisão dentro de casa.
Viajando, ele conhecia novos lugares, novas pessoas e
o pai instruindo-o sobre o que viam: Flora, fauna e principalmente pela
geologia do solo.
Aprendera imitando o pai, a apanhar amostras de
pedras e examiná-las, como se entendesse da constituição química e física da
amostra.
Quando não recebia a atenção do pai, recorria ao Zaga para saber de que natureza
era o mineral em sua mão.
Rapazinho, cavalgando lado a lado sobre os animais,
ninguém poderia desconfiar que ele fosse filho do estrangeiro.
Um de olhos verdes e cabelo cor de ouro, falando uma
língua que poucos entendiam, o outro bem moreno de olhos castanhos, conversando
na mesma língua estranha aos brasileiros.
Quando o mocinho perguntava o nome de uma árvore ou
vegetal diferente, o pai passava a pergunta para o negro, conhecedor de toda a
flora da região.
- Zaga, fala prá eu e o John o nome árvore ali,
apontava em direção.
- Jacarandá, capitão! Peça boa prá carapinteiro fazê mubia...
- Não carapinteiro Zaga, “maraceneiro...”
Algumas palavras ainda confundiam na pronuncia e na
grafia exata ao minerador inglês.
Desviado da escola e ouvindo nomes errados, John
mesmo assim ia ganhando a sabedoria do homem do campo, não obstante, o dialeto
banto que mais ouvia.
Prestando atenção no que o pai e Zaga falavam e faziam, ia cada vez mais
ganhando experiência na área da mineração.
Escola diferente, pois não exigia tempo integral assentado em bancos de salas de
aulas, repetindo a mesma coisa que a mestra mandava.
Se na escola o que entrava por um ouvido e saia pelo
outro, no campo o aprendizado ficava gravado na memória, sem nenhuma necessidade
da cantilena repetitiva...
A sabedoria do pai e do Zaga eram diferentes, porém
bem mais fáceis de serem guardadas, pois tudo era concreto aos olhos.
Aos sábados, quando os ingleses descansavam e ficavam
em casa, o pai mandava o John escrever os nomes das coisas que vira durante a
semana, ou mesmo discorrer sobre o que mais admirara.
Com o auxílio do dicionário que a mineradora
presenteara a Edward, o filho desfazia as dúvidas e a grafia certa das
palavras.
Tentando corrigir os exercícios do filho, Edward
também se favorecia com o aprendizado da escrita portuguesa.
Bem mais cedo que esperava, Edward sentiu a melhora
de comportamento do John, tanto no proceder, como no interesse pelas coisas que
eram úteis; principalmente a escrita, que ele via a necessidade de aprender.
As andanças de Edward pelas faldas do Caraça chegaram
ao conhecimento do capitão Thomé Campello.
O godeme como era conhecido pelo povo, andava prá
todos os lados com um menino que diziam ser filho dele.
A boca pequena, falavam:
- Comé qui capitão vai dá a minina pr’ele, se o memo
anda fazendo cria como touro nos pastos?
Era mió dexá a fia sortera como rês tresmaiada,
qui juntá ela
cum touruno!
Ai do godeme se ficá pressiguindo a minina!
Agaranto qui capitão toma jeito...
- Como ele vai
separá a minina do godeme?
- Capitão manda ela se juntá ao tio Chico lá na
Mata...
- Uai, Chico Campello partiu?
- Cum muié, fios e toda a escravatura!
- Gentes, e as terras do Retiro?
Capitão Tumé tá incumbido de vendê elas...
- Nossa! Catas Artas tá secando como brejo rasgado...
- Entonces sô Chico
aprumou memo?
- Com tudo que tinha; e agora quem vai criá nego prá
roça e minas?
- Ele memo uai, lá na Mata é mais fácil criá nego...
Tô sabendo que as terras do Abre Campo é uma
imensidão e na beira do Rio São João do Matipó, dá espiga de mio, de dois e
meio parmo...
- Hum! Uma andorinha nu faze Verão, mas ancê vai vê a voação depois qui ele assentá
por lá e começa a chamá a irmandade...
A famia do capitão é qui tá com razão, pois o ouro
acabô, nego nu tem maise, prá lidá com enxada, tudo aqui tá mingando... “
Com o tráfico negreiro impedido pela Inglaterra, a
fonte do sô Chico e dona Bonifácia minguara, quem sabe eles conseguiriam
domesticar índios para que substituíssem
os negros?
Muita gente em Catas Altas reclamava a falta de trabalho, daí a
partida das famílias para outros lugares.
A partida do sô Chico e dona Bonifácia, era prenúncio
de uma época que mudaria completamente o modo de vida, não só dos habitantes da terra onde nasceram,
mas também dos brasileiros.
A falta deles era sentida em todo arraial,
principalmente por dona Rita Benedita
nos domingos, quando recebia depois da missa, a visita de todos os familiares.
Por ser livre e sem compromissos com etiquetas
sociais, algumas pessoas achavam-na mal educada, para não dizer bronca, o que
não era certo, pois tinha conhecimentos admiráveis da flora medicinal.
Com as plantas, fazia porções milagrosas, aprendidas com os índios que o marido preava
nas terras de Peçanha.
Dos bugres, herdara cohecimentos da eficiência das
plantas curativas, nas diversas espécies
oferecidas pela flora:
A quina, o boldo, capeba, carqueja, jenipapo, mamão,
óleo de copaiba, poaia, poejo, romã, salsa, urucum e quantas outras que
aprendera com os índios.
Os partos mais complicados de suas escravas era ela
mesma que fazia à maneira índia, mergulhando a parturiente nos poços formados
pela cachoeira de Santo Antônio.
Processo salutar e higiênico, tanto para a
parturiente, como para o feto, ambos lavados pelas águas que corriam puras
sobre as pedras.
De cócoras sobre os rasos remansos, o menino vinha
escorregando nas mãos da própria mãe; o choque térmico despertava a criança
para o mundo de Sá Bonifácia.
Quando Chico Campello falou em partir, ela bateu o pé
contra a mudança para a zona da divisa entre
Minas e o Espirito Santo.
Depois que o marido prometeu em encher de “Kiris“ a
casa em Matipó, ela concordou em fazer a mudança.
Carinhosa no trato com as crianças, os meninos
adoravam a velha, até naquela brincadeira de apontar para a genitália dos
meninos e dizer:
- Pra que estas muxibas?
Vamos cortar e dar pros cachorros...
Os meninos levavam as mãos sobre os órgãos e saiam
correndo para longe da velha.
Ao voltar da corrida espavorida, ela chamava o menino
e retirava de um embornal dependurado da cozinha, uma fatia de rapadura e
dizia:
- Meu bacurí, ninguém vai cortar suas pelancas!
Bacuri segundo o marido, na língua Tupi era “ Waku’ri
“ que traduzido significava Menino.
Martinho Martins Lourenço foi um dos que mais sentiu
a partida do casal, pois eram eles ótimos fregueses do seu armazém, além de
amigos.
Bonifácia sabia do apreço do português pelas mulatas e mangava com ele oferecendo
crias mocinhas em troca dos artigos mostrados no seu estabelecimento.
- Ah Sá Bonifácia, não me comprometa com Donana!
A senhora sabe da brabeza dela e do ciúme que ela tem
quando elogio uma mulher...
Rindo, vendo o português vermelho, acrescentava com
as suas provocações:
- Ora sô Martinho, qual português rejeita tão bom
negócio?
- Eu, Sá Bonifácia!
Perco boas compras em troca de assossego...
Suas crias são famosas e deveras mui lindas, porém
indigestas para este velho e humilde lusitano...
Bonifácia merecia uma atenção especial, pois era uma
das maiores compradoras do armazém, atendida geralmente pelo próprio dono.
Terminada as compras, quando ia saindo, o
português gritava do andar térreo onde
localizava a venda no sobrado:
- Dunana, ou Dunana!
Temos em riba café prá Sá Bonifácia?
- O que queres homem?
- Pergunto se temos café prá Sá Bonifácia?
- É claro filho de Deus!
Que seja bem vinda ao nosso humilde lar...
Era praxe Donana perguntar o que seu marido queria,
pois prestando atenção na fala da resposta,
sabia se ele desejava mesmo fazer agrado ao freguês...
Quando sô Martinho perguntava: “Temos ou não temos;
ela teria que responder, não. “
Ao contrário, quando dizia: “ Temos café ai em riba, ela deveria
responder, sim “
Alguns mais íntimos do casal sabiam daquela artimanha
do português para adoçar a boca da freguesia, e as vezes brincando, eles é que
gritavam lá de baixo para Donana.
- Oi Dunana, temos café com quebra-quebra aí em riba?
Sorrindo a comadre esperava no nível do piso do
assoalho, a subida dos amigos.
O português era cheio de truques, como ensinava a
velha escola comercial da santa terrinha.
Sá Bonifácia, convidada para passar uma tarde com
Donana, ficou implicada com a quantidade de calçados espalhados pela casa
e propriedade.
Primeiro achou que era desmazelo, depois vendo que
sempre ficavam nos mesmos lugares atrás das portas, perguntou se aquilo era simpatia.
- Simpatia nada,
Bonifácia!
É mania de gente velha, trocando calçados para cada
lugar onde pisa...
- Como assim,
comadre?
- Martinho quando levanta, põe um chinelo, depois na
porta da cozinha coloca um tamanco para ir regar as verduras.
Volta do quintal e calça uma botina se vai a missa,
se vai sair a cavalo põe a bota de cano alto.
Volta dos passeios e veste uma cômoda alpercata para
atender em pé a sua freguesia.
Ao fechar o comércio, calça uma sandália para dar ar
aos pés, o devido descanso por um dia ereto junto do balcão.
- Meu Deus, que desperdício de dinheiro!
