A construção do retiro da Boa Esperança de Carlos
Arthur, filho de Edward Hosken chegara ao fim, e despertava curiosidade dos
moradores de Catas Altas, pelo conjunto da obra.
Chico Crioulo que fora escravo do fazendeiro
Raymundo Gonçalves Viegas e dona Antônia Marcolina, a Dindinha Totó como era
conhecida, gozava da liberdade dada pela Abolição da Escravatura em l3 de maio
de 1.888.
Sem meios de manterem tantos libertos em sua
fazenda, sô Raymundo oferecera a Carlos Arthur Hosken o tal Chico.
Informado das qualidades do negro, inclusive
carapina de mão cheia, ele foi levado para o Retiro com a função de dar
acabamentos, na construção.
O negro passara a receber pelo que trabalhava e se
sentia tão importante, como qualquer sinhozinho branco.
Ele viera com a família e nas proximidades do
retiro, construiu o seu rancho, com autorização do proprietário.
Negro forte, ativo e saudável, em pouco tempo
ajustou-se a nova vida como empregado de sô Carrinho, como era chamado Carlos
Arthur pelos estranhos da família.
Seu patrão tinha acabado de comprar um carro de boi
e precisava de um carreiro para guiar as juntas ainda não muito domadas.
Habilidoso e paciente, em pouco tempo colocou as
parelhas afinadas para o trabalho a executar.
Sua arte de manejar as juntas de bois espalhou pela
região, e de vez em quando, era requisitado por empréstimo pelos vizinhos do
retiro.
Ver anexo nº 11 o carreiro com o
carro de boi.
Pau para toda a obra, na falta de um carroceiro,
trocava os bois pelos burros e também manejava a carroça para os transportes
mais leves.
Com a vinda do Chico e a família, o seu filho mais
velho Olímpio, foi incorporado aos agregados da fazenda e passou a fazer parte
da força de trabalho que o retiro necessitava.
Pouco tempo depois, outro rapaz por nome de José de
Souza, se ajuntou ao grupo e Totó adaptou-o à lavoura e a vinha que necessitava
de cuidados constantes e especiais.
Sua dedicação era tão grande pelas plantas, que em
pouco tempo, tornou-se o braço direito do patrão nos cuidados do parreiral que
ficaria famoso...
Junto com Totó, passara a fazer um horto de plantas
frutíferas, hortaliças e flores, que mais tarde seriam espalhadas pelos
pomares.
Seguindo a
orientação do padre Mendes, plantava as mudas da videira americana que segundo
ele, apesar do seu estado selvagem, era de sabor muito agradável e o seu
cheiro, notado pelo sabor balsâmico.
Nas explicações do padre, ele dizia:
“A videira bastardinha existente
por aqui merece ser cultivada, como espécie, porque carrega-se de frutos, não
doces, como geralmente desejam muitos
amantes da boa bebida.
O cultivador inteligente,
associando-se algumas medidas, alcançará vinho igual ao xerez...”
Com os tipos das cepas introduzidas pelo padre
Mendes em Catas Altas ,
os enxertos se deram muito bem, especialmente as uvas do tipo Isabel.
Dois anos
após transplantadas as primeiras mudas para o parreiral da ala esquerda, do
Retiro, um imenso retângulo de manto
verde, cobria o terreno da vinha.
Crescendo cada vez mais, um parreiral foi também
plantado na ala direita da alameda que ia do engenho até o canal do moinho.
Era bonito de se ver, principalmente na Primavera os
caprichosos estaleiros cobertos de verde
que se espalhavam pelo pomar.
Dando mais graça e proteção de ventos contra a
vinha, Totó plantara como moldura dos quadros, um bambual e árvores
frutíferas, nas laterais da alameda
central, mangueiras de sabores diversos.
Ainda quando as uvas eram insuficientes para a
produção do vinho, a safra era gasta na fabricação de licores, tanto quanto os
poucos frutos que o pomar começara a produzir.
Em bujões de vidro foram armazenados os licores e os
primeiros vinhos produzidos como num laboratório de experiência.
Ao aumentar da safra do parreiral, Totó mandou
construir pipas e tonéis para depósito e envelhecimento das produções anuais.