- Ele diz que está fazendo economia...
- Como fazendo economia se usa tantos diferentes
calçados?
- Mas realmente faz, pois durante todo o resto da sua vida, nunca mais trocou os que estão aí...
Mania higiênica Donana!
Com tanta troca, não esquenta os pés provocando o
calor do chulé e nem chega a gastar os calçados!
Aquela conversa sobre intimidades dos casais, levou
Donana a perguntar a razão por que Bonifácia não estava indo à missa celebrada
pelo padre Francisco.
O vigário Donana, proibiu o Chico de comungar
enquanto preasse índio, o que ele não concorda, pois vive de suas crias e vendas.
Dai nosso sumiço das missas do padre Xavier.
Mas, e quando vocês estão em pecado?
Quando podemos, vamos ao Caraça ou a igreja de Santo
Amaro em Brumado, lá ninguém faz restrições ao nosso modo de vida...
Se encontro com sô vigário, é uma vexação, pois não guardo mal querença
com ele, mas fica o constrangimento.
O pior é quando eu e o Chico estamos juntos e damos
de cara com ele; ambos se cumprimentam, mas não mantém sustentação de conversa,
ai, sou obrigada a fazer que os dois se assuntem...
- Estamos sabendo que vocês estão querendo mudar de
Catas Altas, é verdade?
- Verdade, verdadeira, Donana!
- Então tá na hora de acabar com a morrinha com sô
vigário...
- Até que tenho tentado Donana.
A querela vexa toda a família e não sabemos por que
os dois ficaram tão turros!
Corre a boca pequena que a indiferença é pelas vendas
de bugres, imagina se padre vai se preocupar com alma de pagão?
Se vendemos vaca, burro e porco, por que não vender o
bicho do mato, que é tudo a mesma coisa!
Com a proibição do tráfico de escravos, onde Chico ia
arranjar braços para as minas?
Padre Francisco até que deveria ficar contente, pois
o Chico tornou-se verdadeiro missionário, pegando pagãos entre o gentio e
transformando-os em cristãos...
Pensando bem, se não há mais negros, há índios que
necessitam da caridade dos cristãos!
Coitadinho deles, no mato sem roupas comidas e teto!
Como as duas fontes de renda do Chico estavam
secando, inteligente como era, viu que teria que aumentar a prole escrava que
ainda lhe restava.
Consultou entendidos: A mulher e até uma negra de
confiança...
O melhor conselho surgiu da negra Feliciana que
estava encostada para o trabalho.
- Negro Nhô Chico,
quando bebe brucutaia cum mindoim paçocado, vira capeta e cresce o
chifre entre os cambitos; é disso qui muié moça gosta.
- Onde vou arranjar brucutaia?
- Ancê nu sabe, Nhô?
No alambique, a primeira distilada com cheirinho de cana!
Ancê memo tem aqui e das boas!
- Mas só isto, Feliciana?
- Ou Nhô, pra mexê com o chifrudo, bota catuaba nela
e ancê vai vê qui porrete!
Com a senzala mais alegre, os negros atribuíam a
bondade de Nhô Chico ao coração
envelhecido; amaciado pelos anos...
A cachaça excitava os ânimos e o complemento
afrodisíaco, multiplicava os resultados.
O mel de cana como Bonifácia dera nome, sortira
efeito desejado.
Menos de 1 ano após o santo remédio, 20 negras
estavam embuchadas, andando pela fazenda de pernas abertas de tanto peso.
Foi um amojamento geral.
Chico andava eufórico, passando receita para quem
constatava a eficiência em sua senzala.
O que ele fingia ignorar, era a promiscuidade
campeando sob efeito do Mel de Cana.
Tios e sobrinhas,
irmãs com irmãos que deitavam numa mesma tarimba, seviciando menores,
como se natural fosse o acasalamento.
A cada escrava que paria, Sá Bonifácia premiava com
veste nova e um mês depois, aconselhava as escravas ir trocando o seu leite materno, por leite de
vaca.
Quando acontecia uma diarréia, provocada pela
desmama, a criancinha era colocada no
peito de outra escrava, para que cessasse a caganeira, ou na falta de uma ama
de leite, chá de folha ou casca de araçá, medicamento adstringente para
fechar a saída.
Meninas de 13 e 14 anos, carregavam recurvas seus
bacuris a moda indígena, dependurados nas costas.
Fazia dó, ver
as carinhas ainda frescas, criando filhos para Nhô Chico...
Um doutor visitando sua fazenda, perguntara a razão
de desmamarem os bebês tão cedo.
- Ah doutor,
então o senhor não sabe que o aleitamento é vacina contra a parição!
Muié que amamenta não prenha; e nós não estamos aqui
pra embelezá cativas e crias...
As negras quanto mais crias tiverem, mais preciosas
elas se tornam...
Os falsos conceitos como lidar com as escravas,
limitava os anos de vida fértil delas, mas ainda não havia estatísticas para
comprovar os fatos...
No último ano
ainda morando em Catas
Altas , Chico
queixava-se na porta da igreja de Nossa Senhora da Conceição:
- Eta ano ruim!
Até na parição da senzala a safra caiu e morreu 2
peças!
- Só 2, compadre Chico?
- Você queria mais, desalmado?
Ele explicava que as mães eram novas demais e
acabavam rebentando-se...
- Sá Domenia está perdendo a pratica, Chico?
Ela fez tudo que sabia, mandou soprar bexigas, vestir
camisa do pai pelo avesso, besuntou de azeite, deu rapé pras negras cheirar e
enxugava o suor com água fria de botão de rosa.
Tudo inútil, não teve jeito, 4 peças em 2 barrigadas!
Prejuízo e tanto!
Alguém maldosamente da roda argumentou:
- Vai ver que Sá Domênia não vestiu nas meninas a
camisa certa!
Todos sabem que na Cachoeira, a camisa certa é a do
Baptista e ela dá para vestir 2 negras de uma só vez...
- Como vocês falam besteira, meu Deus!
Negro não veste camisa, eles não suportam agasalhos...
- São as
minhas camisas que Sá Domênia manda buscar...
Uma risada geral no adro da igreja, perturbando o
padre na sua prática.
No retiro da Cachoeira dos Barbosas, quando surgiam
visitas, os proprietários faziam de tudo para contentá-las.
Uma das coisas prediletas de Sá Bonifácia era mostrar
sua riqueza.
Mandava juntar as negras prenhas na frente da
varanda, tal como fazia o marido mostrando suas vacas mojadas; aquilo para
alguns mais íntimos, era uma maneira de insultar o Chico, pois as prenhas mais novas, geralmente
carregavam no bucho, o sangue dos Campellos.
Chico quando ia prear índios, ou comprava escravos,
era ele que escolhia o que levaria para Catas Altas.
Economicamente dava preferência para as mulheres embarrigadas, pois fazia negócio prevendo o
dia de amanhã.
Ao bater os olhos no rebanho, fazia questão de
escolher em pé, andando em volta delas, mirando o rosto, seios e bundas.
As que não miravam em seus olhos e as de bunda
murcha, ele separava de um lado como
refugo e as encaradeiras, se juntavam as bamboleantes.
Era um gosto ver o homem com os olhos fixos, sem
piscar, analisando as negras para Sá Bonifácia...
Sua experiência e seu olho clínico era infalível e a
esposa só tinha elogios pelas escolhas
acertadas.
Olhos benditos!
Nove meses depois, duplicava o rebanho e
estranhamente, até mulatinhos de olhos claros nasciam na senzala.
O Chico comentava sorridente:
- Veja Bonifácia, a sorte que você teve?
Escolhi e paguei sem saber que estavam prenhas!
As curumins chegavam desbarrigadas e caras de
meninas, 9 meses depois estavam no mojo...
Como proprietário, era seu atributo conhecer
primeiro o seu rebanho...
Com que prazer ele via as meninas compradas, dobrando
de peso e volume na primazia de seus ofícios, Prenhar...
Após o primeiro parto, a negra ou a mulata, tinha o
direito de escolher o seu macho, podendo ficar entre o Baptista ou outro negro
com quem enrabicharia de vez...
O importante para os proprietários, era aos 11 ou l2
meses depois, estarem novamente embarrigadas.
A safra não pode ser menor do que a do ano anterior,
nunca minguar, dizia Bonifácia.
Sá Domenia multiplicava-se como parteira, (
aparadeira ) como designavam as parteiras que serviam o Retiro.
Ela exigia o quarto fechado, apenas iluminado pela
lamparina de um combustível mal
cheiroso, enchendo o ambiente de fumaça.
Com frio ou calor, a parturiente fazia a delivrança
envolta em cobertas.
Um pouco de azeite para untar a intimidade, a cebola e alho sobre o ventre, ajudaria no
milagre da vida...
Recitando orações escritas por dona Bonifácia, a
negra parturiente acabava por engolir o papelucho, para maior efeito quando a
coisa emperrava...
Se a futura mãe não respondesse aos apelos da magia,
uma porção de pólvora via oral, resolveria “explosivamente “o parto.
Por sorte, dona Domenia não falhava.
Para secar o umbigo dias após, o rapé e a folha de
bonina embebida no azeite de mamona, ou a pasta de assa-peixe.
Muitas das indiazinhas e as negrinhas que foram
levadas para Sá Bonifácia,
experimentaram o seu primeiro homem nas viagens do Mato Dentro para
Catas Altas.
Inocentes,
saiam das senzalas ou das Matas de Peçanha, para os braços de seus
compradores.
Sob a luz da lua ou das estrelas, eram violadas,
conhecendo o amor sem amor.
Sinhozinho que dera vestes novas e fora tão bonzinho,
transformava-se em algoz, sem que elas soubessem por que fazia aquilo com
ela...
Naquela viagem que nunca chegava ao fim, vinha a
tristeza por achar que assim seria os seus dias futuros: Andar, dormir, andar,
dormir, sem nunca chegar...
Andavam durante o dia, com Sol ou com chuva, à noite
se não as molestassem; dormiriam o sono pesado de quem a pé cortava estradas e
vaus de rios...
Uma nova vida nascia para ela e dela...
Até quando, seria
realmente dela a cria que cresceria em seu ventre?
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Era habito do
Dr. Moreira levantar cedo; tomava seu
café da manhã juntamente com a esposa Maria Brasilina, mulher de ilustre
descendência Alkimin; ambos saiam ao alvorecer, ela tomando rumo da igreja
matriz ao lado da sua casa, ele saindo para atender os pacientes em observação.
A exceção da quinta-feira, que atendia o colégio do
Caraça, os demais da semana, rodava pela periferia de Catas Altas.
Acabava o desjejum e já encontrava as montarias
arriadas e seu escravo Lourenço, a
espera no pátio.
O preto sabia de todos os hábitos do médico,
antecipando os seus desejos.
Dr. Moreira confiava ao negro a colheita de ervas
medicinais que ele conhecia e apanhava para que o médico fizesse as infusões.
Todos os clientes do facultativo tinham a boa vontade
de indicarem os lugares onde poderiam ser encontradas as raízes e plantas que
Lourenço colhia.
Sempre que podia, voltava para o almoço em sua
própria casa e se não voltasse a sair, mandava desarrear a besta e soltava-a no
grande quintal.
Tratada numa baia, o capim de reforço vinha da
fazenda do Engenho da Onça, que misturado a cana, dava a besta um pelo viçoso e
brilhante.
Ao voltar das visitas aos pacientes, a primeira coisa
que fazia era lavar as mãos com a água
que Rosa depositava nos
recipientes de louças inglesas.
A escrava nunca deixava o jarro sem água; qualquer
que fosse a hora mais adiantada da
noite; a negra ficava a espera da volta do sinhô doutô para virar a água...
Dona Brasilina quando o via de cenhos retraídos e a
testa enrugada, perguntava:
- O que te aflige Manoel?
- Nada de importância...
Coisas de médico de família, querendo intrometer-se na
vida de seus clientes, tal como os Anjos
da Guarda.
Imagine Brasilina, eu vestido de saia e asas!
- Anjo São Manoel, até que o nome assenta, querido!
- Mas com quem você está a preocupar?
- Com o Thomé Campello, abatido e preocupado.
- Filho demais, Manoel!
- Não, sua preocupação era outra, zelo de pai voltado
para a filha Maria Magdalena.
Você acredita que até hoje ele não deu resposta de
seu consentimento de namoro para o inglês?
Certo ou não, ele se sente numa enroscada, pois, o
namorado da filha além de ateu, tem um filho natural, o que quer dizer, talvez
tenha também uma amante...
- Ah Manoel!
Que homem em Catas Altas não tem seus pecados de luxuria?
- Ou Brasilina, você tem coragem de jogar isto em
minha cara?
Não sou santo como deveria ser todos os homens, mas fidelidade!
- Eu sei Manoel, falo dos homens em geral, não de
você em particular...
- Aí do médico que for infiel a esposa!
Você imagina, a repercussão negativa que teria
com a sua clientela?
Dos forasteiros,
ninguém conhece o passado, talvez por isto o Guarda Mor não quis ainda dar a
resposta ao inglês.
- O Guarda-Mor Thomé não tem razões, a não ser
religiosas para se opor ao casamento; com tantos filhos naturais, ele não é
exemplo para censurar o namorado da filha pela cria espúria que tem...
- Deve ser implicância do Thomé, pois já ouvi
referências elogiosas ao inglês, que além de trabalhador, tem ótima posição na
companhia mineradora.
- O que faz o tal namorado de Magdalena na Mina?
- Ajuda na administração e é responsável direto pelos
homens que trabalham dentro da mina.
Deve ser um homem de coragem e responsabilidade, pois
tem carta de Cabo de Mina.
Tenho pena da Maria Magdalena se vier a casar com o
inglês!
- Por que?
- Os riscos que ele corre mexendo com dinamite!
- Mas todos os homens correm riscos em suas
profissões, Manoel!
Veja o seu caso, percorrendo por este mundo ai
fora; de noite ou de dia, com Sol ou com
chuva, frio ou calor, você também não está
se arriscando?
- A vida é assim querida!
Eu padecendo pela inclemência do tempo e as aperturas
de médico, você sofrendo por achar que sofro...
Mulher de médico tem que ser santa, Brasilina!
Foi por isto que me casei com você...
- Só por ser santa?
- Lógico que não, eu me enrasquei também na doçura
deste fruto.
São mais preciosos do que todo o ouro encontrado
nesta Catas Altas.
O metal um dia acabará, pois não dá duas safras; já a
videira se cuidada, vicejará a vida inteira...
- O que adoçou a sua boca hoje, Manoel?
- O prazer de servir, sabendo que tem tanta gente
necessitando de mim e de ser servido, pois tenho você, querida!
Feliz sou eu, que posso conciliar o meu trabalho com
o bem estar dos outros...
- E quem está precisando de você, hoje?
Donana Martins, ontem já sentia as dores de parto, o
português me pediu para examiná-la...
Mas isto é trabalho de parteira, não de médico!
A parteira bem que estava tentando, mas o traquina
resolveu bater o pé e não quer botar a cara para fora.
- Só pode ser por medo de Sá Domenia.
Vai ver que o menino tem razão, a primeira coisa ao
abrir os olhos é a cara da Domenia!
- Como você sabe que é menino homem?
- A demora, o ventre, tudo me faz crer que é um
macho, além dos outros que nasceram nesta semana.
Rosa que ouvira a conversa, comentou com Anastácia:
“Os home antigamente sabia fazê as coisas; ora meino macho, ora fêmea, perece qui hoje
eles isqueceram como suprar! “
- Discunjuro Anastácia, chega de nêgo pru garimpo,
prá qui botá sofredô no mundo?
- Nóis percisa é de muié prá ajudá agente, muita
muié...
Assim nóis pode dividir a zafaneira...
Ancê vê! Comida dia inteiro, doce na taxa prá fazê,
vazias prá lavá, casa prá arrumá.
Quedê tempo prá nóis zuerá?
Anastácia
rebolando as ancas largas de negra saudável e parideira, saiu para a
bica do quintal, arrastando 3 negrinhos; nascidos cada um nos quatros últimos
anos.
- Lá vai a pata choca, com
os patinhos atrás!
Eta nega fia da puta, prá pari!
Inté qui perece coeio!
Uma pilha de gamelas e panelas de ferro, estavam na
bica esperando mãos para lavá-las.
“- Oh mundo
marvado!
qui só dá trabaio,
de dia, carrega balaio,
de noite, no pau arrochado.”
Começando a arear as panelas, a negra de vez em
quando gritava:
- Oh peste!
Ocê que matá, eu?
As crias soltas no imenso quintal, não ouviam a mãe
aos berros e Rosa rindo dos problemas que os filhos de
Anastácia aprontavam.
À tarde, a chuva que caia mansa, prolongaria por mais
alguns dias, no quarto dia, o Sol surgiu fulgurante enxugando o barro.
As pessoas pareciam outras.
No gramado do adro, roupas estendidas quaravam sob os
raios do Sol surpreendente.
Negras com gamelas e balaios transitavam pela grama,
estendendo ou apanhando-as .
Quem passasse o olhar sobre aquele imenso tapete
colorido de peças, notaria a qualidade
delas, tanto as de linho e seda, como as de algodão pelo chão.
Meninos desocupados saltavam sobre elas, escolhendo a
grama para ser pisada, num brinquedo de amarelinha.
Anastácia chamada para dar jeito nos meninos, gritava:
- Cupinheiras do inferno!
Pro mode que ancês nu vai pulá, na puta qui pariu ancês?
Capetas, do inferno!
Se ancês nu iscuita eu, vai iscuitá é o zumbido desta vara...
O que os meninos brincando não faziam, ela correndo
atrás deles pisava nas roupas que quaravam...
Cocinha, mucama do Cel. Emery ajudava Anastácia a por
os meninos a correr.
- Tá veno,
Cocinha!
Três diabos a me atenazar o dia inteiro...
A negra esquecia que na hora de fazê-los, nada melhor do que o gosto daquele prazer...
Cocinha ria, pois sentia no próprio ego, quanto era
bom fazer um capetinha daqueles por baixo
de Nhô...
Posto os meninos a correr, ofegante Cocinha
perguntou:
- Ou Nhana! E
a menina do Guarda-Mor, casa ou não casa
com o Godeme?
- Coroné nu qué, maise a minina bate o pé!
Vamo vê nu qui vai dá...
Tadinha, ela
lacrimina o dia intero!
Nóis nu sabe quem moia maise, se os lenços de Nhá ou
a chuva qui cai!
Minína bonita, igarsinha a Nossa Sinhora Ceição...
- Nossa Sinhora vai ajudá ela, pois ela carece e
merece.
- Você imagina!
Minina de prendas; rica, fromosa, presa nas rédias e
freios na mão do Coroné!
- Isto é vida?
- Cocinha , e nóis também nu tamo carecendo?
- Se tamo? Agente nu pode nem oia prás ciroulas dos
Nhôs!
Eu sinto um isquentamento e uma tribulança na muçumba
que vai até taio do rabo!
Ou calô mardito, ou merda de farta de nêgo danada!
Pade Xavié inda fala na “absnência“ de carne...
- Oxem! Sô vigaio fala isto é pro mode qui nunca porvô!
- Num fala assim, Cocinha!
Ocê tá perjurando o santo nome dele...