Ele mesmo sentindo a dificuldade de esticar tantos
arames no seu produtivo retiro, arquitetou um aparelho que foi objeto de
Medalha de Prata na Exposição Internacional de 1.922 no Rio de Janeiro.
Ver Anexo nº 30 - O certificado
de diploma nº 120.
Manoel Tanoeiro, cidadão santabarbarense, foi
contratado para confeccionar as pipas e os tonéis de madeira; inicialmente com
capacidade máxima de 200
litros .
Depois a medida que a produção crescia ao passar dos
anos, tonéis de 500 e 1.000
litros foram somando aos que já existiam na adega, para
envelhecimento das diversas safras anuais.
Ver Anexo 28 como era a adega da
vinicultura da Quinta da Esperança de Carlos Arthur Hosken e os Anexos 29 e 30
estampando diplomas conferidos à ela e no Anexo 31, rótulos de garrafas das diferentes safras..
Os filhos mais velhos, Clóves e Emídia já ajudavam
nas tarefas mais simples.
Quando ocorriam as capinas, podas e colheitas,
ajuntavam-se todos os empregados:
Benedita preta, Maria Carolina, Constantino, Olímpio
e José de Souza, a outros tarefeiros que Totó contratava.
O corte dos cachos de uva sob os estaleiros requeria
uma certa destreza e rapidez para cortá-los e depositá-los nos balaios.
Quanto menos tempo a operação gastasse, mais
homogênea seria a vinificação.
Nas primeiras safras, as uvas eram esmagadas com os
pés, tal como acontecia na Europa, depois Totó com sua própria habilidade, fez
um esmagador mecânico de madeira, que consistia em dois rolos cilíndricos
acionados por manivelas manuais e um depósito afunilado onde eram colocados os
cachos para serem prensados.
Quando ocorria o fim da colheita das uvas, a
empreitada terminava em festividade regada de vinhos, licores e um jantar
especial.
Alegres, cantando as modinhas da época, era comum a
festa atrair vizinhos e gente de Catas Altas, pois o vinho corria solto de seus
depósitos, aos que festejavam a boa safra da vinhateira.
Edward o pai de Totó, contava que na Europa a
maioria dos produtores de vinho se ajuntava para colheita da uva.
Depois, sobre uma imensa tina eram esmagadas as uvas
com os pés, pelos velhos, moços e meninos que dançavam sobre os cachos,
cantando alegres canções folclóricas que todos conheciam de cor, até que a
massa se transformasse no mosto pastoso.
Nas grandes empreitadas, antes de mudarem para o
retiro, Totó trazia toda a família que ficava alojada nos cômodos já prontos.
Os filhos se surpreendiam no encanto das coisas
simples do campo.
Ali eles tinham plena liberdade nos recantos
pitorescos, dos banhos no moinho ou riachos e os frutos que José de Souza
colhia para eles.
Foi engabelando os meninos com os frutos nativos:
Ananás, Araçá, Pitanga, Fruta do Conde, Ingá, Morangos e outras mais que a
natureza produzia, que ele conquistou a simpatia não só dos meninos, como de
toda a família.
As crianças tinham particular admiração pelo sô
Zé, o homem que estava transformando a terra de sô Carrinho,
num paraíso.
Na verdade ele tinha uma mão abençoada para tudo que
tocasse.
O artesão de Deus, tinha em suas mãos a graça da
vida e dela nascia coisas que todos duvidavam que pudesse brotar naqueles
redutos.
Quando Niníca elogiava o trabalho de José de Sousa
perto do pai, o inglês minerador não se conformava com o esperdício do filho
Totó, colocando um homem válido somente para cuidar de plantas.
Para o velho minerador inglês, todo trabalho de
lavoura e plantações, era de gente sem ideal de crescer e ficar rico.
Seu filho Totó não pensava como ele...
A vinha ficara aos cuidados do Souza, seguindo as
técnicas ditadas pelo padre Mendes.
O jardim de dona Nhanhá, era um recanto dela e das
visitas que apreciavam a beleza das flores.
Os canteiros em formatos geométricos cercados
inicialmente por pedras, foram posteriormente, cercados por cascos de garrafas
de vinho de 750 ml. Que apresentavam defeitos no seu gargalo durante o
engarrafamento.