- Maise é assim memo, Nhana! Quem porva nu isquece
maise...
Ai de mim se nu tomo todo dia o chá de maracujá!
- Prá qui qui serve, muié?
- Prá fazê agente drumi em paz, assim nóis no
caí de vez no fogo do desejo!
- Disgracera de sumana sem fim!
Farta d’home nêga, é pior que sede de tropero
correndo atrás de burro desembestado na
serra!
Ah! Qui sudade do Lurenço!
Nêgo bão de fornicação, boca fechada de mudinho, mas
de mão atrevida fazendo maise qui a boca dele!
Treis trevessas de lua longe dele e do seu rapé!
Trem bão talí, basta chegá perto da boceta dele prá gente começa a ispirrá...
Trem bão talí, basta chegá perto da boceta dele prá gente começa a ispirrá...
Esturrinho mió, nem na Bahia!
As fuças da gente limpa como rio, adepois do pé
d’agua!
É pro isto qui Lurenço nu larga o pó, perece qui o
demo botô Mama-cadela com pondo dentro da boceta.
Basta uma fungada prá agente começa a viaja num sonho
estertorado e vadio de desejo.
Longe do Lurenço quando cheiro o seu pó, é memo como
se ele tivesse junto d’eu; é pro mode disto que ele dexô com eu um tiquitinho de sua lembrança...
Com Lourenço na cabeça, ela versou:
“Oh! escravo marvado,
Oh! mundão sem fim’
Onde tá infiado,
meu dengo, pichuim;
Com pade foi
batizado,
na capela do Bonfim
e na senzala arclamado,
sem asas, querubim.
Oh!
nêgo desabusado
de verga sem fim;
vorta pro seu bom-bocado,
gosto torrado d’amendoim.
De Catas Artas foi levado,
bem pra longe de mim;
hoje lá no subrado,
Sudade, só sudade ruim...
No solar do Dr. Moreira, uma negra gritava:
- Anastácia! Ou Anastácia!
Quede ocê,
criatura?
Respondendo em voz baixa:
- Tô aqui!
Eta gente
bruaca, eta calandu dos diabos!
Apanhando as roupas que quaravam no gramado da praça,
hábito cultural herdado dos portugueses, que eles chamavam,
"assoalhar" encheu um balaio
de peças e teria que voltar tantas
vezes, quantas fossem necessárias para levar o restante.
Novamente lá de dentro, novo chamado:
- Anastácia, ou Anastácia!
- Já falei: Tô
indo!
Fala prá Sinhá qui tô juntando os trapo dela no
assoalho.
- Nega burra!
Vê como ancê chama isto de trapo, quase nas fuças
dela!
Cantarolando, ainda no caminho, deu para ouvir os
últimos versos:
Sudade, só sudade ruim,
gosto torrado d’amendoim...
Com o tempo firme, a semana parecia correr mais
rápida com a agitação de tropas na Vila e os cincerros ruidosos querendo
desafiar os sinos da matriz...
Fazia falta aquela sonoridade dos cincerros:
Pling, plong,
pling, plong...
Até os chingos dos tropeiros, eram bem vindos com a
estiagem da chuva...
Catas Altas engalanava-se com o Sol brilhando sobre a
Serra.
Ao contrário de muitos lugares, o arraial tornava-se
mais agitado nos domingos.
Os fazendeiros e retireiros vinham assistir a missa
dominical, cumprindo o preceito religioso.
A praça enchia-se de gente; charretes, cavalos e até
carros de bois, esperando o final da missa.
Os relinchos dos animais e os cascos escavando o
chão, dava ao cenário uma beleza ingênua, somente vista no interior das terras de Minas.
Pitando um cigarrinho de palha, alguns poucos infiéis
aguardavam de cócoras o término da
missa.
O Sol quase a pino mostrava as sombras esgueiradas
dos telhados, onde os animais procuravam se esconder.
Na casa do Guarda-Mor, os cômodos voltados para a
Serra, estavam sombreados e a claridade
infiltrava sem vida pelas frestas das janelas; a madeira ressequida pela
exposição ao tempo, já não tinha as cores da última pintura.
Algumas tábuas das esquadrias macho e fêmea, não mais
se encaixavam deixando passar pelas frestas, os raios do sol.
Naquela ala, estava o quarto de Magdalena, dando a
janela para o braço avançado do quintal que vinha até a praça.
Da sua cama, via a serra e especialmente a passarada
sobre os galhos das árvores do quintal.
Magdalena
acordara nesta manhã de domingo, escutando um zum, zum, zun ao lado da sua
janela.
Espreguiçando indolente, ainda de olhos fechados,
ouviu Miúda conversando com alguém do lado de fora.
- “Então sô Dú chegô de minhã!“
Qui bão pra sinhazinha, ou dia fromoso!
- Ancê tá certa, é ele memo, eu vi com estes zoios ,
Zaga tocando os burros com baú nos lombos...
Levantando da cama, esperta, saiu Magdalena correndo
para a escada que ligava os dois andares do sobrado.
- Sinhazinha, ancê discarça, tá doida minína!
Vai apanhá constipação!
A beleza física da mocinha, transverberava através da
luz que mostrava a roupa íntima.
Como se fosse uma criancinha, Zefa reclamava:
- Num bota o pé nu chão, Sinhazinha!
Eu carrego ancê, fiinha!
- E verdade, Zefa!
Eduardo, chegou?
- Sô Du nu sei, mas o malungo qui anda qu’ele, tá
aí...
Se o Zaga está aqui, Eduardo também está...
- Ora Nhá! Onde tá a corda, por trás vem a cacimba...
O coração de Magdalena disparou e Zefa abraçada ao
seu corpo, sentia o pulsar disparado.
Há quanto tempo eles
não se encontravam!
- Fiinha, seu coração vai sartar!
Não podendo abraçar fisicamente a quem desejava,
apertou seus seios contra os de Zéfa e disse:
Como é bom Zéfa, como é bom esperar a quem se ama!
Permanecendo por algum tempo caladas, ambas sentiam o
pulsar da felicidade; uma pelo fogo ardendo dentro do coração apaixonado, a
outra pelo desvelo de ama.
Zéfa que vira Magdalena nascer e crescer, tinha os
olhos molhados e a voz engasgada:
Fi-fi-inha! Nu güento tanta sastifação...
Levada pela cativa caminharam até ao toucador.
- Nhá, como tô filiz, ancê é um anjo do céu!
Esta nêga tá orguiosa de tê criado ancê!
Dengosa e sorrindo nos braços de Zéfa, os cabelos
soltos pendiam para o chão em cascata;
como se fosse uma criança, a ama carregava-a e ela distante se sentindo em seus pensamentos nos braços de Eduardo...
- Nunca fartará forças prá carregá ocê, fiinha!
Zéfa penteava seus cabelos e ela parecia estar
levitando, nem ouvira o que a ama falara.
Colocando-a sobre a cama, suas pernas dobradas
deixava ver o que Zéfa só vira quando criança.
Abaixou a camisola e
compondo o seu corpo disse:
- Drome Nhá, vou acorda ancê, antes da missa...
Um perfume suave de flor de laranjeira estava
impregnado a roupa de cama.
Magdalena ouvia em sussurro Zéfa
cantando:
- Minina, minha minina,
que tanta gracinha tem,
drome, pois quem te nina,
é gente que te qué bem...
Os olhos estavam se fechando e o sono veio fácil,
confirmado por um suspiro mais profundo...
Ela ainda ouvia uma voz distante dizendo:
- E’ gente que te qué
bem...
Zéfa notou que os lábios dela se abriam num sorriso de anjo; com quem
sonhava Magdalena?
A primeira missa dominical já havia terminado, poucos
arredavam os pés do adro, movimentando-se para os cumprimentos aos amigos e
parentes.
Os sinos badalavam anunciando a segunda missa e na praça
chegavam os retireiros e fazendeiros que
moravam fora.
Confraternização semanal tão bucólica, que as vezes
inspirava o sermão do padre Francisco Xavier de França, o padre da família como
todos o consideravam.
Dispersos os fiéis, as casas começavam a se encher de parentes e as vendas
tomadas por gente falante, querendo aproveitar a vinda na rua, para
abastecerem-se do que faltava nas casas do campo.
Entre as escolhas das peças de panos sobre o balcão
do armarinho, enquanto a esposa optava por sua preferência, o marido na parte
dos secos e molhados conversava numa rodinha, bebendo a melhor caninha da
venda, escondida na parte interna.
Aquela era especial, servida aos melhores fregueses, por isto não ficava à vista nas prateleiras.
No domingo, a
féria do comércio multiplicava, e era paga quase toda à vista...
As primeiras badaladas anunciando a segunda missa,
lembrou à Zéfa que era hora de acordar Magdalena.
Carregando nos braços o jarro de louça inglesa. cheio
de água, Miúda chamou do lado de fora do quarto:
- Nhá, ou Nhá, alevanta!
Tá aqui a água prá ancê lavá.
Abrindo a porta, Zéfa que fora acordar a menina,
perguntou:
- Tá morna, Miúda?
- Perece que tá, Zéfa!
Com o jarro sobre o toalete, Zéfa derramava a água
sobre as mãos abertas de Magdalena, que ainda mantinha os olhos semicerrados.
- Acorda, minina!
A roupa tá aí passada, Nhá!
Ela espreguiçava indolente, Zéfa fez a Magdalena uma observação:
- Socê demorá muito, nu vai vê o Godeme antes da
missa...
- Ah! Meu Deus esqueci dele...
Vestindo uma toalete toda branca, confeccionada em Vila Rica , o modelo em
linhas helênicas, realçava a cintura alta e bem formada.
Combinando com o vestido, os sapatos de lacinho e
meias brancas complementavam a toalete que Magdalena vestia pela primeira vez
na sua terra.
- Ocê tá uma fromusura, Nhá!
O Godeme vai babá vendo ancê assim.
- Fala baixo e deixa de conversa, Miúda!
Alisa por
trás o vestido sem deixar rugas...
Duas mãos leves desciam por trás alisando o vestido.
- Tá como ancê gosta, Nhá!
- Coroné Thomé e sua mãe, saíram a cavalo de minhã.
- Para onde eles foram?
- Só pode ser prá Cachoeira, pois seguiram prá rua
dereita...
O perfume que passara, enchia de fragrância o quarto.
- Ancê tá igarsinha a Nossinhora!
- Não diga blasfêmia, Miúda!
- Gentes, pois nu é vredade?
- Você é cega ou boba, Miúda?
- Nem cega, nem boba, Nha; pois oio com os dois oios
que Deus me deu...
As mulheres judias Miúda, usavam túnicas e mantos e
não vestidos; Nossa Senhora era pura e eu, a mais pecadora das mulheres.
- Ancê pecadora, Nha?
- Qui pecado ancê carrega?
- Ancê é branca e pura dá cor das continhas do mar...
- Não se diz continha do mar, mas pérola....
- Minha boca nu sabe falá, pe-ro-la-la...
- Pois tenta falar certo, do contrário não vou
levá-la quando casar...
Imagine você ensinando ao Eduardo a falar o português errado!
- Gentes, o godeme fala errado?
- Não, Miúda, ele fala outra lingua e está aprendendo
a falar a nossa, tal qual seus avós quando chegaram ao Brasil.
- Uai, de onde meus pais véios vieram?
- Da África, Miúda, do outro lado do mar.
- Qui mar, Nhá?
- Ah! deixa pra lá...
Ou Nhá, ocê ainda nu tomô o desijum, comé qui vai
fazê prá nu sujá o vistido?
- Qui linda qui ocê tá!
Após o dejejum, Magdalena por diversas vezes voltou
ao quarto para mirar-se no espelho grande do toalete; cada vez que olhava,
refazia a maquiagem.
Se a mãe estivesse em casa, certamente que
perguntaria:
- Prá que tanto capricho, menina?
Só as mucamas sabiam que por trás de todo aquele
capricho, estava a presença do inglês no arraial.
Dona Rita e capitão Thomé, juntamente com os filhos:
Francisco e Maria Raymunda, foram
visitar os tios na fazenda da Cachoeira.
Bonifácia fazia aniversário naquele dia, talvez um
dos últimos que passaria em
Catas Altas , pois ultimamente, vinham falando que iriam mudar
para a mata fechada...
Zéfa contara que Manuela a namorada do Francisco,
também fora com ele comemorar a festa;
numa roupa parecendo de homem e montada de pernas abertas sobre o cavalo.
- Montaria de amazonas Zéfa, mais própria para as
mulheres!
- Ou Nhá, eu achei tão isquisita perecendo home!
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Na véspera, uma comitiva de ingleses do Gongo Soco,
chegara ao arraial e estava hospedada no
hotel do John Bull.
Através de Maria Raymunda, Magdalena recebera recado
que Eduardo chegara e marcava um passeio para encontrarem-se na baixada do
Maquiné, aproveitando a folga do domingo.
Descanso do
trabalho para os católicos brasileiros, pois os ingleses folgavam no sábado
como era de hábito na Inglaterra e no Gongo Soco.
Como companheiros do pic-nic, foram os irmãos:
Bizita, Fernando e Maria Raymunda.
No adro da igreja do Rosário, estavam os ingleses
companheiros de Eduardo: O Bull, Emery e Henewood.
Bizita beliscou o braço de Magdalena e disse:
- Olha mana!
Os ingleses com Eduardo!
Aqueles rapazes brancos, mas queimados pelo Sol,
pareciam pimentões maduros sob os capacetes
de campanha.
- Magdalena, Magdalena!
Eduardo
chamava o seu nome para apresentá-la aos seus patrícios.
Um tanto sem jeito, as meninas estavam sendo
apresentadas pelo Bull e Magdalena sentiu-se frustada, pois queria um encontro
mais solitário com Edward...
Sua vontade era estar mais junto dele, sem desvios de
sua atenção para com os outros que faziam companhia.
Ele afastou-se dos demais e pegando em sua mão
disse baixinho:
- “My darling, my
darling! “
As palavras dele suavam ternas e os olhos faiscavam de desejos e ela ouviu
depois:
- “ I love you...
Are you coming
with me? “
Era mais do que lógico que ela queria ir com ele...
Fosse para onde fosse, ela era dele e podia levá-la
para onde quisesse...
- “ Are you sure
going that way? “
Ela tinha plena certeza, queria seguí-lo fosse qual
fosse os caminhos...
Arrastando-a pelas mãos, ela seguia como podia
saltando de sandália e ele com suas botas pesadas pulando sobre as pedras.
O cascalho rolado, às vezes machucava seus pés
delicados, porém ela estava anestesiada com o contato das mãos dele e seguia
sem reclamar das fincadas nos pés, provocadas pelo leito pedregoso do riacho...
Encobertos pela vegetação ribeirinha, os dois se
afastaram dos demais para unirem-se num beijo que traduzia toda saudade e
desejo de ambos...
Ela sentia seu coração disparar em contato com o corpo
másculo do homem que amava, ele também tremia ...
Um só corpo ocupava o mesmo espaço, mas os corações
batiam acelerados mostrando que eram dois e não um...
Antes de se juntarem novamente aos demais, ele disse
para Magdalena:
- Molha sua mão e passa sobre os lábios!
Ele também apanhando com a palma da mão a água
corrente do riacho, tentava desfazer as marcas daquele beijo...
Rubra, olhos brilhando e com o cabelo um tanto
desalinhado, alisava o vestido amarfanhado, compondo-se para voltar junto do
grupo.
A água desfizera as marcas do rosto, mas não recompôs
o desalinho do cabelo.
Com as vozes aproximando-se, ela largou a mão de
Eduardo e lentamente seguiram na caminhada que empreendiam.
Os companheiros passaram a frente e eles um pouco
distantes, voltaram a dar as mãos sem dizerem uma palavra.
O calor que transmitiam um ao outro, bastava naquele
contato de mãos presas.
Seu pulso está acelerado, Eduardo!
- “Don’t worry... “
Magdalena tinha por que se preocupar, ela sentia na
apertura de sua mão contra a dele, uma coisa diferente em seu estado...
Com os cestos
cheios e os embornais a tiracolo, a caminhada ficava mais difícil na trilha
irregular da margem do riacho.
Cristalino, o Maquiné despencava da serra do Caraça,
formando cascatas e na baixada, remansos represados por pontas de lajes.
Às vezes, sumindo enfurnado sob pedras e voltando a
aparecer misterioso bem adiante espumante.
Todos descalços caminhavam pisando no leito
encascalhado ou pedregoso.
Edward admirado chegou a notar em alguns
instantes, faiscas brilhantes junto da
areia; era certamente ouro.
Nas catas mal orientadas de outrora, ficara ainda
vestígios no leito precioso.
- My God, that is Gold! Gold!!!
Gold, gold!
Right in that
moment
Nas mãos mergulhadas no espelho d’água, Edward trouxe
entre os dedos uma pequena faisca daquele metal que era a razão da sua vinda
para o Brasil.
Falando palavras misturadas do inglês com o
português, ele mostrava a todos o que tinha nas mãos.
- Sabe?
That’s gold, those are gold nugget; falou devagar pensando que entenderiam o que
dizia.
- O que é
nugget?
Lembrando a versão portuguesa, conseguiu falar: “pe
pi ta “
Terra very, very rica demais...
- Nós viemos aqui para catar ouro, ou para passear?
Magdalena sentia-se menos valorizada que o grão que o
namorado tinha na mão.
- Oh, Magdalena, você muito mais valor pepita!
Os que ouviram o galanteio rasgado do inglês, riram
da forma de se expressar dele.
Pensando que deveria pesquisar naquele lugar,
demarcava com os olhos a posição em que se encontrava e perguntou para
Magdalena:
- How far are we
from Catas Altas?
Magdalena não entendeu o que ele perguntara.
Bull que ouvira a pergunta, respondeu por ela:
Devemos estar a
1,5 mile ...
O tempo da caminhada com paradas e passos lentos, não
dava para balizar a distância percorrida.
Pensativo Edward refletia como era diferente o povo
inglês do brasileiro, fosse na Inglaterra, aqueles terrenos que percorriam,
deveriam estar revolvidos
por mineradores, tal como fizeram na costa Oeste Americana,
especificamente na Califórnia...
Aquela serra era sem dúvida nenhuma um rico depósito
de ouro ainda inexplorado; se o que se via de aluvião era grande, o que dariam
os veios dentro da serra.
Atravessando troncos dispostos como pinguelas, o
riacho fazia com sua geometria tortuosa, meandros cortando o sopé da serra.
Ora, estávamos na margem direita, ora na esquerda;
sombreando a margem do rio, ainda vicejavam: Araribás, Angelins, Angicos,
Braúnas, Cedros, Canelas e Ipês e por baixo,
uma massa esverdejante e luxuriosa de plantas tropicais.
A mata a margem do riacho regenerava aos poucos do
que fora há um século antes
Aqui Eduardo, era muito comum aparecer onças jaguatiricas, atraídas pela quantidade de
animais pequenos que se infiltravam por dentro da mata.
Uma em especial deu o nome ao rio, a ave “Bicudo
Maquiné“
Aqui Maquiné muita rica, Magdalena!
Edward olhava admirado para o alto da serra...
- How high. is
this peak?
- O pico mais alto, está a 2.2l7 metros, o Inficionado.
Aquele mais próximo é o pico do Sol a 2.074 metros de
altura.