Os raios do Sol incidindo sobre os vidros davam
radiações coloridas que encantavam os visitantes pela originalidade do Totó e
de José de Souza.
Caprichosamente ele ia dando nomes aos canteiros:
Canteiro de dona Nhanhá, plantado com rosas.
De Emidinha, exibindo cravinas.
Do Cloves,
com jasmins.
Do Cledes,
com boca-de-leão.
Do Godofredo, com amor perfeito.
Ao ficarem mais velhos, os meninos passavam a cuidar
do seu próprio reduto, tomando de amores pelas flores que Zé de Souza plantava.
Era uma maneira sutil de educar os meninos ao amor
às criaturas de Deus.
Nhanhá tinha um grande prazer em levar para sua casa
e a igreja de Nossa Senhora da Conceição, braçadas de flores que floriam no
jardim do retiro.
Zé de Souza ensinava como a poda das plantas
precisava de cuidados especiais; ele não permitia que os frutos fossem
arrancados, senão com o corte do caule.
Ensinava também que as plantas não
gostavam do calor do corpo humano, daí ele pedir que, ao apanhá-las, evitassem
o contato direto, tanto com as folhas, quanto às flores e os frutos.
Ao apanhar uma rosa, envolvia sua mão com uma folha
de verdura menos nobre, tendo o cuidado de ceifá-la sem tocar diretamente na
sua haste.
Envolvidas em folhas de bananeira ou inhame, enviava
as verduras para a mãe do seu patrão, a dona Magdalena.
Frescas como se apanhadas na hora, elas chegavam as
mãos da mãe de Totó.
Desde que Zaga morrera, seu jardim ficara
descuidado.
Gentilmente às vezes José de Souza ia a Catas Altas
para cuidar do jardim da sinhá mãe; pouco adiantava a sua boa vontade, pois
Niníca a única filha que morava com eles, não tinha tempo para cuidar dele...
O jardim não vingava pela falta de água, o que não
acontecia com as plantas do quintal, que podadas e adubavas, davam os frutos
que as sinhás mais gostavam.
As pessoas possuídas da jetatura, (Mau-olhado) Zé de
Souza tinha verdadeiro pavor, assim como o estridular dos grilos marcando sua
presença nefasta no jardim.
Com as pessoas, nada podia fazer, mas com os grilos,
parava para escutá-los indo certeiro ao encalço para pegá-los.
Antes da condenação, dizia pelo respeito que tinha
as criaturas de Deus:
“Ladrão de jardim,
filho de Anhangá,
ancê comeu plantinha
e morre
como gambá”.
Esmagando com o solado do pé o bichinho, ficava
arrependido e pegando-o nas pontas dos dedos, enterrava-o dizendo:
O que ancê comeu, vai virá esterco, juntamente com
vancê...
Ele conversava com as plantas, como se conversasse
com as pessoas.
Aguando-as ele dizia:
“Tome
água pra bêbê
tome água pra crescê
que aminhã Nha mecê,
tá aqui pra ti colhê.. “
Em sua simplicidade dizia filosofando:
“Plantá
e dá a vida é fácil; basta o desejo.
Cultivá é que é o pobrema; tem
que dá carinho a vida inteira...“
Apesar da sua simplicidade, Totó tinha por ele
grande admiração pela maneira como trabalhava e o desvelo com Nhanhá e os
meninos.
Depois da construção da casa e plantio do pomar,
passou a receber ordens, só de Nhanhá, pois seu serviço estava mais ligado a
administração da dona do retiro.
Queixando-se a Chico Crioulo ele revelou um dia seu
descontentamento:
- Ou Chico! Porquê sô Carrinho não gosta d’eu?
- Se não gostasse d’ancê, home; ele não deixava ancê
tão ligado a dona Nhanhá e dos mininos dele!
- Intão ancê acha qui ele gosta d’eu?
- Ou Zé! Home qui gosta de home vira lobisomem...
S’ocê tabaiasse na roça de sol a sol, ancê ia achá
qu’ele gostava d’ocê?
Pensa com a cabeça, Zé!
José de Souza nunca mais reclamou de seu serviço,
apesar de ter vontade de ser tropeiro, podendo viajar pelo mundo afora...
Em fins de novembro de 1.892, quando foi fazer a
capina do quintal onde morava o inglês sô Eduardo, notou que o velho não
acompanhava o serviço como outrora.
Coisa rara, pois estava sempre presente dando
ordens:
- Poda aqui, corta ali, junta o capim...
A língua de sô Eduardo era um tanto, estranha e de
difícil compreensão, porém com gestos ou intervenção de dona Magdalena, acabava
entendo o que ele queria.
Dona Niníca filha do inglês e irmã do patrão, vinha
de vez em quando conversar com ele, trazendo coisas que o estômago apreciava.
Ela sabia do amor de Zé de Souza pelas plantas e
perguntava:
- Ou sô Zé, como vai o jardim da minha cunhada?
- Como Deus gosta dona Nínica!
Florido, prefumoso de dá gosto!
Oia, a cesta que dona Nhanhá mandô procês!
- E o meu canteiro de cravos de defunto, quando você
vai plantá-lo?
- Quando a senhora for lá e mandá, dona Nínica!
Mas de defuntos não dona Niníca, de cravos vermelhos
e brancos...
Na volta ao retiro, querendo saber notícias do
sogro, Nhanhá perguntara:
- Como está meu sogro e minha sogra, Zé?
- Ele nu tá bom não, dona Nhanhá; tá parado como
curuja no toco...
A conversa com um homem observador e consciente das
coisas despertava uma apreensão na nora e ela avisava o marido, pelas notícias
que Zé de Souza revelava.
À tarde, Totó foi à Catas Altas e avisou que talvez
dormisse por lá, para não voltar já com a noite escura.
Examinando a postura do pai, achou que o velho
estava um tanto alheio a conversa e muito tristonho, porém não se queixava de
nada como de hábito.
Desceu caminhando até a casa comercial do senhor
João Martins Ayres para encomendar o abastecimento da lista que levava para a
casa do pai.
Lá chegando, encontrou o comerciante no balcão
carregando o primeiro filho do seu segundo matrimônio, um menino de quase um
ano de idade.
- Ora vivas sô João! Mais um menino para alegrar a
casa?
É o primeiro, Totó?
- Para mim é o caçula, disse o freguês, sabendo que
o comerciante tinha uma série de filhos do primeiro matrimônio.
A negra Sá Rosa carregava o menino como se fosse um
príncipe em suas mãos.
- Conhecendo a negra, Totó perguntou:
- Como chama o menino dona Rosa?
- Arlindo, sô Carrinho!
Então dona Rosa, ele é o ar lindo de Catas Altas...
Sô João Martins ouvindo o trocadilho, achou graça da
brincadeira com o nome do menino e perguntou:
- Onde está dona Nhanhá, Totó?
- Ela não pode viajar, pois está no sétimo mês de
gravidez, impedindo-a de andar a cavalo ou mesmo, a pé.
- Estamos sentindo a falta dela em Catas Altas , Totó!
O sobrado do sô João Martins passara por um ano de
festas, pois há muito não se ouvia no sobrado, choro de criança.
A mãe Chiquinha, as irmãs e tia Rosa, sentiam o
quanto era importante uma criança dentro do lar; há muito o casarão não vibrava
com a vida; desde que Donana a primeira esposa de João Martins falecera.
No Natal daquele ano de 1.89l. o casarão voltou a
brilhar como nos passados anos da década de 1.880.
Os irmãos de Chiquinha, os Viegas, também estavam no
casarão comemorando os 2 nascimentos: O do menino Deus e do menino Arlindo.
Atrás das boas notícias, sempre vinha uma para
atrapalhar o brilho e a paz dos que se alegravam.
De Paris os jornais comentavam a gravidade da doença
de D. Pedro II, há muito enfermo.
Em 5 de dezembro morrera o nosso segundo imperador,
um dos maiores vultos do império e da nascente história do Brasil como nação.
Em l3 de fevereiro de 1.892, nascia em Catas Altas o menino
Godofredo, último dos filhos gerados e nascidos de Carlos Arthur e Magdalena
Pereira da Cunha, nas ruas do arraial.
Depois do resguardo, a família mudaria em definitivo
para o retiro da Boa Esperança.
Ansiosos os meninos esperavam pelo dia que entrariam
para a casa nova, o Retiro do Paraíso...
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