Edward admirado dos conhecimentos da namorada,
perguntou:
- Quem deu Magdalena, medidas?
- Just a remind,
I’m a teacher!
Ele ria do inglês de principiante...
- Não vou falar nem responder mais em sua língua
inglesa...
- Ou Magdalena, assim não fala com eu...
- Não foi você mesmo que me pediu que esforçasse para
aprender sua língua, mesmo que, falando errado?
- Sim, Magdalena se morar Gongo Soco, só falar lingua minha...
- Como vamos morar em Gongo Soco , se meu pai não deu consentimento ainda para casarmos?
- Resposta seu pai,
não precisar mais, pastor Cuming escrever padre Francisco
Xavier, pedindo ele fazer casamento
católico eu e você, se não fazer, ele
fazer nosso casamento lá Gongo Soco.
- Você teve a coragem de fazer a consulta com o
pastor do Gongo, sem me avisar?
- Não, reverendo sabe que eu quer casar com você
igreja católica, se padres igreja Catas
Altas não querer, aí ele fazer nossa igreja no Gongo...
Deus é universal e único Magdalena!
Minha religião também boa para casar gente...
Magdalena pensava no que Edward estava dizendo, se
não houvesse outro recurso, o jeito seria aceitar dos Anglicanos o que os
Católicos Apostólicos negavam.
Depois de certo tempo, olhando para Edward, disse:
- Concordo, casaremos no dia 8 de dezembro, dia em
que se comemora a nossa padroeira, Nossa Senhora da Conceição...
Se o pai continuasse opondo ao matrimônio, eles
casariam sem festa e sem o consentimento.
- Eu apenas ponho
uma condição para nosso casamento:
Que você respeite a liberdade da minha religião, sem nenhuma objeção;
concorda?
- Yes, my darling!
Nunca pensar eu
contrariar Magdalena, especialmente
religião.
Nós ingleses muito fiéis e duros nossos hábitos, mas respeita direitos de pessoas.
The individuality
is sacred...
Você Magdalena, fica religião católica; That’s my faith...
- Is it right?
Magdalena flexionando a cabeça, confirmava que concordava; ela seguindo a religião
católica e ele a fé que tinha...
Se ela não abria mão de seus princípios religiosos,
como poderia pedir a ele para renegar sua fé?
- Follow me, come
this way.
Os dois entraram na garganta da gruta do Maquiné,
contornando a cachoeira que em queda livre, despencava de grande altura
esparramando água.
Por trás da cortina d’água os dois se abraçaram;
ninguém poderia vê-los, tão pouco o que diziam.
Magdalena percebeu os lábios dele se mexendo e ela
deduziu o que ele dizia:
- I love
you! I love you!
Sabendo que ninguém poderia escutá-los começaram a
gritar:
- I love, I love,
I love...
A umidade em suspensão formava uma névoa visível, mas
que as moças não perceberam as conseqüências.
Em pouco tempo, estavam com as vestes úmidas e
coladas ao corpo.
O contato de Edward mostrava quanto era desejada e
ela percebeu quanto estavam molhados.
Afastando bruscamente, ela sentiu vergonha e ele
raiva de ter provocado o constrangimento dela...
O corpo de Magdalena tremia no calor da intimidade
deles e na frieza externa dos dois corpos molhados.
Ela não poderia ficar como estava; a veste
completamente molhada...
Sentido o vestido colado ao corpo, ela teve vergonha
de ter suas formas físicas expostas a olhos indiscretos.
Há na vida de toda criatura humana, desejos
inconfessáveis que é difícil refrear; ele nada dizia, pois teve medo de piorar
o mal que causara, naquele prazer inusitado...
Silenciosa, ela se afastou dele para pegar no cesto,
uma blusa que retirara com o calor da
caminhada.
Por sorte ela trouxera aquele agasalho.
Mais afastado deles, vinham gritos que o eco repetia
dentro daquele vale:
“ Magdalena, Magdalena, ena, ena, ena; repetia o eco...
- Don’t worry!
- Eu me preocupo sim, Edward!
"Eles estão à nossa procura...”
Segurando-a pelos braços, os dois voltaram para a
direção de onde vinham os gritos.
- Onde vocês estavam?
Chamamos diversas vezes por vocês!
- Lá dentro não se escuta nada...
Os que chegavam começaram a aproximar-se da queda d’água.
- Cuidado com os respingos, eu me molhei toda!
Eu vou sair para me secar ao Sol; Edward disse em bom
português:
- Que pena!
What a
beautiful place!
Realmente este lugar é lindo, Edward!
Olha como a água sai de dentro da pedra para dar o
salto...
Ela vem como um véu de noiva, tão pura e fria...
Ele não entendia o que ela falava e pediu que
tentasse explicar em inglês:
“ - Is pure, and
river is cool... “
Como toda mulher deve ser, complementou em português.
“ - By no means. “
- Sim, de todas as maneiras possíveis à mulher tem
que ser recatada, ela estava censurando a si mesma como se comportava no
pic-nic.
- “It’s pure, but not cool...“
- A frieza Edward, é própria do que é puro, assim
também é a água para matar a sede, que é quente e incontrolável...
O eufemismo da professorinha, tentava colocar o
namorado em seu devido lugar; mas ele não entendeu nada do que falava.
Tentando segurar as mãos dela, ela pudicamente
afastou-se e foi sentar numa grande pedra no meio do riacho.
- Comporte-se meu querido, não deixe
transparecer o que sentimos; não
atrapalhe o que está tão bom...
- Muito bonita!
- A cachoeira?
- Oh! tudo;
você, cachoeira, serra e terra...
Agora vejo,
aqui mui lindo!
E você nunca tinha percebido antes?
- You are
kidding?
Eu fala verdade, Magdalena!
Gosta eu muito você...
Gritos vindos da cachoeira chamavam a atenção dos
dois; saltando e gritando, a turma toda molhada brincava na bacia formada pela queda.
Escavada pela erosão dos tempos, uma bacia se formara
numa piscina natural.
Ali estava a prova do que o provérbio diz:
“Água mole, pedra dura, tanto bate até que fura...“
No remanso os meninos nadavam deliciados.
Edward suado e com o corpo pedindo água, não resistiu
os apelos dos que nadavam.
Retirando a camisa do corpo, mostrava o tronco nú;
pela primeira vez Magdalena via a musculatura avantajada dele.
O corpo bem proporcionado, mostrava o ombro largo e o
tórax saliente, o mamilo com halo ao derredor, mais escuro e o peito
cabeludo queimado pelo Sol.
Àquela cor rosa era raro entre os europeus geralmente
medrosos de se queimarem no país inteiramente tropical.
Saltando da pedra em que se desnudara, caiu de cabeça
nadando veloz rumo ao refluxo da queda d’água.
Magdalena acompanhava o seu mergulho; ela viu seus
braços estendidos e as mãos espalmadas tocando o fundo.
Num impulso com as mãos, revirou o corpo e com os pés
apoiados no fundo, alavancou de volta a superfície, ele estava próximo do jorro
caudaloso.
Desviou a cabeça da carga d’água e recebeu o impacto
sobre as costas.
Seu rosto acusou o choque e a dor que veio depois;
ele nadava para o lado da pedra onde sentara Magdalena.
Ao subir na pedra, uma marca vermelha mostrava a
força da queda livre sobre seu corpo; seus músculos ressentiam o golpe e o
rosto magoado era uma só expressão de dor.
Nada mais
saudável do que uma ducha sobre o corpo, porém
perigosa quando não avaliada.
Edward ficou calado e Magdalena perguntou:
- Você se
machucou?
Só o movimentar da cabeça assinalava que não, mas a fala faltara para contrariar sua negativa.
Magdalena vendo a região toda vermelha, sabia que
devia estar doendo e começou a massagear
com as mãos leves o lugar.
- Aspira e respira querido!
Ele não entendeu e ela pensou como dizer as mesmas
palavras em inglês, lembrando, disse:
- “ Breath
deeply, so you will get better! “
Respire fundo, repetiu ela em português...
Ele seguindo o que ela mandava, depois de certo
tempo, voltou a respirar mais aliviado.
- “ I’ve got
worried indeed! “
- Eu me preocupo sim, respondeu nervosa a namorada,
vendo-o com a expressão de dor.
Magdalena pouco a pouco ia aperfeiçoando com seu
esforço a língua inglesa, o que deixava o namorado entusiasmado com o progresso
e interesse dela.
Sentados sobre uma laje, observavam os demais
brincando dentro d’água, seus pés nús por baixo da calça molhada, brincavam
fazendo carinhos...
- Quando casarmos quero voltar aqui disse Magdalena
olhando o rosto dele.
“Falar casar Magdalena, reverend Cuming conversar por carta com reverend Xavier, se ele não casar eu você
Catas Altas, ele casa nós em
Gongo Soco ”
- Que carta é esta, Edward?
- Ele, Mr.
Cuming, escreveu para eu e fala que pai
seu, mandou pessoa saber vida minha
Gongo Soco...
- Meu pai fez isto?
- Sim, e a “Mining“ deu o que pai seu querer...
- Por favor Edward, perdoa o meu
pai; ele deve ter feito isto porquê
os ingleses não são católicos e alguns
de seus patrícios não gozam de bom conceito aqui...
- No Brasil é muito comum esta atitude, quando os
pais não conhecem a família do noivo ou vice-versa.
- Carta dele vai acabar “preconception contra eu e
nosso marriage“
- Cuidados de pai, querido!
Qualquer outro teria as mesmas preocupações, além do
ciúme de estar perdendo um bem que ele gerou e criou...
- Eu não mais falar seu pai, pedido casamento; Edward
Hosken homem inglês fully proud!
- Que é fully proud?
- É amor eu mesmo...
- Orgulho, você quer dizer.
- Yes, orgulho...
- Nem eu quero que você se porte como menino...
- Então se pai seu não responder eu, você e eu casa?
- Esperarei até
às l8,00 horas do dia 8 de dezembro, conforme combinado, depois deste prazo,
vou para a capela do padre Xavier e lá casaremos...
- E se pai seu não querer?
Aceita
reverend Cuming?
- Claro, sem as
bênçãos de Deus é que não vamos
ficar...
- Eu leva: John Bull, Mr. Yory, Zaga e filho meu: O
John Hosken, como testemunhas.
- O John não pode, ele ainda é criança!
- Então levo o John Emery.
- Ele é muito amigo de meu pai, e pode contar o nosso
segredo...
- Mr. Emery patrício meu, não contar nada...
- Então vou conhecer o seu filho no dia do nosso
casamento?
- Sim, ele muito vontade ver “step-mother “
- O que é step-mother?
- Mãe segunda, depois outra...
- Madrasta, você quer dizer.
- Sim, mother madastra...
Ele reclama não ter
mãe; Antônia, John não conheceu.
- Meu pai ficou sabendo deste filho seu, uma das
razões de se opor ao casamento.
- É crime Brasil ser pai, Magdalena?
- Nas condições que foi gerado, a sociedade brasileira
condena e recrimina.
- My God! For
God’s sake!
Is it a sin being
a single?
- Não diga blasfêmia Edward,
- Que você é solteiro todo mundo sabe, nem por isto,
deixa de ser condenável sua
irresponsabilidade de ter um filho solteiro...
Não querendo continuar com o assunto que era
desagradável à ambos, Magdalena afastou-se e de longe perguntou:
- Você está com fome?
Em voz alta gritou para os companheiros do pic-nic:
- Vocês já comeram?
- Não, não, vieram as respostas.
A turma foi se aglomerando perto dos cestos que
guardavam a matutagem, as pedras serviam de mesas e assentos.
Nada melhor para abrir o apetite que uma caminhada e
um banho pela manhã; as iguarias desapareceram repentinamente, sem nenhuma
cerimônia o cesto esvaziou-se...
Depois de alimentarem-se ficaram conversando sobre a
beleza daquele passeio; Magdalena pediu para a irmã Maria Raymunda:
- Canta alguma coisa mana:
A voz suave que todos conheciam no coral da igreja,
começou num solo. o que as demais conheciam:
Que a tarde vai, é um fato,
o Sol se pondo nas
alturas,
o Sofrê cantou no mato
e no brejo as
saracuras...
As outras meninas responderam em coro:
Sofrê,
não é bicho nato,
é dor; tantas agruras!
se ele canta no mato,
é por sofrer suas
torturas...
Menina! deste fato,
virão abraços de
ternuras
não permita com seu ato,
nove meses de
aperturas...
Com o verso cínico e impróprio as mocinhas começaram
a rir, os ingleses não sabiam a razão e elas voltaram a cantar o estribilho:
Sofrê, não é bicho nato,
é dor; tantas agruras!
Se ele canta no mato,
é por sofrer suas torturas...
Edward encabulado, pediu à Magdalena para que ela
explicasse os versos, pois todas elas olharam para ele rindo, quando
cantaram...
Você não entendeu?
- To repeat...
Magdalena não quis cantar e as outras meninas
cantaram por ela:
Se ele canta no mato,
é por sofrer tantas torturas...
- Vocês cantando, faz lembrar chegada nossa primeira
vez Catas Altas.
- Como assim?
- Chegando viagem da Inglaterra, moças de Catas,
cantaram para nós ingleses, muito bonita.
- Quando?
- l5 anos
atrás.
Magdalena não se lembrava do fato
há tantos anos passados.
- You were so
litle...
A sombra da serra cobria todo o vale do Maquiné,
apenas o pico do Sol ainda brilhava com os raios vindo do lado Poente.
- Juntar as trouxas gritou Maria Raymunda.
Algumas cansadas e caminhando trôpegas, voltavam pelo
mesmo caminho.
No adro da igreja do Rosário, pararam para descansar
e despedirem-se.
Magdalena chamou a atenção das meninas:
- Olha lá para o alto, parece o ostensório do Divino!
O cume da serra brilhava espalhando raios para todos
os lados.
Pagava a pena esperar pelo último fulgor daquela
tarde...
Segurando a mão de Magdalena, Edward não queria
soltá-la e ela sedutoramente pediu:
- Deixe, deixe, eu preciso ir...
Se pudesse ela ficaria a vida inteira com suas mãos
presas as dele, mas a irmã Maria Raymunda e as outras subiam a ladeira.
Era perigoso ficar ali sozinha com Edward, alguém
poderia ver e comentar com seus pais.
Edward continuou parado e os outros ingleses sentados
no degrau da escada da igreja de Nossa Senhora do Rosário.
O sino da matriz badalava as “Ave Marias “
Ele se lembrou da sua terra, l5 anos de ausência,
longe dos seus entes queridos, havia naquele instante, um culto de saudade,
pela separação dos seus pais e de Magdalena que acabara de sumir da sua visão.
Seria o último encontro antes de se casarem.
Uma dúvida pairava em sua mente:
Seriam eles
felizes, casando-se a contra gosto dos pais dela?
Valeu a pena sair da Inglaterra, para ser
discriminado pelo ato de amar?
Ele não agüentava mais viver solteiro, faltava o que todo homem necessita na sua idade.
8 de dezembro de l.848, nem um dia mais solteiro...
Seria a marca definitiva para solução da sua permanência
no Brasil.
Com o céu cobrindo de estrelas, ele juntou-se a
rodinha dos outros ingleses; Bull, Emery e Henewood caminhando em direção a
praça da Matriz.
Calado Edward distanciou-se dos outros três ingleses,
dando passos mais vagarosos, ficando para trás.
Uma mão tocou em suas costas, sem que ele tivesse
sentido alguém se aproximando.
- É você Zaga?
O negro sempre vigilante acompanhara a distância o
passeio de Nhô Du.
- Onde você estava?
- Lá no Maquiné.
- Como não te vi?
Nhô só tinha olhares
prá Nhá Magdalena...
- Quando eu estiver com ela, não quero que você me
siga!
- Maise, e o
brabo pai dela!
- Eu resolvo meus problemas, Zaga...
Zaga sentia como fazia falta uma mulher na vida do
inglês, ele precisava casar para que a vida dele tivesse sentido...
- Casa sem muié, é argibeira sem rapé.
- Nhô, percisa dá modo de casá!
Dia 8 de dezembro, Zaga; queira ou não o pai dela.
- Entonces, tá marcado?
- Está Zaga, se não acontecer volto para minha
terra...
- Cê tá doido, Nhô?
Deus é pai, ancê vai vê como tudo estarará certo...
Voltando para o Hotel do Bull, eles teriam uma noite
curta, pois sairiam às 4,00 horas da madrugada para Quebra Ossos.
- Se pudesse voltar o tempo!
- Vortar o que, sô Du?
- Voltar, recomeçar o dia de hoje...
- Prá mode de que, sô Du?
- Ora Zaga, Não seria para andar com você!
O negro silenciou com a tristeza patente, no modo
grosseiro dele responder, caso raro entre os ingleses que preferiam calar a
magoar os outros.
...................................................................................................................................
Magdalena ao voltar para casa sentiu um alívio, pois
os pais ainda não haviam voltado da Cachoeira.
Dona Rita encontrou as filhas em seus quartos,
deitadas e de camisola, conversavam animadamente.
A mãe achou-as vermelhas, mas poderia ser o efeito da luz do lampião.
- Que vocês fizeram hoje?
- Ah! Saímos para um pic-nic.
- É por isto que vocês estão queimadas, vocês estão
muito vermelhas e necessitando molhar o rosto com água de pétalas de rosas.
Vou mandar Miúda trazer os jarros.
- Você está ardendo de febre, filha!
- Febre de amor, falou corajosa Magdalena.
- De que?
- De amor mãe, de amor!
- Você ainda pensa no inglês?
- Mais do que penso, sinto como se ele estivesse aqui
perto de mim como à senhora está.
Eu gosto muito dele e estarei sempre pensando nele...
Maria Raymunda e Bizita ficaram pasmas com a coragem
da irmã para confessar os seus sentimentos daquela forma para a mãe.
Havia naquele tom atrevido, talvez uma revolta que a
mãe não sabia como amainar.
Depois de passar a toalha molhada no rosto das três
filhas, dona Rita foi beijar uma por uma e deixou o aposento pensativa...
Ao ser puxada a porta, ela rangeu barulhenta e dona
Rita disse para Miúda:
- Amanhã, manda Celestino untar as dobradiças desta
porta com sebo de boi; parece até alma
penada amolando a gente!
Aproveita e fala com ele para passar em todas as outras,
não quero que a casa fique
assombrada com tais barulhos...
Até que a porta não incomodava Magdalena, pois raras
eram às vezes que era aberta e fechada; o duro era agüentar o tic-tac do grande
relógio de coluna.
Mesmo longe lá na sala, o seu barulho era ouvido
durante a noite, por isto a mãe puxara a porta.
Saindo do quarto, dona Rita lembrara que Magdalena
voltara a se cuidar melhor da sua toalete e vestes pessoais.
Nos últimos tempos, era ela mesmo que cuidava de suas
vestes, ora passando a ferro, ora costurando, coisa que em outros tempos,
deixava aos cuidados das mucamas.
A canastra onde guardava sua roupa pessoal ficava
arrumada como se fosse viajar naquele dia.
A mãe chegou a perceber seu cuidado exagerado, com as
roupas, porém nunca via Magdalena vestindo-as.
Intrigada, às vezes perguntava:
- Ou filha, prá que aprontar tanto, sem nunca
vesti-las?
- Estão guardadas para quando voltar a engordar...
Um perfume exalava da canastra com a tampa suspensa.
Ao se despertar na segunda feira após o encontro com
Edward, Miúda entrara no quarto sorrateiramente, porém esbarrou no criado.
- Que você quer Miúda?
- É prá ancê Nhá!
Com os olhos semicerrados, ela percebeu pelo cheiro
estranho um buquê de flores nas mãos da negrinha.
- Que é isto?
- Prenda prá ancê qui sô Du, mandou!
- De Eduardo?
- Uai, de quem pode sê, Nha?
Levantando o corpo e sentada na cama, recebeu as
flores procurando alguma identificação que esclarecesse o presente.
- Tinha algum bilhete, Miúda?
- Não Nhá, foi o nego Zaga que trazeu e disse:
- “Fala com sinhá Magdalena, qui o biete tá
iscrivinhado no coração de sô Du.
Mais do que as palavras, ela sabia o que seu noivo
queria dizer com as flores...
Ninguém em Catas Altas sabia que aqueles eram os últimos
dias de solteira da filha do Guarda-Mor Thomé.
Os casamentos das pessoas importantes da Vila eram
anunciados e preparados com meses de antecedência e as famílias viviam em clima
de festa, preparando-se feéricamente para as bodas.
Na casa do Guarda-Mor a rotina era a mesma, nem os
familiares de Magdalena poderiam supor o que ocorreria daí a uma semana.
No dia 4 de dezembro de l.848, padre Xavier fora à
Santa Bárbara para abrilhantar os festejos da padroeira, encerrando o fim da
novena.
Pagando a visita, o arcipreste João Batista de
Figueiredo viria à Catas Altas para fazer o mesmo nos festejos de Nossa Senhora
da Conceição, do dia 8 de dezembro.
O arraial despertara naquele dia de festas, sob o
repicar de sinos e foguetes e a banda de música em retreta pelas ruas.
Desde 5,30 horas da manhã, a praça principal começara a receber gente de fora e vários
animais de cela, estavam amarados nos esteios do quadrilátero próximo da
matriz.
Barraquinhas levantadas e dispostas ao lado esquerdo
da igreja, recebiam salgados, quitandas, e outras prendas para o povo e o
Leilão que ocorreria depois da missa.
Os padres: Francisco Xavier de França, João Batista
de Figueiredo e o padre provedor, o vigário geral, Francisco Justino Gonçalves
Viegas, iriam celebrar a missa solene das l0,00 horas.
O pregador do sermão, padre João Batista, exaltava no
púlpito o privilégio da Imaculada Conceição.
Magdalena guardou na memória especialmente este
trecho:
............................................................................................................................
“Ela a Virgem Maria,
que nunca cometera um pecado sequer, nem mesmo os originais comuns às
criaturas;”
Ela, que dentro em
pouco receberia do papa a confirmação do dogma de sua pureza,
era por isto que a festa revestia-se naquele ano, de um júbilo todo especial.
No Evangelho de hoje
e no ofertório, vamos alegrar-nos como nas saudações dos anjos, dizendo:
Oh! Maria cheia de
graça, que sejais neste dia e em todos os outros de nossas vidas a advogada
nossa.
Assim como
conquistastes tão grandes virtudes e a isenção do pecado, preservando-a do
contágio, também a nós seja dada esta graça, livrando-nos do mal.
Sob vossa invocação,
aqui estamos exaltando-a e pedindo humildimente a vossa proteção.
Sejais, Nossa
Senhora da Conceição, nosso modelo de virtudes e obediência e acima de tudo:
Como fostes filha fiel, esposa
amantíssima e mãe exemplar.”
Aquele sermão
do padre João Batista, parecia ser dirigido especialmente à sua pessoa.
Vermelha e de cabeça baixa, sem tirar o véu que a recobria, saiu apressada da igreja, evitando cumprimentos
até das amigas.
Já em seu quarto, em prantos não conseguia reter os
soluços comprometedores.
Miúda, Zéfa e Nhana vieram do fundo da casa para
saberem o que se passava com sinhazinha.
- Gentes, pro mode que ocê chora, Nhá?
- Nóis tá aqui pra sabê qui dói n’ancê!
Os soluços não cessaram e nem ela conseguia balbuciar
qualquer palavra esclarecedora.
Nhana levantou a menina e Miúda ajudou-a a colocar
Magdalena no seu colo.
- Busca prela um chá de erva doce, Miúda...
- Fala fia, fala prá gente adividi a dor...
Entrecortados de soluços, Magdalena mal conseguia
dizer:
- Não é nada, não!
Nem es-tou
do-en-te...
- Entonces, pro mode que ancê chora?
- Não posso falar...
- Meu Deuse, mas ancê tá falando, Nhá!
Qui foi qui deu n’ocê?
- Por favor Nhana! Não diga nada a ninguém, nem para
mãe!
Calejada e experiente da vida, conhecedora dos
problemas de Magdalena, virou para as outras e disse autoritária:
- Todo mundo pro serviço, goela tramelada e nem um
pio do que ancês viram...
As outras saíram e Nhana acalentava-a passando suas
mãos pelos cabelos.
No colo e
vestida, Nhana esperou que ela acalmasse um pouco e depois disse:
- Eu vi ancê nascê e crescê nestes braços, purisso
sei pro que chora...
Se é de amô, pode chorá qui também já chorei.
Se é de dô, nu tem vregonha, pois tudo qui é gente,
chora como vancê.
Maise, se ancê chora com medo de falá co’eu, intão é
sua nêga que vai chorá pro mode de ocê
num confiá nela...
A simplicidade comovida de Nhana fez Magdalena abrir
seu coração:
- Eu vou contar um segredo só para você, ninguém
poderá ficar sabendo nesta casa, porém você vai me jurar que guardará o meu
segredo...
Nhana pressentiu que a coisa era mais grave do que
pensava.
Ouvindo passos da família voltando da missa, disse
baixinho para Magdalena.
- Fica de bico calado e eu vou sair prá ninguém
disconfiá qui ancê tá magoada, despois, vou falá com Nhá Rita que ocê tá doente
e percisa amoitar prá sará de sua doença de moça.
Na hora qui
tivé o chá pronto, nois fala tudo qui tivé de falá...
- Não vai não, Nhana!
- Ou fia, se eu ficá aqui com ancê, dona Rita vai
disconfiá qui tem coisa!
Como todos os domingos e dias santificados, depois de terminadas as missas, a casa se enchia dos parentes, Maria Raymunda foi contar para a mãe
que, Magdalena estava de cama e tinha
chorado muito com dores.
- Ela falou o que está sentindo?
- Ah! ela disse que estava com cólicas e Nhana está
fazendo um chá para ela.
Foi até a cozinha saber que providência Nhana estava
tomando.
- Ou Nhá, tô fazendo prela um chá de erva cidreira.
A cunhada Bonifácia, uma das freqüentadoras assíduas
da casa nos domingos, reprovou a erva cidreira e mandou que fossem apanhar
folhas da planta Metrasto e fizesse o chá com elas.
Entrando no quarto para ver a filha, notou que ela
estava um pouco quente e queixando de cólicas.
- Bonifácia já recomendou um chá para você, filha!
Nhana está preparando...
Ao trazer o chá, Nhana mandou que bebesse e foi
fechar a porta para que ninguém viesse incomodá-las.
- Bebe este chá de Mentastro, fia; vai sê bom procê.
Tá muito quente aqui dentro!
Pode abrir as janelas?
- Abre Nhana e vem sentar aqui...
Nhana fazia os mesmos
chamegos do tempo em que ela era criança.
- Ou Nhana, que vontade de voltar aos tempos que você
me carregava no colo!
- Ocê já é moça fia, tá percisando é de um príncipe
pra fazê isto com ancê.
- Você adivinhou o que quero falar com você...
- Como adevinhei?
- Hoje ao escurecer vou sair para encontrar com meu
príncipe e não voltarei mais aqui.
- Ancê tá vareando, fia!
- Não Nhana estou falando sério...
Eu preciso muito de sua ajuda, Nhana!
- Nu tô aqui ajudando ocê?
- Quero outra ajuda e muito mais importante do que
você está fazendo agora.
- Entonces fala, fia...
- Nhana, eu vou mesmo fugir hoje com o Eduardo.
- Ocê tá falando isto de vredade?
- Num brinca qu’eu Nhá!
- Não estou brincando, vou fugir para casar de
verdade.
- Mas como?
- As l9,00 horas na capela da casa do padre Xavier.
- Meu Deuse!
Ancê endoidou de vez.
- Não estou doida não Nhana.
- Você é a única pessoa com quem posso confiar nesta
casa!
- Pru mode que, ancê nu fala com Nhá Maria Raymunda!
- É questão de sigilo, só em você confio este
segredo, vou sair pelo fundo do quintal às 6,00 horas da tarde, direto para a
capela
- Nu faz isto não, Nhá!
- Nós tudo vamo ficá doidos!
Vancê pensou na sua mãe, seu pai e nos irmãos?
- Penso em todos, mas também penso em mim...
- Quem vai com ancê?
- Daqui da minha casa, ninguém, mas lá na capela da
casa paroquial, já tem gente me esperando para ser minha testemunha e do
Edward.
Nhana, minha atitude não é caso resolvido agora, há
muito tempo venho esperando a licença de papai para o nosso casamento.
Você sabe como tenho sido paciente, mas chega uma hora
que não dá mais para esperar; Daí nossa atitude, indesejável.
Historia linda.
ResponderExcluirSou descendente do Thome Monteiro de Oliveira cc a Maria Valentina de Jesus. tenho um livro da família que conta essa história do Chico e a Bonifácia.Carlos Carvalho